Medidas de Emerg

AutorFilho, Mamede Said Maia

Introdução

A pandemia do novo coronavírus representa um evento cujo alcance e velocidade de propagação a torna diferenciada de outras pandemias que a humanidade já experimentou. Como assinala Esteves (2020), se ao longo da história as mudanças de hábitos e padrões de relacionamento e produção provocadas por diferentes eventos ocorreram em geral de maneira lenta, durante a pandemia do coronavírus as pessoas tiveram que alterar seu modo de viver de forma repentina. O confinamento foi a principal alternativa encontrada pela ciência e pelos governos da maioria dos países para o controle da pandemia, com metade da população mundial ficando confinada em casa ao mesmo tempo (ESTEVES, 2020). Tratou-se de um evento que levou à adoção, em todos os continentes, de diversas medidas na seara jurídica, as quais variaram conforme as características de cada governo, ainda que no essencial guardassem pontos consonantes.

Regra geral, foram tomadas medidas restritivas temporárias, com a decretação de estados de emergência e de calamidade pública, normalmente com respaldo do Parlamento e do Judiciário. Como traço comum, o fato de atribuírem amplos poderes ao Executivo, relacionados a medidas na área sanitária, orçamentária ou na restrição a direitos individuais, como a liberdade de locomoção, entre outros. Ao tempo em que regimes autoritários usaram a crise para endurecer seu controle político, governos democraticamente eleitos combateram a pandemia concentrando poderes de emergência e utilizando instrumentos cuja adoção só seria justificável em momentos de exceção constitucional (IDEA, 2020).

A fim de abordar, de forma contextualizada, as medidas de emergência adotadas no enfrentamento à Covid-19 no Brasil, o presente artigo discorre inicialmente sobre o estado de defesa e o estado de sítio, instrumentos que compõem o chamado "sistema constitucional de crises", conjunto de normas constitucionais que visam restabelecer a normalidade institucional quando esta se encontrar ameaçada. Trata, em seguida, das medidas emergenciais implementadas, discutindo seu alcance e abrangência, em particular no que se refere às limitações impostas a direitos constitucionalmente consagrados. Busca demonstrar, ainda, que tais medidas não necessariamente implicam em retrocesso democrático; antes pelo contrário, contribuíram para impulsionar governantes recalcitrantes a adotar providências para proteger a saúde pública. No bojo do sistema de freios e contrapesos, o Legislativo e o Judiciário, assim como os governos locais, exerceram papel de destaque para garantir a efetividade das dinâmicas que envolvem o combate à crise sanitária.

  1. Os sistemas de controle de crises

    Os Estados em geral possuem mecanismos político-jurídicos que buscam assegurar a estabilidade do sistema institucional. Estabilidade essa que se identifica com a ideia de "segurança", entendida como "síntese de conservação e de desenvolvimento, conforme os princípios constitucionais" (VERGOTTINI, 1998, p. 312). A defesa do Estado e das instituições democráticas compreende as modalidades organizativas e funcionais destinadas a garantir os valores essenciais sintetizados no conceito de segurança. Nem sempre há uma indissociável inter-relação entre defesa e uso de força armada, embora seja exato considerar que, nos casos limites, o recurso a providências de cunho militar possa ser a última alternativa de que um Estado se utiliza para enfrentar agressões estrangeiras (VERGOTTINI, 1998, pp. 312-313).

    Quando a agressão se processa no interior do ordenamento, utiliza-se expedientes preventivos e repressivos que assumem um papel complementar com relação às opções militares em matéria de defesa, como a declaração de estado de sítio, a proclamação da lei marcial, a instituição de jurisdições de exceção, a intervenção federal etc. Embora os países tratem do tema sob distintos enfoques e variações terminológicas, pode-se considerar, com Carvalho (2012, p. 16), que os sistemas constitucionais de controle das crises que põem em risco a estabilidade institucional e a ordem pública gravitam em torno de dois modelos básicos: (i) o da lei marcial, típico dos ordenamentos anglo-saxônicos, que é jurisprudencial por essência, como a Inglaterra; e (ii) o do estado de sítio, mais rígido e presente em países de tradição romano-germânica, que se apoia em um direito legislado, como Brasil, França, Portugal e Argentina.

    Para Carlo Baldi (1998, p. 414), ambos os sistemas se ancoram nos ideais e princípios do Estado de direito; entretanto, os ordenamentos da Europa continental adotam mecanismos de gestão de crise cujos instrumentos estão preventiva e legislativamente disciplinados em disposições legais. Diferente do ordenamento britânico, e em particular do norte-americano, em que há "uma certa elasticidade e empirismo na ação de emergência do Governo", porém sempre dependente de recorrer à autoridade jurisdicional para um controle dos atos de direito público postos em prática em face da gravidade da situação (BALDI, 1998, p. 414).

