Limites à Efetiva ção Judicial do Direito à Saúde

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas175-185

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1. introdução

O controle judicial de políticas públicas, notadamente as de saúde, constitui um desafio diário para o Judiciário, onde diversas ações são apresentadas em decorrência da deficiência do serviço público de saúde.

Ocorre que referido controle desperta vários questionamentos por repercutir diretamente nos três Poderes que compõem o Estado; com efeito, as políticas públicas são matérias atinentes eminentemente aos poderes Executivo e Legislativo, compostos pelos representantes eleitos democraticamente pela socie-dade, de forma que ao Judiciário, Poder contra majoritário, de início, não cabe interferir nessas matérias.

Por outro lado, a Constituição Federal, bem como leis ordinárias, especialmente a Lei Federal n. 8.080/90, que regula o Sistema único de Saúde (SUS), traçam diretrizes que vinculam todos os três poderes, estabelecendo, outrossim, o direito à vida e à saúde como direitos fundamentais, de forma que, em respeito a nossa Carta Política, referidos direitos devem ser implementados pelo Estado, nem que se faça necessária a intervenção do Judiciário nos demais Poderes.

Mas será que a garantia ao acesso à justiça, aliado com o direito à vida e à saúde previstos no art. 5º da Constituição Federal, é suficiente para o Judiciário compelir o Poder Público a fornecer todo e qualquer tratamento médico àquele que venha bater em suas portas, mesmo que o recurso necessário a tal tratamento seja retirado de outros setores públicos não menos importantes?

Citados questionamentos serão abordados no decorrer do presente trabalho cuja finalidade é apontar limites à efetivação judicial do direito à saúde.

2. Previsão constitucional do direito à saúde

A Constituição Federal de 1988 deu ao Estado brasileiro o caráter de Estado Social, cabendo a ele, assim, o dever de prover a sociedade, evidentemente, com direitos sociais.

O direito à vida1 e à saúde estão expressamente previstos constitucionalmente, sendo dado a este último a qualificação, também expressa, de direito social2.

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Ainda regulando o direito à saúde, o art. 196 da Constituição determina que a "saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

De início há de se observar, detalhe esse que será importante para o desenvolvimento deste trabalho, que nossa Carta estabelece que não há um direito absoluto à saúde e, portanto, a todo e qualquer tratamento médico; com efeito, no art. 6º é dito que o direito à saúde é social, no entanto o art. 196 da Constituição estabelece que ele será garantido mediante políticas sociais, que visem um acesso igualitário às ações e serviços de saúde, denotando que não há um direito subjetivo, nos moldes clássicos.

Em verdade, na tradicional definição de direito subjetivo, concebida ainda na vigência do Estado Liberal, de feições eminentemente individuais, direito subjetivo pode ser oposto contra o Estado, cabendo a ele respeitá-lo sem restrições, prestação essa que se coaduna com a concepção dos direitos fundamentais de primeira dimensão, também de caráter individual, elaborados visando evitar a indevida invasão do Estado na esfera privada; ou seja, o conceito de direito subjetivo se enquadra melhor com os direitos de proteção, onde, primordialmente, não há um dever de agir do Estado.

Já os direitos sociais, em sua maioria3, necessitam de ações do Estado, através de políticas públicas, para sua implementação, e como são várias as demandas sociais decorrentes desses direitos, bem como diante das limitações materiais, não há como o Estado efetivá-los de maneira absoluta, não podendo, assim, ser aceito que referidos direitos sociais sejam capazes de gerar deveres estatais correlatos, na forma de direitos subjetivos irrestritos.

Não ignoramos o fato de que todos os direitos, inclusive os de primeira de dimensão, geram custos para o Estado, nos termos do preconizado por Stephen Holmes e Cass R. Sustein, através da obra The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. Com efeito, para que direitos ditos de primeira dimensão sejam garantidos, como os de liberdade e de proprie-dade, por exemplo, é necessário um aparato estatal voltado para segurança pública, o qual, obviamente, também tem custos.

Ocorre que na relação direta entre o particular e o Estado os custos com a implementação dos direitos sociais são mais sensíveis e imediatos, não dando oportunidade de planejamento orçamentário por parte do Estado com o cumprimento de decisões judiciais. De fato, caso o Estado, por exemplo, venha a violar o direito de propriedade de um cidadão com a apropriação irregular de um bem, a restauração desse direito resultará de uma abstenção do Estado, o que não acontece quando tratamos de um direito social, onde o Poder Público terá que, de imediato, destinar recursos com o cumprimento de uma decisão judicial aditiva4.

