A liberdade de culto e o direito dos animais (parte 2)

AutorDaniel Braga Lourenço
CargoAdvogado no Rio de Janeiro
Páginas271-288

Ver notas 1 y 2

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Bom dia a todos os presentes. Gostaria de, inicialmente, agradecer o convite feito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA que, em conjunto com o Professor Heron Santana e o NIPEDA, organizou o presente evento. Quero também dirigir meus cumprimentos à mesa e ao

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Professor Samuel Vida, ilustre professor desta prestigiada instituição. O comparecimento em massa do corpo discente ao seminário e o fomento a atividades como esta só demonstram a maturidade com que vêm sendo encarados os temas relacionados à ética ambiental e, mais especificamente, aos direitos dos animais. Espero que possa contribuir positivamente para o engrandecimento do debate.

Preparei a minha exposição com base em alguns slides que gostaria de passar a expor sem maiores delongas. Como sou o primeiro a falar, gostaria de fazer a ressalva de que alguns desses slides contêm imagens de conteúdo forte.

A minha exposição começa com duas frases que reputo serem bastante significativas. A primeira delas, de MARTIN LUTHER KING (1929-1968), é do seguinte teor: "A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares". De fato, não podemos menosprezar nenhuma das formas de opresssão, se queremos combater a opressão como um todo. Nesse sentido, se há uma ameaça à justiça relativamente aos animais, por mais pontual que ela seja, como pode ser o caso do presente debate acerca do abate ritualístico, devemos envidar todos os nossos esforços para combatê-la. A ameaça aparentemente isolada representa uma ameaça ao todo. Em segundo lugar, destaco a assertiva do filósofo THEODOR ADORNO (1906-1963), para quem: "Auschwitz começa quando alguém olha para um abatedouro e pensa: eles são somente animais". Na mesmo sentido, a minha linha argumentativa sempre é orientada no sentido de esclarecer que a fronteira homem-animal é uma fronteira artificialmente criada e que muitas das formas de exploração dos animais funcionam com base nos mesmos arranjos ideológicos opressivos observados na dominação do homem pelo próprio homem.

Preliminarmente, cabe também certificar que as críticas que porventura dirigirei ao abate ritualístico e ao sacrifício animal não são previamente orientadas a atacar este ou aquele sistema religioso. Pelo contrário, são direcionadas a todos aqueles que fazem uso de animais, indiscriminadamente. É, no entanto, usual que associemos o abate ritual às religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Todavia é oportuno destacar que também outros grupos como os judeus (abate Kosher) e muçulmanos (abate halal) utilizam o mesmo expediente, e

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procuram legitimá-lo a todo instante sob a forma de prescrições dietéticas, tidas como verdadeiros dogmas. O mundo contemporâneo, multicultural, deve prezar pelo respeito às diferenças existentes entre as mais diversas etnias e grupos sociais. Todavia, as diferenças em si próprias não constituem valores absolutos, imunes ao exame ético, de sorte que não pode servir de manto protetor de condutas ilícitas. O respeito pelos mais diversos sistemas religiosos não deve ser tão forte que nos impeça de avaliarmos sua legalidade e legitimidade.

É igualmente importante salientar que mesmo no âmbito do abate não-ritualístico, ou seja, do abate para alimentação, há uma evidente exploração do animal como instrumento, de tal forma que ontologicamente, há pontos fundamentais coincidentes entre ambas as práticas, a ritual e a não-ritual. Cumpre esclarecer de antemão que sou frontalmente contrário a ambas. Acredito, portanto, que o debate acerca do sacrifício de animais não se insira num contexto de ataque à religião como instituição e sim a um de suas aspectos materiais, que pode e deve ser aprimorado.

Feitas essas considerações, avancemos no exame da questão atinente à liberdade de culto. Como se pode inferir do slide apresentado a seguir, podemos didaticamente subdividir a liberdade religiosa na liberdade de crença (que inclui também a liberdade de "não-crença"), liberdade de culto e na liberdade de organização/associação religiosa. Essas são, efetivamente, as três principais vertentes da liberdade religiosa em sentido lato ou amplo. A liberdade de crença engloba a liberdade que o indivíduo possui de buscar, metafisicamente, qualquer orientação espiritual ou crença que melhor lhe aprouver. É a liberdade de acreditar naquilo que se quiser, ou seja, é uma liberdade que ocorre no campo do imaginário, da abstração, da fé individual. Já a liberdade de culto é a exteriorização no mundo real dessa abstração, normalmente assumindo a forma de práticas individuais, ou de grupo, ligadas a determinados dogmas ou preceitos "divinos". Vai desde a oração individual a preces coletivas, formas de vestuário e caracterização pessoal, utilização de símbolos, ritos e imagens, limitações de determinadas atividades tidas como profanas, estabelecimento de dias sagrados, prescrições dietéticas, entre outras regras a serem obedecidas. Normalmente, o conteúdo

