Lineamentos da reforma do direito societário italiano em matéria de invalidade das deliberações assembleares

AutorErasmo Valladão A. e N. França
Páginas12-24

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1. A necessidade de um sistema especial de invalidades das deliberações de assembléia

Como se sabe, através do Decreto Legislativo 6, de 17.1.2003, promulgado em cumprimento à Lei 366, de 3.10.2001, foi reformada a disciplina do Código Civil italiano (CCI) relativa às sociedades de capitais e sociedades cooperativas, vigorando a partir de 1.1.2004.

Afora inúmeros outros aspectos, chama-nos a atenção, na reforma realizada, a alteração do sistema de invalidades das deliberações assembleares, que de há muito está por merecer a devida atenção do legislador brasileiro.

O Brasil, com efeito, é um dos países mais atrasados com relação a essa matéria, pautando-se a nossa Lei de S/A por um sis- tema de invalidades em franca dessincronia com as exigências do direito societário (e do mercado de capitais), que, pelas suas peculiaridades, deve afastar-se do direito comum.

Basta pensar que, desde 1937, um novo sistema foi iniciado por meio da Aktiengesetz alemã, seguido, embora com imperfeições, pelo Código Civil italiano de 1942, e, desde então, pela maioria das legislações - inclusive pelas de diversos países da América do Sul que não têm o grau de desenvolvimento do Brasil. E verdadeiramente inexplicável que um sistema como o nosso, que pode trazer graves danos para os investidores do mercado de capitais, não tenha ainda sido objeto de uma radical reforma.

O sistema de invalidades, no direito societário, deve apartar-se do direito co-

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mum, entre outros pontos, quanto ao prazo de anulação das deliberações, que deve ser drasticamente encurtado, devido à necessidade de estabilidade daqueles atos, que não podem ficar por longo tempo expostos à invalidação, em face dos prejuízos que essa situação de incerteza pode acarretar ao regular funcionamento da empresa societária e, sobretudo, em se tratando de companhias abertas, do mercado de capitais.

Imagine-se a hipótese de um aumento de capital por subscrição pública no Brasil. Os investidores subscrevem o aumento, que posteriormente é homologado, sendo emitidas as ações correspondentes. Passados um ano, onze meses e vinte e nove dias da primeira assembléia,1 um acionista ingressa com ação anulatória. Após anos e anos de disputa judicial, a demanda é julgada procedente, anulando-se o conclave ou a deliberação. Quid júris? Anulam-se também as ações emitidas em decorrência do aumento de capital? Como devem proceder os adqui-rentes das ações? Como devem proceder os terceiros que com eles negociaram, pelo menos até a propositura da ação de anulação? Sofrem as conseqüências da anulação?2 Quantos prejuízos, enfim, uma situação como essas não traz ao mercado?

2. Traços gerais do sistema especial de invalidades das deliberações de assembléia

Dessa forma, ante a evidente necessidade de estabilidade das deliberações assembleares, concebeu-se um sistema especial de invalidades no direito societário, que se caracteriza pelos seguintes principais tópicos: (a) prazos de decadência, curtíssimos, para anulação de assembléia ou das suas deliberações;3 (b) irretroatividade

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da invalidade, em certos casos;4 (c) ampla possibilidade de sanação do vício, mesmo em se tratando de hipótese de nulidade absoluta, quando possível;5 (d) diverso enfoque da distinção entre atos nulos e anulá-veis;6 (e) inatingibilidade, em princípio, de terceiros de boa-fé, salvo os casos de nulidade ostensiva,7

Vejamos, pois, como se portou o legislador italiano de 2003, em face de todos esses pontos.

3. O sistema adotado no Código Civil italiano de 1942

Antes de qualquer coisa, cumpre salientar que, ao contrário dó sistema de in validades adotado naAktiéngesetz de 1937 - particularmente bem-sucedido e, por isso, praticamente repetido na Aktiengesetz de 1965 - 0 CCI de 1942, apesar das boas intenções do legislador, construiu um sistema que não provou de todo bem.

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O CCI cuidou da questão nos arts. 2.377 e 2.379, distinguindo, respectivamente, entre deliberações anuláveis (impugná-veis) e deliberações nulas, num sentido diverso daquele aplicável aos demais atos e negócios jurídicos.

No primeiro dos mencionados dispositivos, estabeleceu a possibilidade de impugnação das deliberações que não fossem tomadas "na conformidade da lei ou do ato constitutivo";8 no segundo, determinou que, "às deliberações nulas por impossibilidade ou ilicitude do objeto"9 se aplicassem as regras do direito comum, previstas nos arts. 1.421 a 1.423 (quais sejam: a nulidade pode ser alegada por qualquer interessado e pronunciada ex offieio pelo juiz; é imprescritível a ação visando à sua declaração; a nulidade não pode ser convalidada).

