O poder local como espaço de articulação da cidadania e construção do direito social: a refundação política do estado democrático pela ação comunicativa de jürgen habermas

AutorCharlise Paula Colet - Viviane Teixeira Dotto Coitinho
CargoMestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC - Possui especialização em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005)
Páginas137-163

Page 139

1. Notas introdutórias

Nas esferas de menor extensão, é possível uma efetiva participação dos atores sociais considerados excluídos, ou incapazes de fazer frente ao processo complexo de articulação nos espaços nacional ou transnacional. A redefinição do debate acerca dos locais de poder pode contribuir para retornar a centralidade ao cidadão, atualmente ofuscado

Page 140

pela globalização, que causa cada vez mais exclusão, trazendo uma parcela de pessoas alheias ao processo decisório.

É necessário proporcionar um consenso para que o cidadão participe de forma ativa no processo de desenvolvimento de um Estado Democrático. A esfera local, nesta senda, se revela como o contexto possível para situações que privilegiem a qualidade de vida, a dignidade da pessoa humana. A presença do cidadão no processo decisório na esfera local é um meio eficaz para combater o distanciamento dos centros do poder.

Daí, os desafios adquirirem novos formatos: como pensar a democracia contemporânea sob a primazia de uma sociedade de mercado capitalista, que contrapõe o poder global ao poder local?

Na busca de possíveis respostas a tal indagação, o trabalho pretende analisar a contribuição de Jürgen Habermas, com seu modelo procedimental-deliberativo que, aplicado a experiências como a brasileira (Orçamento Participativo, Conselhos Gestores e Audiências Públicas, entre outras)1, permite que a inclusão social seja configurada de acordo com o desenho institucional em cada contexto geopolítico, com isso sobrelevando o poder local.

2. Democracia e ação comunicativa: fatores necessários em uma sociedade

Habermas (2003, p. 285) compreende o Estado Democrático de Direito como uma associação de cidadãos livres e iguais de forma que possam manifestar suas opiniões a partir da ação comunicativa, que será referência para democracia hodierna. Os atores sociais só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso se fizerem uso adequado de sua autonomia política como cidadãos, pois dentro do Estado eles agem na busca do entendimento, na medida em que os confli-

Page 141

tos oriundos pelos atos de fala sejam superados pelos argumentos reconhecidos e validados.

Mas para a democracia ser realizada pelos atores sociais é necessária a inclusão destes com igualdade de direitos (HABERMAS, 2003), igualdade esta que há de ser substancial não só no plano político. Assim, a fonte de toda legitimidade está no princípio da soberania do povo (HABERMAS, 2003, p. 98). A ideia é demonstrar que a legitimidade da lei é baseada na racionalidade imanente à própria lei, que por sua vez é dependente e aberta para as dimensões de uma racionalidade comunicativa subjacente ao medium do Direito, de tal forma que, nas sociedades modernas, a lei possa cumprir o papel de estabilização de expectativas pela preservação de uma conexão interna com as forças socialmente integradoras da ação comunicativa. O princípio da democracia, conforme preceitua Habermas (2003, p. 107)

[...] resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu velo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito de liberdade subjetivas de ação em geral - constitutivo para a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.

É necessário, portanto, reconciliar democracia e direitos individuais, de tal forma que nenhum dos dois se subordine ao outro. O sistema de direitos não pode ser reduzido nem a uma perspectiva moral dos direitos humanos, nem a uma perspectiva ética da soberania popular porque a autonomia privada dos cidadãos não deve ser posta nem aci-

Page 142

ma nem subordinada à sua autonomia política. A origem do sistema de direitos e do princípio da democracia reflete a mútua pressuposição da autonomia pública e privada dos cidadãos, que por sua vez é derivada d interpenetração da forma legal e do princípio do discurso que deve acontecer se os cidadãos regulam sua vida em comum pelos meios do direito positivo.

