A linguagem jurídica como estratégia de acesso à justiça: uma análise do processo de interação lingüística entre o magistrado e as partes

Autor1.Valdeciliana da Silva Ramos Andrade - 2.Marcela de Azevedo Bussinger
Cargo1.Professora de Linguagem Jurídica das Faculdades de Vitória (FDV/ES). - 2.Acadêmica do Curso de Direito das Faculdades de Vitória (FDV-ES)
Páginas22-45

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1 Introdução

Saber usar a linguagem é ter habilidade de comunicar, é poder ir além da fronteira da indiferença, é possuir a capacidade de se fazer conhecer, é conseguir conhecer o outro, enfim, é ter poder – afinal – linguagem é sinônimo de poder.

Apesar de sabermos, o destino de nossas palavras, não podemos nos esquecer de que a linguagem é poder e, sobretudo, seduz. Quando pensamos nesta relação – poder e sedução –, percebemos que, no âmbito jurídico, a linguagem, que se corporifica no discurso, toma dimensões maiores, uma vez que a própria instituição do Direito implica uma hierarquia entre quem sabe e quem não sabe.

É importante mostrar que a esfera jurídica constitui uma instância discursiva autônoma, que é capaz de produzir suas próprias exigências e de influenciar outras instâncias que a cercam. Além disso, o discurso jurídico é capaz de influenciar a esfera de existência, de destinação e de utilização de objetos, criando, modificando e extinguindo relações; afetando, atingindo e regulando as condutas humanas emPage 23sociedade, regulamentando situações, enfim construindo um universo descritivo em torno do qual devem girar os atos humanos.

À conta disso, vislumbrando a relação lingüística entre pessoas de pólos distintos no discurso jurídico, é possível perceber que há cidadãos que são “manipulados” por não ter o domínio da palavra, pois aqueles, que a dominam, utilizam-na como um divisor de águas entre eles e os demais, já que a linguagem é o instrumento de poder, de manipulação, de diferença.

Para proporcionar ao homem uma forma de acesso à justiça, é necessário permitir que esse cidadão comum se torne menos dominado e mais respeitado, possibilitando que ele esteja integrado ao universo de linguagem que o cerca.

Foram essas angústias que nos estimularam a olhar para frente e pensarmos em realizar uma pesquisa que pudesse contemplar a relação lingüística entre magistrado e partes 1 . Em virtude disso, indagamo-nos, então, como seria a relação lingüística entre aquele que detém o poder – o magistrado –, e aqueles que anseiam por justiça – as partes.

Como já existem diferenças entre os dois pólos, vimos que o efetivo processo de comunicação entre as partes e o Magistrado pode se constituir em um meio concreto de acesso à justiça, visto que entendemos que o “acesso à justiça” se constitui em um fator básico para um sistema jurídico moderno e igualitário que proporciona que os cidadãos tenham seus direitos garantidos.

Uma queixa comum, existente na sociedade, é concernente à distância que existe entre os jurisdicionados e os magistrados. Tal distanciamento seria promovido, entre outros fatores, pela linguagem jurídica, quer seja escrita quer seja oral, que estaria permeada de termos técnicos, latinismos, enfim, uma linguagem erudita. Em razão disso, as pessoas interessadas em uma ação judicial se viam afastadas, de certa forma, da sua demanda.

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Cumpre esclarecer que, ao falarmos das partes, não estamos tratando de pessoas analfabetas ou com baixa escolaridade, estamos pensando naquele homem comum, possuidor de uma boa capacidade de raciocínio e um nível de escolaridade razoável.

Esta pesquisa, portanto, propôs-se a analisar em que medida a forma de utilização da linguagem interfere no acesso a justiça, como é a linguagem do juiz nas sentenças, como ele vê a relação dele com as partes quanto à questão da linguagem e de que forma busca uma linguagem mais acessível para as partes. Além deste aspecto, interessamo-nos em verificar como as pessoas que têm ações na justiça vêem os juízes.

Realizamos três tipos de pesquisa, a saber: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo – explorando o viés qualitativo (análise de sentença e entrevista) e quantitativo (questionário). Quanto à pesquisa bibliográfica, verificamos as bases teóricas que envolvem o acesso à justiça; a função social do processo; bem como os pressupostos lingüísticos que tratam do processo de interação da linguagem, como um fator de comunicação essencial para o ser humano, considerando, sobretudo, a linguagem do magistrado.

2 Acesso à justiça

A concepção de Direito que permeia o imaginário social esteve sempre, ao longo da história, fortemente atrelada à idéia de busca daquilo que é reto e justo. No entanto, pode-se perceber que o Direito nem sempre corresponde à justiça, visto que existem diversos elementos que se interpõem a sua efetivação.

