Mesa Expositiva (C) - ICMS

AutorValdir de Oliveira Rocha
Páginas109-127

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Substituição Tributária -Operações Internas e Interestaduais

Prof. Tácio Lacerda Gama - Boa tarde a todos! Começo minha participação felicitando os responsáveis por mais esta exitosa edição do Congresso Brasileiro de Direito Tributário do IDEPE na pessoa do seu Presidente, Prof. Aires Fernandino Barreto. Saúdo também os ilustres Palestrantes que me acompanham nesta Mesa e esta seleta audiência.

A crescente utilização da substituição tributária, os inúmeros trabalhos de elevada qualidade técnica e a difusão mesma da sua operacionalidade entre nós, que nos dedicamos ao direito tributário, me permitem superar os esclarecimentos propedêuticos sobre a fenomenologia da substituição, indo direto aos seus pontos polêmicos.

Para ilustrar a primeira polêmica, relativa ao embate teórico sobre se há, ou não, efetiva substituição de algo na chamada "substituição", usarei um filme e uma série de televisão. Cada um deles nos permitirá um meio de compreender o objeto da nossa fala, e só então teremos fundamentos mais lúcidos para tratar dos temas controvertidos que tocam nosso dia a dia.

O filme que ilustra o tema da substituição tributária é o chamado Minority Re-port. Numa tradução literal, seria algo como O Relato da Minoria. Estrelado por Tom Cruise, este filme hollywoodiano tem o seguinte enredo: num futuro, não muito distante, uma especial tecnologia permiti-ria pessoas com dons especiais receber treinamento para prever a ocorrência de ilícitos antes da sua efetiva prática. As previsões assim obtidas seriam captadas por um sistema e transmitidas à força policial, que atuaria antes de o crime ocorrer, impedindo danos à vida, ao patrimônio e à sociedade como um todo. Após a implementação desta tecnologia, a sociedade vivia um período de paz e segurança.

É lógico que se trata de um filme de ficção científica, cuja implementação futura é incerta e de dificílima realização concreta. Mas a ideia essencial é interessante: uma tecnologia que se projeta no futuro, "relatando" o que "ainda não é" para que este relato nunca "venha a ser". Relatando o crime que ainda não foi praticado, para que ele nunca venha a ser.

Mas, observem os Srs., o nome do filme é O Relato da Minoria. Sim, isso pode acontecer, pois são três "indivíduos" que relatam o que vai acontecer, e nem sempre este relato é unânime. Nestas situações, onde há divergência, como fica se a minoria faz o relato correto e a maioria erra? O que se mostrava infalível e permitiria a paz acaba por se tornar um instrumento terato-lógico de punir aquele que nem em pensamento imaginava praticar um crime. Nem Kafka conseguiria imaginar uma tal situação de injustiça.

Neste filme, o relato da minoria acerta ao declarar a inocência do protagonista, ao passo que a maioria o "pré-vê" cometendo um crime que ele não viria a cometer. O

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nosso ator principal se vê na insólita situação de ter que provar a inocência futura, demonstrando que ele não viria a praticar o fato que ele, em realidade, não praticou.

Esse primeiro filme nos remete à substituição tributária na forma como é concebida pela doutrina tradicional. Sem o mesmo aparato tecnológico, formado por um trio mediúnico, a legislação prevê o fato tributário que irá acontecer com grande probabilidade e faz com que a norma tributária incida antecipadamente sobre ele. Cobrando hoje o tributo por um fato que ainda não aconteceu e sujeitando-se ao relato equivocado da maioria, quando é obrigada a reconhecer que tem direito ao tributo recolhido no passado em relação a fato futuro que não chegou a ocorrer ou, ocorrendo, o foi em valor menor que o tributado.

Devo esclarecer, antes que alguma premonição sobrenatural me denuncie, que este exemplo é da Profa. Misabel Derzi, que o manejou, com brilhantismo, num congresso em Paris para explicar aos europeus a dinâmica de nosso inusitado instrumento arrecadatório.

É bom ressalvar, também, que a substituição pode ocorrer em pelo menos três situações, denominadas de "para trás", "para frente" e "concomitante". A primeira ocorreria nas situações denominadas também de "diferimento", onde um sujeito situado numa etapa posterior do processo produtivo recolhe tributo em face das etapas anteriores. A segunda ocorreria, nas situações descritas no nosso exemplo, em relação a fato futuro e incerto. E a última, "concomitante", nas situações em que não há antecipação nem postecipação do fato, mas eleição de sujeito distinto para proceder à arrecadação. Este seria o caso do imposto sobre a renda retido na fonte, no qual, supostamente, uma pessoa aufere a renda (beneficiário) e a outra recolhe o tributo (fonte pagadora). Em qualquer das suas modalidades, porém, existiria um dispositivo que prevê o ressarcimento daquilo que é recolhido em nome do chamado "contribuinte".