Por outro lado, é certo também que a Constituição Federal deu aos direitos sociais o caráter de fundamentais, e como tal, é sim dever do Estado, mesmo que não de uma maneira irrestrita, como não poderia ser diferente, implementá-los, ainda que sem uma mediação infraconstitucional5.

Ao lado da eficácia imediata dos direitos fundamentais, a Constituição Federal estabeleceu, outrossim, o acesso à justiça como uma garantia fundamental, de forma que a todo aquele que estiver no Brasil é permitido apresentar o Judiciário demanda envolvendo qualquer tratamento à saúde, residindo aqui a grande dificuldade com a qual se deparam os magistrados, consistente em definir qual o limite

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dessa pretensão e, por conseguinte, o do dever da Administração Pública em cumprir com tal expectativa.

3. da separação de poderes e a nova hermenêutica constitucional

Como foi visto, a Constituição Federal dispôs que a saúde é um direito social fundamental, cuja implementação se dá através de políticas públicas, as quais podem ser definidas de maneira simples como sendo o conjunto de ações, de planejamento, de controle e de execução, para o alcance de um fim estatal.

A Constituição Federal, diante do seu caráter analítico, cuidou de traçar diretrizes gerais acerca de algumas políticas públicas, cabendo aos Poderes Executivo e Legislativo detalhar ou definir, quando não previstas constitucionalmente, essas políticas, estabelecendo onde, quanto e como devem ser gastos os limitados recursos públicos.

Com efeito, é o voto popular que dá legitimidade para que os representantes eleitos pela sociedade definam as áreas sociais que detêm prioridade para receber os limitados recursos públicos, em detrimento de outros setores que também demandam investimentos, mas que em razão da escassez material não podem ser atendidos.

Se não bastasse a legitimidade popular do Executivo e do Legislativo, são esses os Poderes que possuem melhores condições técnicas de avaliar a curto e médio prazo os melhores meios de alcançar os objetivos traçados pela Constituição, que só em longo prazo podem vir a ser alcançados diante de nossa atual condição social.

Não obstante, a soberania popular e a separação de Poderes não podem servir de argumentos para que o Poder Público se abstenha de cumprir com seus deveres constitucionais, sendo a Constituição Federal, em sua unidade, a norma maior a ser respeitada, devendo prevalecer, inclusive, sobre as maiorias ocasionais que se encontram no Poder, o que dá legitimidade para o Judiciário agir em buscar de seu cumprimento.

Com efeito, temos uma Constituição substancialmente principiológica, a qual, dentro da ordem pós-positivista, possibilita a aplicação imediata de princípios, impondo ao aplicador da norma uma nova hermenêutica constitucional. De fato, o destinatário da norma constitucional tem o desafio de não apenas interpretá-la, mas também de aplicá-la imediatamente, mesmo diante da fluidez de seus princípios, de maneira que a interpretação lógica da subsunção presente no positivismo do Estado Liberal não se mostra mais suficiente para a aplicação da Constituição.

Através de uma nova hermenêutica constitucional é permitido ao magistrado aplicar diretamente os princípios constitucionais, caso as regras concebidas pelo Legislativo e pelo Executivo se distancie daquilo que a Constituição Federal determinou.

Diante dessa interpretação constitucional, verifica-se que o princípio constitucional da Separação de Poderes perde o seu caráter quase absoluto, atinente ao Estado Liberal, na medida em que a fruição dos direitos constitucionais não ficam na dependência da discricionariedade do Executivo e do Legislativo, cabendo a intervenção do Judiciário, diante da inércia desses outros Poderes.

Ocorre que justamente em razão desse caráter aberto e fluído dos princípios, os conflitos decorrentes de sua interpretação e aplicação são constantes, o que impõe uma concreção cuidadosa da norma constitucional por parte do Judiciário, sob pena de os prejuízos decorrentes dessa aplicação serem superiores aos seus benefícios.

De fato, em se tratando do controle judicial de políticas públicas e da efetivação dos direitos sociais, é tênue a linha entre a concreção legítima dos direitos previstos constitucionalmente e a indevida usurpação das competências legislativas e executivas de traçar referidas políticas através de orçamentos. Dessa forma, é necessária a adoção de critérios precisos a fim de identificar quando as políticas públicas estabelecidas por meio de orçamentos...

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