De acordo com essa disciplina, a nulidade da deliberação não decorreria do simples fato de ter sido tomada contra "normas imperativas", como estipula a regra geral, prevista no art. 1.41810 do CCI (c/c o art. 1.32411): a nulidade da deliberação circunscrever-se-ia às hipóteses de impossibilidade ou ilicitude do objeto. Assim, a deliberação tomada contra norma imperativa, cujo objeto, porém, não fosse impossível ou ilícito, seria tão-somente anulável, a teor do art. 2.377.

Comentando esse regime, afirmava Galgano que, em matéria de deliberações assembleares, a lei italiana havia promovido uma verdadeira inversão. Segundo os princípios comuns, dizia ele, a ação de nulidade é "uma ação geral, baseada no fato de ser o contrato ou o ato unilateral (art. 1.324) 'contrário a normas imperativas' (art. 1.418, primeiro parágrafo), enquanto é especial a ação de anulação, exeqüível somente nos casos expressamente estabelecidos pela lei (arts. 1.441 e ss.)". Em sede de deliberações de assembléia, porém, "é geral a ação de anulação (art. 23, para as associações, art. 2.377, para as sociedades de capitais) e é especial aquela de nulidade (art. 2.379)".12

O ilustre mestre peninsular, após esclarecer que o interesse protegido pelo legislador, na hipótese, era o interesse na "estabilidade das deliberações", assim procurou explicar o porquê desse regime especial de invalidade das mesmas: "A razão pela qual a sanção da nulidade foi ressalvada para as hipóteses de ilicitude ou impossibilidade do objeto é, de outra parte, evidente: se o objeto da deliberação é impossível ou ilícito, o terceiro pode mais facilmente percebê-la e, assim, evitar fiar-se na responsabilidade da sociedade pelos atos praticados pelos administradores em execução da deliberação. Os terceiros, ao invés, não estão sempre em condições de verificar, externamente, a ilicitude do conteúdo da deliberação, como não estão sempre em condições de observar, externamente, a ilicitude da causa (art. 1.343), ou seja, da função econômico-social da deliberação, ou a ilicitude do motivo (art. 1.345), ou a violação de normas relativas ao procedimento formativo da deliberação. Por isso a deliberação é, nestes casos, somente anulável;

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e a sua anulação não prejudica - como se recordou há pouco - os direitos adquiridos por terceiros de boa-fé".13

Sucede que o CCI estabeleceu, no art. 2.377, o prazo de três meses, contados da data da deliberação, ou de seu arquivamento, conforme o caso, para o exercício da ação de anulação. Enquanto a ação de nuli-dade, referente às deliberações cujo objeto é impossível ou ilícito, era imprescritível, a de impugnação deveria ser exercida naquele exíguo prazo (entendido, ademais, como de decadência14).

O resultado foi a larga utilização, pela jurisprudência, da figura da deliberação inexistente, consoante esclareceu Galgano: "Os artífices do Código Civil foram inspirados, nessa matéria, por uma exigência de certeza das relações jurídicas relativas às sociedades de capitais, admitindo uma ação imprescritível de nulidade somente para as deliberações com objeto impossível ou ilícito (art. 2.379). Mas conseguiram apenas em parte impor a sua própria política legislativa: a jurisprudência introduziu toda uma série de distinguo que neutralizaram, em larga medida, o alcance inovador dos arts. 2.377 e 2.379; a estas normas do livro quinto do Código Civil ela sobrepôs outras normas, extraídas de uma categoria lógico-jurídica desconhecida pelo próprio Código Civil, a categoria da deliberação 'inexistente'".15

Reputa-se inexistente a deliberação assemblear, segundo Galgano, "quando faltam, nela, aqueles que podem ser julgados como os elementos de identificação do próprio conceito de deliberação: assim, têm sido corretamente consideradas inexistentes - e, por isso, subtraídas da disciplina da anulabilidade - as deliberações tomadas pela maioria sem conhecimento da minoria, sem prévia convocação da assembléia e sem que a minoria fosse colocada em condições de intervir ou, tomada a deliberação, de impugná-la nos termos da lei".16

O conceito de deliberação inexistente foi, porém, no decurso do tempo, injustificadamente ampliado: "Mas os nossos juristas foram bem além: foi considerada inexistente, com efeito, uma deliberação tomada por uma assembléia totalitária da qual não havia participado, como requerido pelo art. 2.366, terceiro parágrafo, o conselho fiscal; inexistente, outrossim, a deliberação tomada por uma assembléia regularmente convocada da qual não haviam podido participar, por impossibilidade material, todos os sócios".17

A figura da inexistência, portanto, passou a ser utilizada para elidir a aplicação do art. 2.377 do CCI, pu seja, para invalidar as...

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