A ideia ordinária de explicação desta técnica seria algo mais ou menos assim: por conveniência de arrecadação, a lei atribui a terceira pessoa, vinculada indire-tamente ao fato tributário, o dever de recolher tributo em nome de terceiros e cobrar, por meio de retenção, o valor equivalente ao pagamento do tributo. Daí a ideia de substituição. Substitui-se um fato por outro, substitui-se um sujeito passivo por outro, mas essa atividade seria apenas de recolhimento.

Algumas consequências podem ser apontadas para esta técnica de tributação. Vamos, inicialmente, às positivas. Ela proporciona grande conveniência arrecadató-ria; afinal, é mais simples fiscalizar uma indústria ou um distribuidor que milhares de varejistas. É muito mais fácil controlar um indivíduo que vários. É, de certa forma, simples estabelecer um mecanismo de fiscalização para apenas um contribuinte. E a consequência imediata disso é uma redução drástica nas práticas antes convencionais de mercado de não escriturar ou não emitir parte das notas fiscais de certo período. Com efeito, reduz-se, intensamente, a margem de informalidade na atividade econômica. E mais: a substituição tributária, ao recolher antecipadamente o que será vendido no futuro, estabelece o dever de recolher ICMS sobre o próprio estoque do substituído, o que adianta em muitos meses o recolhimento de tributos. Há, portanto, maior base a ser tributada, e num período mais curto de tempo.

A retórica em prol da substituição tributária não para por aí...

É possível relacionar, ainda, ganhos de competitividade entre as empresas. Sim, pois, se você tem uma parte da sociedade que contribui e outra parte que não contribui com o pagamento de impostos, sem dúvida, há um forte entrave à livre concorrência. Então, se você tributa um substituto que recolhe tributos por todo o mercado, ele paga tributo por todo mundo, a concorrência não vai ser burlada. As vantagens, também por este prisma, seriam enormes.

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Mas voltemos ao nosso exemplo: o lado negativo da substituição seria, justamente, o relato da minoria. Este ocorre naquelas circunstâncias onde ou o fato tributado não se dá ou, ocorrendo, ele é quantificado num valor inferior àquele previsto por um dos métodos de "antecipação do futuro". Caberia uma resposta conceitual de que o fato que não ocorre enseja imediata devolução ou, nos locais onde há legislação que prevê isso, pronto ressarcimento do valor cobrado a maior. Mas não estamos num filme de ficção científica, e sabemos que nossa realidade, pura e dura, prevê um rol de dificuldades ao ressarcimento que entristece até o mais otimista dos contribuintes.

Para as empresas que não possuem regime especial, atender aos requisitos da Portaria CAT-17, com todos os seus formulários e procedimentos, é um caminho tortuoso, que chega a inibir sua efetiva aplicação em muitos casos. É legítimo o argumento de que este cuidado com a coisa pública é imprescindível. Porém, a manutenção de uma burocracia que inibe o exercício de direitos na esfera tributária é igualmente indesejada. Empresas com intensa emissão de documentos fiscais e que ainda não têm sistema de escrituração eletrônica, que não possuem regime especial de apuração do ICMS/Substituição tributária, se veem praticamente impedidas de operacionalizar "o relato da minoria", na forma de ressarcimentos de ICMS, em muitas situações.

Um pragmático poderia vir com o seguinte argumento: não se faz uma omelete sem quebrar os ovos. O preço a se pagar pelo aumento substancioso da arrecadação, a redução drástica da informalidade e o tratamento equânime entre os mais diversos tipos de contribuintes de um setor é, eventualmente, "ignorar o relato da minoria", mantendo nos cofres públicos créditos de ICMS que não correspondem a fatos que ocorreram ou foram feitos com valor superior ao que deveriam.

Admitir este argumento pragmático significa admitir uma flagrante ruptura com todos os pilares fundamentais da tributação, forjados ao longo dos últimos oito séculos. Sim, porque isso seria a cobrança de tributo sobre fato que não representa riqueza, sem lei que o estabeleça ou - o que é pior - contrariando frontalmente o que estabelecem a Constituição da República e o Código Tributário Nacional quando disciplinam a competência para uso desta figura tributária.

Não é por outra razão que o ressarcimento nas situações em que o fato jurídi-co-tributário ocorre em valor inferior ao previsto voltou a ser tema de embates na ADI 2.777, junto ao STF. Seria possível, em nome da chamada praticabilidade tributária, impor restrições à capacidade con-tributiva do sujeito passivo que suporta tributo não proporcional à riqueza tributada ou, por outra forma de explicar, se submete a tributação fictícia.

Pois bem, esta seria uma forma de ver a substituição tributária, com as lentes de um filme de ficção científica: como um sistema que prevê o que ainda não aconteceu e elege responsáveis - substitutos -para recolher tributos em nome dos "verdadeiros" contribuintes...

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