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material da liberadade de culto está sociologicamente vinculado à necessidade de autoafirmação e diferenciação de um grupo em relação a outros (noção de "povo eleito" se origina justamente dessa necessidade). A liberdade de organização também revela uma faceta exterior da liberdade de crença, pois consubstancia a possibilidade associativa para o culto, ou seja, os atos de fé podem ser celebrados conjuntamente, e as pessoas podem congregar-se para professar a sua fé.

Decorre naturalmente do exposto que a liberdade religiosa, nas suas diversas modalidades e acepções, seja, de fato, um direito subjetivo. Um direito subjetivo qualificado por ser fundamental, essencial. Todavia, é relevante perceber que nenhum direito, por mais fundamental que seja, é absoluto. Vejamos os casos que se apresentam a seguir: existem evidentes limitações ao direito de propriedade (função social, direitos de vizinhança, etc.); à liberdade de expressão3(que encontra limites até mesmo no direito penal); e até com relação ao direito à vida (vejase, a respeito, a previsão constitucional da pena de morte no país em período de exceção, a permissão legal do aborto no caso de estupro e mesmo o caso das excludentes penais da ilicitude). Portanto, nenhum direito, por mais nobre, fundamental, essencial que seja, traz em si, conteúdo valorativo absoluto.

Apesar de a liberdade religiosa não traduzir um valor absoluto, há tempos que sua proteção vem sendo contemplada nos mais diversos ordenamentos jurídicos. Veja-se o caso emblemático da 1ª Emenda à Constituição Norte-Americana (também conhecida como "Free Exercise Clause") que afirma o seguinte: "O Congresso não editará nenhuma lei que atinja a instituição ou interdite o livre exercício de uma religião nem que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa ou o direito que tem o povo de se reunir pacificamente e de dirigir petições ao governo para solucionar suas queixas". Frise-se que não há, de maneira ao menos

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explícita, nenhum condicionamento para o exercício da religião, muito embora, como veremos mais adiante, essa restrição esteja implícita em qualquer norma jurídica e decorre da lógica dos mais diversos ordenamentos jurídicos. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, todavia, já se nota uma preocupação com esse fato, a saber: "Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pelas leis" (art. 10). Já há aí um nítido e expresso condicionamento da liberdade de expressão, inclusive de ordem religiosa, qual seja, o de obediência à ordem pública e ao ordenamento jurídico como um todo. Em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, explicitou-se que: "Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular" (art. XVIII). Na Declaração sobre a Intolerância e Discriminação de Religião ou de Crença, datada de 1981, fica estabelecido que: Art. 1º, item 3: "A liberdade de manifestar a sua própria religião ou crença estará sujeita unicamente às limitações prescritas em lei e que sejam necessárias à proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da moral públicas, ou dos direitos e liberdades fundamentais dos demais" . Também se percebe uma nítida preocupação com a relativização da liberdade de culto. A mesma redação é encontrada, praticamente sem alterações no corpo do texto da Pacto de São José da Costa Rica, de 1992. A Convenção Européia dos Direitos do Homem consagra essa mesma visão ao afirmar em seu art. 9º, item 2, que: "A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, á segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou á proteção dos direitos e das liberdades de outrem".

O Brasil também cuidou da liberdade religiosa em suas mais diversas constituições. A Constituição do Império (1824), por exemplo, estabelecia a religião católica apostólica romana como a religião oficial do Estado,

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apenas tolerando as demais se seu culto fosse privado. A Constituição Republicana de 1891, inaugurando a laicidade no país, asseverava em seu art. 72, §3º, que: "Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum." Destaquese a parte final do dispositivo supramencionado, que nitidamente condiciona a liberdade de culto à obediência das normas do direito comum. A Constituição de 1934 se posiciona na mesma linha, possibilitando a aquisição de personalidade jurídica das entidades religiosas nos seguintes termos: "É...

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