Assim, o poder político é reafirmado pela ação comunicativa e fica legitimado pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente. Para tanto, o poder exige a transmissão da competência legislativa para a totalidade dos cidadãos, que são os únicos capazes de gerar a ação comunicativa de convicções de interesses comuns. O conteúdo do princípio da soberania popular só se esgota através: a) do princípio que garante esferas públicas autônomas e b) do princípio da concorrência entre os partidos. Ele exige uma estruturação discursiva das arenas públicas nas quais circulações comunicativas se soltam do nível concreto das simples interações. Tais arenas precisam ser protegidas por direitos fundamentais, levando em conta o espaço que devem proporcionar ao fluxo livre de opiniões públicas. O espaço local significa a garantia jurídica de uma autonomia social que atribui aos cidadãos chances iguais de utilizar seus direitos políticos de participação e de comunicação.

Nessa senda, diz Hermany (2007, p. 251) que:

De fato, a efetividade dos espaços de democracia participativa está diretamente relacionada à consolidação da cidadania e à conseqüente participação no processo de obtenção do consenso. Nesse aspecto, resta questionar qual o espaço ideal, ou com melhor potencialidade de atuação, da sociedade na solução de seus conflitos e na elaboração conjunta das estratégias de crescimento. Mesmo os espaços de participação popular, previstos pelo orde-

Page 143

namento jurídico, como é o caso das audiências públicas no processo orçamentário, adquirem maior efetividade a partir de uma estratégia local. Tal ocorre porque a esfera local permite um processo maior de comunicação e controle social, devendo-se ressalvar, contudo, a necessidade de um patamar institucional referencial capaz de conciliar, pelas razões já expostas, estratégias participativas com institutos próprios do modelo representativo.

Esse espaço público não coincide plenamente com o modelo do Estado de Direito burguês, que se limita a garantir a segurança interna e externa, transferindo todas as demais funções para uma sociedade econômica autorregulada, liberada de regras do Estado. O princípio da subsidiariedade exige uma sociedade civil portadora de relações de associação, além de uma cultura política suficientemente desapegada de estruturas de classe, justamente para que se possibilite o deslocamento da esfera global para local, em que o conhecimento das necessidades sociais se tornam mais palpáveis, possibilitando uma efetiva participação dos atores sociais considerados excluídos.

Tem-se aqui a ideia de Habermas (2003, p. 221), para quem:

[...] a organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação ad-

Page 144

ministrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social - através da estabilização de expectativas e da realização de fins coleti-vos.

Surge, então, a proposta de direito social condensado, relacionado à efetiva participação dos atores sociais na obtenção do consenso, como intermédio entre procedimentalismo e o substancialismo, ampliando com isso o espaço de articulação dos atores sociais a partir da esfera local. A propósito, Muller (1995, p. 146) assevera que:

Admite-se geralmente que a democracia é o projecto político que melhor corresponde ao de uma sociedade de justiça e liberdade. Mas o próprio conceito de democracia encontra-se coberto por uma ambigüidade fundamenta. Mas a palavra democracia significa igualmente um governo que respeita as liberdades e os direitos do homem, de qualquer homem e de todos os homens. É claro que estes dois significados não são contraditórios, mas para realizar a democracia, o povo deve trazer consigo a exigência ética que funda o ideal democrático. A democracia é uma aposta na sabedoria do povo. Infelizmente, a sabedoria democrática do povo nem sempre está presente no acontecimento político. O povo pode tornar-se uma multidão, e a paixão apodera-se mais facilmente de uma multidão do que a razão. Na realidade, a verdadeira democracia não é popular, mas cidadã. A democracia que ser o governo dos cidadãos, pelos cidadãos e para os cidadãos. É a cidadania de cada mulher e de cada homem da cidade que funda a democracia. É o exercício da cidadania que dá à existência do indivíduo a sua dimensão pública.

Page 145

Nesse sentido, o exercício da cidadania é pressuposto para a democracia ao limitar o poder dos governantes, impedindo que se torne arbitrário (MULLER, 1995, p. 147). Isto é: as decisões públicas, feitas com participação dos cidadãos (ainda que estes possam estar em minoria), forman um processo de construção da emancipação social (BAQUERO, 2007, p. 214).

A sociedade é um projeto em constante construção, e o "homem" um ser portador de razão com possibilidade de compreensão que é...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT