Os militares e a ordem constitucional republicana: de 1898 a 1964
Autor | Romeu Costa Ribeiro Bastos; Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha |
Páginas | 31-53 |
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"La constitución es una cosa; los militares somos otra"1
A análise das intervenções castrenses ao longo da história republicana brasileira demanda, a priori, uma avaliação sobre o papel dos militares no Estado, na política e sua interação com a sociedade civil.
O conceito de profissionalização nas Forças Armadas surgiu como resposta à necessidade de contextualizar sua atuação a partir de um referencial sociológico que a situasse comparativamente diante de outros grupos funcionais no interior do sistema social. Com base nessa formulação, tornou-se possível definir a competência profissional militar perante o Estado e a sociedade, a despeito da dificuldade em compatibilizar a oposição teórica entre ação militar e política.
De fato, o relacionamento do Estado com as Forças Armadas não se reduz à mera relação profissional-cliente mas a uma efetiva relação de poder, uma vez que, as Forças Armadas, não atuam apenas como profissionais, detentoras que são de autoridade que lhes foi constitucionalmente outorgada.
Tal competência encontra-se intrinsecamente vinculada ao papel dos militares e seu inter-relacionamento com a sociedade civil, cujo aspecto fundamental traduz-se na tensão potencial da necessidade de os governantes manterem, por um lado, uma força armada como instrumento da política e da ordem interna e, garantirem, por outro, que ela não usurpe os aparelhos do Estado2
Nesta linha teórica, quatro modelos explicativos sistematizados por Janowitz3 são apontados como definidores da relação civil-militar: o aristocrático, o democrático, o totalitário e o profissional.
O modelo aristocrático corresponde à estrutura das elites. Sua essência reside no fato de que os valores sociais e os interesses materiais das elites militares e políticas numa sociedade aristocrática são naturalmente convergentes. A base do recrutamento daPage 33 oficialidade, que se define como aristocrata e não castrense, provém da casta civil assegurando, desta forma, a estabilidade do sistema político.
O modelo democrático, caracterizado pela diferenciação entre as elites civil, política e militar, impõe o afastamento deliberado das Forças Armadas da esfera pública decisória, face ao reconhecimento de que, ao menos no plano ideal, o oficial é um profissional apolítico, a serviço do Estado e subordinado às regras e normas legais.
Quanto aos modelos totalitário e profissional, atribuem alto valor à força militar e à especialização. No primeiro, o controle civil é assegurado por meio da seleção política dos chefes militares e reforçado pela infiltração de membros do partido único e pela ação da polícia secreta, em razão da impossibilidade da coincidência social das elites. No segundo, efetiva-se o controle, não por meio da convergência de interesses mas, pela tolerância dos civis para com o desenvolvimento autônomo da influência militar. Huntington, seu principal teórico, sustenta que a busca de objetivos militares profissionais tende a manter as Forças Armadas dentro de sua esfera de atuação.
Outros sistemas podem, ainda, ser citados, como o ditatorial e o moderador, este último especialmente relevante, por nele se encontrar a formulação teórico-explicativa para a atuação das Forças Armadas no movimento irrompido em 1964, à semelhança do ocorrido durante a monarquia, quando o Imperador detinha poderes “constitucionais especiais” para intervir nas crises políticas em épocas de impasse.
Descrito e sistematizado por Alfred Stepan4, os axiomas analíticos do modelo moderador ou de arbitragem, podem ser assim relacionados:
• Todos os principais protagonistas políticos procuram cooptar os militares, admitindo-se como regra a politização das Forças Armadas;
• Os militares são politicamente heterogêneos, mas procuram manter um grau de unidade institucional;
• A cúpula política garante legitimidade aos militares, sob certas circunstâncias, para atuarem como moderadores do processo institucional, controlando o Poder Executivo, ou mesmo evitando a ruptura do sistema, quando envolve uma mobilização maciça de novos grupos anteriormente excluídos;
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• A sustentação dos militares politicamente heterogêneos pelas elites civis facilita a formação de uma coalizão golpista vencedora. Inversamente, a ausência de tal apoio, impede sua consolidação;
• A formalização de um “pacto” tácito entre civis e militares legitimando a intervenção armada no processo político nacional e o controle temporário do Estado, por um período determinado.
Ora, tomado genericamente, este valor-congruência resulta na socialização civil-militar, exemplarmente ilustrada pela doutrina desenvolvimentista, em sintonia com o projeto de grupos parlamentares. A condescendência social e intelectual dos oficiais militares em relação aos civis possibilita a cooptação e a contínua liderança civil, que visa restabelecer o equilíbrio político e "corrigir" a autoridade de direito e a representação nacional, quando estas entram em coalizão com as forças reais ou as autoridades de fato.
