Marxist assumptions for a critical listening of Samba/Pressupostos marxistas para uma escuta critica do Samba.

AutorCit, Simone
CargoResena de libro

Cai no chao Um corpo maltrapilho Velho chorando Malandro do morro era seu filho La no morro De amor o sangue corre moca chorando Que o verdadeiro amor sempre e o que morre Menino quando morre vira anjo Mulher vira uma flor no ceu Pinhos chorando Malandro quando morre Vira samba (1) (Chico Buarque / Malandro quando morre) Houve um periodo no Brasil no qual textos que positivavam a malandragem e o malandro deram o tom na producao da cultura nacional. O ensaio Dialetica da Malandragem--Caracterizacao das Memorias de um sargento de milicias, escrito por Antonio Candido e publicado pela primeira vez no inicio da decada de 1970, auge desse periodo, e um dos mais emblematicos. Nele, o critico trabalha com um metodo de analise--de bases marxistas, segundo Roberto Schwarz (1)--utilizado no sentido de potencializar o romance de Manuel Antonio de Almeida.

Ha que se iniciar esse texto ressaltando que a posicao metodologica adotada por Candido em Dialetica da Malandragem esta presente em outras analises suas de romances com tematicas diversas, ja que "em literatura, o basico da critica marxista esta na dialetica de forma literaria e processo social" (SCHWARZ, 2006, p. 129). Ainda que minha aproximacao teorica tenha, inicialmente, acontecido por conta do conteudo, a malandragem, e da sua afinidade com o universo do samba, o metodo da reducao estrutural em Candido nao deve ser reduzido, unicamente, a dialetica da ordem e da desordem presente no romance de Manuel Antonio de Almeida. Preciso deixar claro que o que procuro aqui e refletir sobre possiveis desdobramentos esteticos da reducao estrutural de dados externos, fundamentalmente marxista, num universo afim a malandragem: o samba.

Retomemos a historia da profusao de escritos sobre a malandragem localizando sua origem no momento da emancipacao politica de 1822, quando a intelectualidade local estava preocupada com a questao da identidade nacional brasileira. Ocasiao em que, havendo a necessidade de formalizar a separacao do pais da metropole portuguesa, foram tomadas algumas medidas estrategicas urgentes, como, por exemplo, fundar faculdades de medicina visando a melhoria da saude da populacao que vivia em precarias condicoes de higiene. Para alem desse desafio, era tambem premente a criacao de uma inteligencia local. Nesse sentido, em 1826 foram fundadas as primeiras faculdades de direito e em 1839 o Instituto Historico e Geografico Brasileiro. Esse promoveu em 1844 seu primeiro concurso com o sugestivo titulo "Como escrever a historia do Brasil". "[...] apos equipar o pais de medicos e advogados, era preciso modelar uma historia para a nacao, ja que, como se comentava abertamente nas paginas da revista do instituto, nao ha pais sem historia" (SCHWARCZ, 1995, p.52).

O alemao Karl von Martius, vencedor do concurso, apontou como a principal caracteristica positiva da nossa historia a miscigenacao, defendendo o ponto de vista no qual deveria ser prioridade mostrar que, no desenvolvimento do Brasil, se acham estabelecidas as condicoes para o aperfeicoamento das tres racas humanas. Inaugurou, assim, o conhecido "mito das tres racas" (2). A partir de Von Martius, a ideia de que o Brasil era um laboratorio racial singular constou em diversas teorias que valoravam a miscigenacao de uma forma predominantemente negativa. A mesticagem surgia nesse contexto, portanto, como uma grande incognita, uma ambiguidade instaurada bem no meio do mito otimista das tres racas.

A questao racial ainda continuou sendo, durante um bom tempo, o argumento fundamental na definicao da identidade nacional; a partir do final dos anos 1920, no entanto, esse argumento passou a ser questionado e comecaram a ocorrer explicacoes baseadas em fatores sociais, economicos e culturais. Com base nesta mudanca de referencia, politicas culturais foram engendradas com o intuito de viabilizar a identidade brasileira.

