Marx e a forma jurídica em O capital: um embate com Pachukanis/Marx and the juridical form in The Capital: a dialogue with Pachukanis.

AutorSartori, Vitor Bartoletti

Introdução

No presente artigo abordaremos um tema clássico da crítica marxista ao Direito. Tratase da forma jurídica, consagrada por Pachukanis como o ponto de partida essencial do posicionamento marxiano--e marxista--sobre o Direito. (Cf. PACHUKANIS, 1988) O autor é bastante conhecido por ter compreendido e aplicado o método de O capital de Marx, sendo praticamente consenso no Brasil--devido à importante influência de Márcio Naves (2000)--tomar como suposta a fidelidade do jurista soviético ao legado marxiano. Isto é visto, geralmente, como algo incontestável. Diz Naves, neste sentido, "Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao Direito encontradas em O capital--e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê--mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano." (NAVES, 2000, p. 16) Ou seja, a partir deste ponto de vista, ao se ter em conta a relação entre Direito e marxismo, o ponto de partida de qualquer marxista deveria ser a obra pachukaniana de 1924, Teoria geral do Direito e o marxismo. A rigor, segundo a leitura de Naves, inspirada em um estudo cuidadoso de Althusser, Pachukanis teria trazido as passagens de O capital que fazem referência ao Direito com cuidado ímpar, sendo fiel ao método marxiano. (Cf. NAVES, 2000, 2014) Ou seja, no Brasil (1), o cenário da crítica marxista ao Direito tem como referência obrigatória a obra pachukaniana, de modo que deixar de considerar este importante autor seria, no mínimo, descuidado. No entanto, seria realmente possível tomar como o ponto de partida inquestionável na leitura de Marx a obra pachukaniana? Aqui, analisaremos o tema no que toca à forma jurídica, ou melhor, ao modo pelo qual a categoria formas jurídicas está em O capital.

A questão ainda ganha contornos essenciais na obra pachukaniana, ao passo que haveria uma relação entre forma mercantil e forma jurídica, o que estaria presente já na leitura da obra magna de Marx. Segundo esta interpretação, a posição inicial sobre a forma jurídica não precisaria mais ser buscada na escavação da obra do próprio Marx, tendo Pachukanis dado à tônica correta ao assunto, tanto no que toca à leitura de O capital quanto no que diz respeito à conformação do pensamento marxista. Ou seja, sobre este ponto, a fidelidade pachukaniana a Marx seria clara.

Ainda segundo o autor russo, haveria uma relação indissolúvel entre a forma jurídica e a forma mercantil. E, deste modo, "não deixa de existir um vínculo interno indissociável entre as categorias da economia mercantil e monetária e a própria forma jurídica". (PACHUKANIS, 1988, p. 7) Assim, a noção de forma jurídica - relacionada às categorias da economia mercantil (2)--seria de enorme relevo tanto para a compreensão marxiana e marxista do Direito quanto no entendimento de uma importante dimensão da obra marxiana (3), aquela que diz respeito ao aspecto jurídico da sociedade capitalista, e mesmo na transição socialista. (Cf. GOLDMAN, 2014; HEAD, 2004) Tendo isto em conta, pretendemos analisar como a noção de forma jurídica aparece em O capital de Marx, obra na qual Pachukanis, em grande parte, baseia-se. Como pretendemos demonstrar, tal objetivo justifica-se, primeiramente, mas não só, pela posição que a categoria forma jurídica ocupa em O capital de Marx. Não obstante o tema parecer já estar resolvido na teoria marxista, nosso artigo pretende demonstrar que isto está longe de acontecer. Analisaremos, assim, primeiramente a posição da categoria formas jurídicas em O capital, depois, procuraremos explicitar algumas implicações importantes do fato de a expressão não aparecer explicitamente no livro I, mas no livro III; posteriormente, analisaremos as passagens do livro III da obra magna de Marx em que a categoria aparece tendo em conta a noção de justiça, a forma econômica do juros e, por fim, a forma da renda fundiária.

  1. Pachukanis diante da posição da forma jurídica em O capital

    Um passo anterior à aceitação da análise pachukaniana sobre Marx, portanto, passa por uma análise da categoria formas jurídicas (e não forma jurídica já que a expressão geralmente aparece no plural) em O capital. Intentamos realizar esta tarefa aqui a partir daquilo que o filósofo brasileiro José Chasin chamou de análise imanente, e que só pode partir da compreensão dos termos do próprio Marx, da objetividade de seu texto, no caso de O capital. (4)