    Como assinala Carvalho (2012, p. 16), a expressão lei marcial pode ter vários sentidos. Transpondo-a para a realidade dos nossos dias, ela compreende, em sentido estrito, o direito do Estado e de seus agentes de usar a força para repelir invasões, insurreições ou tumultos. O estado de sítio, por sua vez, configura "um regime jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente sujeita, em razão de uma situação de perigo para a ordem pública", e que atribui poderes extraordinários às autoridades públicas, criando restrições à liberdade dos cidadãos (BALDI, 1998, p. 413).

    Nos anos que antecederam e nos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, entre 1934 e 1948, diante do desmoronamento das democracias europeias, vários países declararam estado de sítio ou editaram "leis de plenos poderes", assim entendidas aquelas em que se atribui ao Poder Executivo um poder de regulamentação excepcionalmente amplo (AGAMBEN, 2004, p. 18-19). Nesse sentido, em uma série de países--como França, Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Áustria e Alemanha e mesmo em um país neutro como a Suíça--, houve uma sistemática ampliação dos poderes governamentais em razão do permanente estado de emergência causado pela situação de guerra, e que se manteve mesmo após encerrada esta (AGAMBEN, 2004, p. 17). Nos Estados organizados sob a forma de federação foi também largamente utilizado o instituto da intervenção; mais, entretanto, para enfrentar conflitos e refregas políticas no interior das unidades federativas que para combater agressões estrangeiras ou situações que punham em risco a ordem pública, como prevê o texto constitucional brasileiro (art. 34).

    Giorgio Agamben (2004, p. 13) identifica nos Estados contemporâneos, aí incluídos os Estados democráticos, uma permanente situação de emergência, ainda que não explicitamente declarada, a qual ele designa como estado de exceção, "o paradigma de governo dominante na política contemporânea". Situado numa "franja ambígua e incerta, na interseção entre o jurídico e o político" (FONTANA, 1999, apud AGAMBEN, 2004, p. 11), o estado de exceção dá ensejo à adoção de medidas excepcionais que são fruto dos períodos de crise política. Como tais, essas medidas devem ser compreendidas no terreno político, e não apenas no jurídico-constitucional.

    À incerteza do conceito corresponde a incerteza terminológica, e assim o termo "estado de exceção" é comum na doutrina alemã (Ausnahmezustand, e também Notstand, estado de necessidade), mas estranho às doutrinas italiana e francesa, que preferem falar de decretos de urgência e de estado de sítio (état de siège), prevalecendo, na doutrina anglo-saxônica, os termos martial law e emergency powers (AGAMBEN, 2004, p. 15).

    Para Carvalho (2012, p. 37), a expressão "estado de exceção" designa regimes autoritários, desvinculados dos compromissos básicos do constitucionalismo moderno. Os sistemas de crise previstos nas Constituições, a seu ver, são mais adequadamente designados pela expressão "exceção constitucional", pois esta evidencia "uma medida excepcional disciplinada no Direito, e não à sua margem, servindo como mecanismo de salvaguarda da própria Constituição, e não de ruptura". É o caso, na realidade brasileira, do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal, institutos que o ordenamento constitucional prevê que sejam acionados para debelar as situações de crise e restabelecer a normalidade institucional quando esta se encontrar ameaçada, como se verá a seguir.

  2. As medidas de exceção no ordenamento jurídico brasileiro

    Três princípios, no dizer de Bulos (2018, p. 1468), informam o sistema de crises no ordenamento constitucional brasileiro: (i) princípio da necessidade--os estados de defesa e de sítio só podem ser declarados à luz de fatos que os justifiquem, como, por exemplo, conturbações da ordem pública, ameaças à paz social, instabilidades institucionais, calamidades naturais etc.; (ii) princípio da temporariedade--os estados de defesa e de sítio têm prazo de duração preestabelecido no texto constitucional; (iii) princípio da proporcionalidade--os estados de defesa e de sítio devem ser proporcionais aos fatos que justificam sua adoção.

    Fora desses parâmetros, o recurso aos estados de exceção pode caracterizar situações de golpes de Estado, ditaduras e anormalidades institucionais. Esse uso distorcido, no Brasil, de ambos os institutos, assim como da intervenção federal, ocorreu várias vezes no passado, com sua decretação tendo mais o intuito de reprimir simples divergências político-partidárias que defender a Constituição (SILVA, 2009, p. 762). Tal se deu, por exemplo, durante o período do Estado Novo, quando a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, dispôs, em seu art. 186: "É declarado em todo o país o estado de emergência".

    Em compensação, observadas as balizas constitucionais que hoje norteiam a decretação das medidas excepcionais, implanta-se o regime de...

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