Esse contexto historico contribuiu para o surgimento de uma obra com o teor de Casa-grande & senzala (2001), que teve sua primeira edicao em 1933. Embora Freyre tenha sofrido inumeras criticas, sobretudo dirigidas a sua tese da democracia racial, Casagrande & senzala permanece ate hoje como uma obra instigante, seja pela linguagem inovadora, quase literaria, que o autor utiliza na escrita do livro, seja pela positivacao da mesticagem, assumida na contramao das tendencias da epoca. Ou, ainda, pelo significado ideologico de suas afirmacoes que ainda suscitam debates travados por uma legiao de intelectuais, tantos anos depois da publicacao do livro.

Explicacoes de ordem cultural na busca da identidade nacional passaram, assim, a ser predominantes no primeiro governo de Getulio Vargas. Os intelectuais do Estado Novo criaram projetos que assimilaram o mestico e sua cultura como simbolos nacionais: apos decadas e decadas de repressao policial, a capoeira foi oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937; a feijoada foi convertida em prato tipico brasileiro (3); o samba passou a ser o ritmo que representava o pais, aqui e la fora. Absorver a cultura mestica, no entanto, nao significava aceitar, entre outros tracos dessa cultura, o samba malandro, uma pedra no sapato do governo trabalhista de Vargas. A politica getulista interessava o mestico como simbolo, desde que apartado da cultura malandra. Assim, o chamado "samba da legitimidade" (4), foi produto da ideologia getulista; Bonde de Sao Januario, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, lancado em 1941, e um paradigma deste tipo de samba, em que o texto formalizava a valorizacao do trabalho e a repressao a cultura malandra.

Quem trabalha e que tem razao Eu digo e nao tenho medo de errar O bonde Sao Januario Leva mais um operario: Sou eu que vou trabalhar Antigamente eu nao tinha juizo Mas resolvi garantir meu futuro Vejam voces: Sou feliz, vivo muito bem A boemia nao da camisa a ninguem E, digo bem (Ataulfo Alves & Wilson Batista/O Bonde de Sao Januario) Assim, nesse periodo, simultaneamente ao processo de absorcao do mestico e de sua cultura como simbolos de identidade nacional, ocorre a rejeicao do malandro real e o cultivo de sua desvinculacao da ideia da mesticagem. Esse esforco culmina com a conversao em icone nacional do personagem Ze Carioca, um malandro zoomorfico e caricato, tracado por Walt Disney sob encomenda do governo norte-americano, para as acoes da politica da boa vizinhanca entre Estados Unidos e Brasil.

Os anos que se seguiram a era Vargas, porem, inauguraram uma nova fase na abordagem do malandro e da malandragem por intelectuais brasileiros. O tema foi se tornando cada vez mais significativo para pensadores e artistas que focaram em seu carater transgressor, abordando-o ostensivamente a partir da decada de 1960: em 1961, a peca de Nelson Rodrigues Boca de Ouro, foi encenada no Rio de janeiro. 1963 e o ano de publicacao da primeira edicao da coletanea de contos Malagueta, Perus e Bacanaco, de Joao Antonio, uma historia de tres malandros jogadores de sinuca percorrendo a cidade de Sao Paulo durante uma madrugada. Em 1966 estreia o musical Vidigal, de Millor Fernandes, uma adaptacao teatral do romance Memorias de um sargento de milicias. E 1969 e o ano da estreia da adaptacao de Macunaima para as telas. Depois de passar decadas entre a prisao e o ostracismo, o malandro capoeirista Madame Sata retorna a cena concedendo uma entrevista ao jornal O Pasquim. A entrevista contribuiu para revigorar o interesse pelo mito do malandro carioca, resgatando um tanto de realidade e um tanto de ficcao, difusamente retidos nas recordacoes do controverso malandro, sobre o violento submundo carioca do inicio do seculo XX. E ainda, publicado pela primeira vez nesse periodo, na decada de 1970, Carnavais, malandros e herois--para uma sociologia do dilema brasileiro, de Roberto DaMatta, foi referencia importante para o assunto.

E Gilmar Rocha quem aponta, ainda, outros textos relevantes e denomina o grande fluxo de producoes teoricas surgidas a partir dos...

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