    Uma questão anterior se põe, porém: trataremos aqui do modo pelo qual se dá a análise marxiana das formas jurídicas. E mesmo que o posicionamento de Marx for distinto daquele de Pachukanis, isto não inviabiliza a teoria pachukaniana, como teoria marxista. Ela, em diversos sentidos, podemos dizer, destaca-se mais pelas suas contribuições originais--em grande parte, elaboradas em meio ao desenvolvimento inicial da Revolução Russa (Cf. HEAD, 2004) - que por sua análise do corpus da obra marxiana. (Cf. SARTORI, 2015) Porém, há de se perceber: certamente é diferente considerar que o tratamento do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo é aquele propriamente marxiano sobre a questão e compreender que não se trata exatamente disso. Noutros lugares, a questão já foi colocada sobre a categoria de pessoa em Marx e em Pachukanis (Cf. SARTORI, 2019 a), bem como sobre o método pachkaniano (Cf. SARTORI, 2015; PAÇO CUNHA 2014, 2015) e sobre a relação entre fetichismo da mercadoria e fetichismo jurídico (Cf. PAÇO CUNHA, 2015) de modo que é bom realizar também uma análise detida sobre categoria formas jurídicas, ao se ter em conta Pachukanis, mas procurando primeiramente compreender como que a categoria--central à crítica marxista do Direito--aparece em O capital.

    Isto pode ser importante, não para desvalorizar a obra do autor soviético, mas para mostrar que é possível ser fiel à obra marxiana sem necessariamente ter como ponto de partida primordial, e a qual todos os elementos do Direito devem retornar, o seguinte: a tese sobre a relação entre forma mercantil, jurídica e as categorias do sujeito de direito e de contrato. (5) Se Pachukanis mostrou que não se pode desconsiderar os aspectos da obra marxiana que passam por isto, talvez, ao tratar do Direito--e das transações, das ficções e das formas jurídicas--o central não esteja somente na ênfase trazida pelo autor soviético a partir do livro I. E deve-se dizer: tal abordagem, com a qual pretendemos debater, tem maior centralidade que no autor da Teoria geral do Direito e o marxismo em autores brasileiros como Márcio Naves (2000, 2014), Celso Naoto Kashiura Jr. (2009, 2014) e, de modo mais didático--com influência de Hirsch--Alysson Mascaro (2012). (6) Por isso também, no Brasil, é preciso analisar a temática com bastante cuidado, reconhecendo os méritos do jurista soviético, que não são poucos (Cf. SARTORI, 2015), e questionando se realmente seu ponto de partida é, no que toca a leitura de Marx, correto. Para tanto, é bom situar a teorização pachukaniana.

    Pachukanis, na esteira de autores como Isaac Rubin (1987), que têm por central a categoria sociedade mercantil, vem a enfatizar bastante a importância do capítulo I de O capital. Lá Marx analisa a mercadoria e, a partir dela, expõe as determinações gerais do valor. Com isso, tem-se um passo importante no campo do marxismo: destacar a teoria do valor e sua relevância no tratamento tanto da economia política (em uma crítica à economia política) quanto ao se ter em mente o Direito ou qualquer outro fenômeno social. Os méritos pachukanianos, ainda mais quando se considera a escassez de abordagens como esta na década de 1920 (Cf. ANDERSON, 2004), é gigantesco. Ele, juntamente com György Lukács em História e consciência de classe (2003), trouxe à tona certa centralidade da temática do fetichismo da mercadoria. E isto não é pouco diante de um cenário marcado por certas tendências positivistas do "marxismo" de um Kautsky, na Segunda Internacional, ou de Bukharin, ambos duramente criticados por Lukács. (7)

    Ao mesmo tempo, porém, é preciso destacar: ao analisarmos a obra marxiana com cuidado, percebemos que, de modo algum, é possível derivar toda a analítica de O capital (8) do fetichismo da mercadoria (Cf. ALVES, 2013); e isto se dá até mesmo porque os livros II e III não podem--como parece sugerir Lukács em História e consciência de classe--ser vistos como se suas determinações estivessem no livro I e, em especial, no capítulo I da obra principal de Marx. Em verdade, ao se ter contato com a totalidade de O capital, percebe-se que as várias metamorfoses da mercadoria precisam ser analisadas com cuidado, tendo-se, ao mesmo tempo, desdobramentos da formamercadoria e a autonomização de formas e figuras econômicas que se afastam da primeira. Juros, renda, por exemplo, não podem ser explicados sem esta simultânea indissociabilidade e autonomização diante da mercadoria. Figuras econômicas concretas, como lucro, ganho empresarial, preço de custo tampouco podem ser vistas somente ao se ter como referência o fetichismo da mercadoria. E, com isto, é necessário que se considere os diferentes níveis de abstração em que aparecem as formas jurídicas em O capital. Estando elas presentes principalmente no livro III, deve-se considerar as especificidades deste livro, de modo a, no mínimo, complementar a análise que se tornou clássica da forma jurídica, aquela trazida por Pachukanis a partir do livro I.

    Ou seja, Pachukanis, juntamente com importantes autores, procura enfatizar tanto a importância da teoria do valor marxiana quanto à necessidade de se remeter ao fetichismo da mercadoria ao tratar da sociabilidade como um todo. Com isto, há uma ênfase bastante grande no livro I de O capital e, em especial, no final deste capítulo. Ou seja, com Rubin e Lukács de História e consciência de classe, o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo traz uma grande centralidade ao livro I de O capital. E é preciso dizer com todas as palavras: mesmo que tal abordagem possa trazer...

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