É o chamado "intervencionismo patológico", por meio do qual os civis confiam aos militares o desempenho de um papel moderador, em determinados momentos históricos, para "recompor" a vida política nacional5.
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A intervenção militar em 1964 assumiu, efetivamente, a função ideológica de arbitragem ao proteger a burguesia e conter o avanço das forças populares diante da crise institucional. O modelo moderador, porém, se romperia com a implantação de um Projeto Militar gestado ao longo das várias décadas do período republicano6.
A história noticia a intervenção política das Forças Armadas a partir da Proclamação da República. Retrocedendo ao regime imperial, a vitória brasileira na Guerra da Tríplice Aliança, faria o Exército emergir como uma força capaz de mudar os rumos políticos da Nação, recrudescendo o ideal republicano.
A geração de Caxias e Osório, forjada nos campos de batalha do Paraguai, seria sucedida por oficiais que não guardavam sentimento de lealdade para com o monarca.Page 36 Some-se a isso, a visão patriarcal da época, temente à possibilidade do sucessor do trono ser uma mulher, casada com um estrangeiro que sobre ela exercia grande influência7. Conturbava, ademais, o cenário político nacional, a agitação provocada nos quartéis pelas idéias de Benjamin Constant e a teoria positivista do soldado-cidadão ou cidadãosuniformizados, segundo a qual os militares estavam destinados a serem os civilizadores da sociedade brasileira.
O terreno estava propício à primeira grande intervenção militar no Brasil e, as Forças Armadas, tornar-se-iam, efetivamente, as fundadoras da novel República, restando claro a lacuna deixada pela sociedade civil, despreparada para conduzir e defender o Estado Democrático8. As forças heterogêneas que apoiaram o movimento republicano incluíam desde os republicanos autênticos,aos monarquistas escravagistas antagonizados com o regime após a abolição. É certo, contudo, ter faltado igualmente aos militares um projeto de governo, imbuídos que estavam, apenas, do ideário salvacionista. A Proclamação da República conscientizara o Exército de sua importância institucional - num processo que se iniciou a partir da Guerra do Paraguai - corroborando a crença da superioridade moral militar sobre a civil. A conseqüência imediata foi a politização das Forças Armadas, constatada pelos vários oficiais nomeados governadores de Estado e eleitos para o Parlamento. A parcela de gastos militares aumentou, mas as violentas lutas internas havidas neste período exporia a organização militar à atuação dos grupos externos, minando a tentativa de implantação de um projeto endógeno.
Após o segundo governo militar consecutivo, os civis alçaram ao poder buscando implantar uma Nova Ordem Civilista9. A estratégia adotada por Prudente dePage 37 Morais foi enfraquecer o poderio das Forças Armadas realizando cortes no orçamento, o que acarretaria a falta de materiais e equipamentos, atingindo de modo contundente a formação profissional dos oficiais. A consecução de tal objetivo, explica o fracasso retumbante das expedições de Canudos e põe à mostra a estagnação provocada pela doutrina do soldado-cidadão que impediu a modernização da Instituição e o florescimento de um pensamento militar autóctone.
Um fato, no entanto, abalaria esta estrutura estamental. Durante a presidência do Marechal Hermes da Fonseca, um grupo de jovens oficiais enviados para estagiar junto ao Exército Alemão, havia retornado ao Brasil com novas idéias e desencadearia uma campanha pelo aperfeiçoamento profissional da Arma. Eram os chamados Jovens Turcos10, que propugnavam só poder o Exército desempenhar sua missão de defesa externa, com uma força efetivamente profissional e apolítica.
A idéia da despolitização agradou as classes políticas, ciosas de uma oportunidade para afastar os militares do poder decisório estatal, mas, a despeito da ênfase no profissionalismo, o sentimento de intervenção armada não fora sepultado. A necessidade de substituir o sistema de governo corrupto – articulada desde de 1880 - reviveria em 1920 quando os tenentes, rebelando-se contra Arthur Bernardes, iniciariam o ciclo das intervenções militares que só terminaria em 1964.
A década de 20 seria marcada por um clima de turbulência e insatisfação social, bem como por transformações significativas na Ordem Internacional.
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O Primeiro Conflito Mundial, ao revisar o conceito tradicional de guerra, atingiria diretamente as Forças Armadas, conscientizando-as do obsoletismo bélico e...
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