Biodireito, complexidade e responsabilidade: uma análise jurídica da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil

AutorIsabel Cristina Brettas Duarte
CargoMestre em Direito e acad&ecirc;mica do 8&deg; semestre do curso de Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Miss&otilde;es &#x2013;<i> Campus</i> de Santo &Acirc;ngelo/RS, Mestranda em Letras e Professora no Curso de Direito da URI &#x2013;<i> Campus</i> de Frederico Westphalen/RS. Advogada.
Páginas190-212

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Introdução

O presente artigo é fruto da pesquisa desenvolvida na dissertação de Pós-Graduação Strictu Sensu – Mestrado em Direito da URI – Campus de Santo Ângelo, intitulada “O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas e sua aplicabilidade no contexto da Bioética: uma análise jurídica da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil”, defendida no dia 22 de junho de 2009. Por razões metodológicas, ora optamo s por enfocar o estudo da matriz teórica do trabalho, qual seja, o Princípio Responsabilidade, e sua aplicação na liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, principalmente no que toca às considerações finais da pesquisa, mas isso exige que se contextualize essa temática e sua importância no âmbito do Biodireito.

Ao que se constata, a Biologia vem alterar por completo as noções tradicionais de procriação e filiação, fazendo-se imprescindível a junção entre Bioética e Biodireito, ou seja, da ética, com os valores morais de uma sociedade e, ao mesmo tempo, limitando e impondo leis que assegurem o respeito à vida humana, de forma a coagir e a limitar o progresso científico. Há de se destacar que a abordagem do assunto sob a lente dos direitos humanos ganha destaque no século XX, em especial após a II Guerra Mundial, quando é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como após a promulgação, pela ONU, em 10 de novembro de 1975, da Declaração sobre a utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade.2

O Direito é um fenômeno do mundo da cultura, a qual está imbricada na sociedade, demonstrando que a discussão ultrapassa as lindes jurídicas, penetrando nas diferentes formas de culturas e sociedades que coexistem na contemporaneidade – numa situação multicultural por excelência. E do reconhecimento de que a ciência também é falha decorre a insegurança - pode-se dizer que hostilizada na seara jurídica -, que traz o medo e a desconfiança ao novo. Nesse sentido, lembra ao Direito – em sua arraigada busca pela segurança jurídicaPage 191de que a insegurança, a provisoriedade e a relatividade fazem parte da nossa condição humana.

Apesar de e justamente por ser um tema polêmico sobre o qual não há respostas objetivas e imediatas, o importante e gratificante é trilhar o caminho, descobrindo que a cada passo dado, haverá muitos outros passos. Por isso, o papel do Direito é trilhar esse caminho juntamente com outras áreas do conhecimento, de forma a estar num permanente processo de discussão e reflexão. O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento através dos tempos obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem implicações jurídicas. Assim, se mudam os tempos, mudam as vontades – e muda o Direito, que necessita amparar eficazmente as novas demandas que lhe são colocadas.

Assim, a questão central deste trabalho, cujo desafio é respondê-la no decorrer da pesquisa, é verificar se o Princípio Responsabilidade jonasiano está presente na decisão do STF que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, investigando como a referida decisão albergou esse princípio e se de fato a sua consideração é imprescindível no deslinde da questão, a partir da premissa de que é preciso pensar a mudança de paradigmas3 trazida pela ciência, situação esta vivenciada na sociedade multicultural. Afinal, tais rupturas não só têm o condão de transformar conceitos, mas também de transformar a vida das pessoas, ensejando, também, transformações no conhecimento jurídico e, principalmente, o anseio por novos conhecimentos que precisam se integrar ao arcabouço jurídico para que o Direito possa dar respostas satisfatórias e coerentes às novas questões que lhe são postas.