É necessário pensar que, em nossa sociedade, o ideal de justiça está distante de ser uma realidade para todos os cidadãos, isto é, não se vive o que Ulpiano (apud VENOSA, 2003, p.50) pregava “viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um aquilo que é seu” 2 . Muitas vezes, o indivíduo é posto à margem da sociedade, em decorrência de sua condição social. Esse fato provoca reflexos na Page 25busca de uma ordem jurídica justa, como, por exemplo, a descrença no sistema judiciário, a ausência de sentir-se envolvido na demanda, entre outros.

Devido a esse quadro, tem-se falado em acesso à justiça, o qual pode ser interpretado sob ópticas diversas. Há os que consideram o acesso à justiça como correspondente ao exercício efetivo de cidadania, outros acreditam que o acesso consiste na possibilidade de receber a tutela jurisdicional do Estado, isto é, ter acesso ao poder judiciário e as demais instituições capazes de viabilizar o direito à proteção, à tutela jurisdicional competente.

Desde os primórdios da civilização, a idéia de acesso à justiça sempre esteve presente (1998, p. 47). Evoluiu, contudo, a idéia de como deve ser a intervenção estatal para garantir esse direito. Na Antigüidade Clássica, nas cidades de Atenas e de Roma, o Estado constituía advogados para assistir aos incapazes. Na Idade Média, isso permaneceu dando também assistência aos despossuídos. Já, nos séculos XVIII e XIX, com a instituição do estado liberal, há a consagração da filosofia individualista dos direitos. Conquanto, naquela época, o direito ao acesso à justiça fosse considerado um Direito Natural, não era dever do Estado garantir sua proteção, visto que tais direitos eram anteriores ao Estado. O papel deste era impedir que esses direitos fossem infringidos por outros. Desta forma, cabia ao Estado uma atitude passiva, isso resultava na abstenção do Estado e na eliminação dos problemas advindos da diferença das partes.

Após o liberalismo, houve uma ampliação na esfera do direito público que caracteriza o Estado de bem estar social. Neste sentido, o Estado estaria, no referido período, mais envolvido com a garantia dos direitos proclamados, assumindo, em cada país, formas diferentes.

Embora tenha havido várias tentativas de aproximação entre a procura e a oferta de justiça, as discrepâncias entre tais pólos sempre foram constantes. Em parte, isso se dá porque, de acordo com Boaventura de Souza Santos (1995, p.167), os novos direitos sociais e econômicos, por não terem mecanismos para impor o seu respeito, não têm passado de meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.

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Esse distanciamento entre a procura e a oferta de justiça, que não se restringe somente à esfera econômica, traz implícitos também outros fatores como o aspecto social e o cultural. Prova concreta disso é aludida por Dalmo de Abreu Dallari (1996, p.5), ao relatar acerca dos juízes, dizendo que “a magistratura, na prática, ficou imobilizada, voltada para si própria, incapaz de perceber que, em alguma medida, os outros (poderes) procuravam adaptar-se ao dinamismo da sociedade enquanto ela estava estagnada”.

É importante esclarecer, portanto, que o acesso à justiça, para nós, traduz-se no acesso à ordem jurídica justa. Delimitando melhor este assunto, Watanabe (1998, p.128) expõe que não significa simplesmente um programa de reforma institucional, mas se constitui num instrumento de transformação social e no processo de criação de uma nova concepção ideológica, que considera o povo como destinatário das normas jurídicas.

Objetivando detectar e resolver alguns problemas concernentes ao acesso à justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1998, p.9) apresentam uma visão abrangente, segundo os autores, antes, o direito ao acesso significava simplesmente a possibilidade de o indivíduo propor ou contestar uma ação. Dessa maneira, “a justiça, como os outros bens no sistema laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos...”.

Assim, alegam que existem elementos que se interpõem ao acesso efetivo à justiça, os quais consistem, basicamente, nas custas judiciais, na possibilidade das partes e nos problemas especiais dos interesses difusos.

Sabe-se que a resolução formal de litígios é dispendiosa, não apenas pelos gastos com o processo e sua resolução, mas também devido aos honorários advocatícios. O Estado arca com o salário dos juízes e dos auxiliares de justiça, contudo ficam ainda, ao encargo das partes, as custas judiciais e o valor pago aos advogados. Esta situação revela-se um óbice, pois os honorários advocatícios são elevados e nem sempre há proporcionalidade entre o custo do processo e o valor da causa. Além disso, a morosidade contribui para o aumento dos gastos.

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A possibilidade das partes, por sua vez, consiste nas vantagens que cada pólo da relação processual possui quando comparado ao outro. Nesta esfera, surgem diferenças capazes de prejudicar uma das partes. Essas podem se manifestar no âmbito financeiro, os recursos; no cognitivo, a aptidão para identificar seus direitos; e na freqüência das experiências judiciais...

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