1 O agir bi otecnológico no contexto do biodireito

Primeiramente, pode ser traçado um paralelo entre a diferenciação de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais com a que existe entre Bioética e Biodireito. No primeiro caso, os Direitos Humanos ao serem agasalhados em seio constitucional transforman-se em Direitos Fundamentais. A Bioética, quando sai do campo axiológico e é positivada no ordenamento jurídico, transmuda-se em Biodireito.4 Se inúmeras são as indagações relativas à Bioética, estas multiplicam-Page 192se quando há referências ao Biodireito, que é o mais recente ramo do Direito que estuda as normas reguladoras da conduta humana perante as novidades apresentadas pela medicina e exploradas pela biotecnologia, numa visão que engloba o resultado presente e futuro na preservação da dignidade humana. Para Norberto Bobbio:

A esfera do Biodireito é um campo que se caminha sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a pessoa ou a espécie humana. O Biodireito engloba os denomin ados direitos de Quarta geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos dos avanços tecnológicos na biomedicina, nos quais se quer fundamentar a esperança de construção de uma nova humanidade. Após os direitos individuais (de 1º geração), os direitos sociais (de 2º geração) e os direitos ecológicos (de 3º geração), vivemos os de 4º geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.5

Cabe ao Direito, através da lei, entendida como expressão da vontade da coletividade, definir a ordem social na medida em que dispõe dos meios próprios e adequados para que essa ordem seja respeitada. Criar as leis ou adaptá-las não significa que elas devam evoluir ao sabor dos progressos científicos, fornecendo conceitos adaptados às mudanças sociais que a pesquisa científica induz na definição de vida, pois, isso seria reduzir o Direito a uma função instrumental e livre de todas as referências a valores. Isso porque o Direito veicula um certo número de valores, por conseguinte, deve evoluir para acompanhar o progresso científico e adaptar-se aos avanços médicos, dentro das regras preestabelecias pela sociedade.

O Biodireito se relaciona a uma nova dimensão dos direitos do homem, com as mesmas características inclusivas da democracia. Os direitos reconhecidos, promovidos e garantidos pelo ordenamento (face jurídica) se vinculam, na mesma pessoa humana, os respectivos deveres para consigo e para as demais pessoas humanas (face ética). Por isso, o Biodireito não deve se nortear pura e simplesmente pelo critério da validade formal, na medida em que expressa o compromisso operacional com a validade substancial, material, isto é, com a validade ética, influenciando o traçado de uma hermenêutica jurídica de promoção da vida.6

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Portanto, o ponto crucial do debate uma série de questões relacionadas ao Biodireito reside na falta de informação técnica dos juristas, que desconhecem os problemas biológicos atinentes à vida humana. Esse desenvolvimento da biotecnologia está indissociavelmente atrelado à evolução da sociedade multicultural, mas principalmente quando se fala em manipulações genéticas é que se pode perceber a importância do assunto e o quanto ele carece de reflexão ética acerca dos seus limites. Já houve bastante desencantamento com os rumos da tecnologia, principalmente com sua utilização na Segunda Guerra Mundial, quando surgiu no horizonte um poder tecnológico onipotente, utópico e de efeitos perversos, e também da biotecnologia, com possibilidades de transformações aleatórias do homem e da natureza. Tudo isso traz a necessidade de novos imperativos para o agir tecnológico, que atendam os novos espaços de ação e de poder, principalmente no que tange ao uso responsável da tecnologia,7 situação esta em relação à qual o Direito não pode ficar à margem.

2 A complexidade, o direito e a ciência

Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tanto podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar consequências imprevisíveis no futuro, verifica-se o temor expressado por Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto pode industrializar a vida como biologizar a indústria”.8Essa idéia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes da história humana, percebe-se que nunca houve nada que pudesse representar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética,9 que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de medo e insegurança. Porém a principal preocupação hoje não é julgar a ciência, mas sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre os novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujos questionamentos eram até pouco tempo inimagináveis.

Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social, e que a ciência não é científica, pois sua realidade é multidimensional, ou seja, os efeitos da ciência envolvem riscos e não são simplesPage 194nem para o melhor, nem para o pior; são profundamente ambivalentes. Isso tudo porque “a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa. A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade”.10

É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida: “o ser humano acabou por fazer da...

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