O Ministério Público Português e as Cláusulas Abusivas nos Contratos de Consumo

AutorJoão Alves
CargoProcurador da República e mestre em Direito
Páginas173-182

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I Introdução

As cláusulas contratuais gerais (CCG) são «proposições destinadas à inserção numa multiplicidade de contratos, na totalidade dos quais se prevê a participação como contraente da entidade que, para esse efeito, as pré-elaborou ou adoptou»12

O regime jurídico das CCG encontra-se regulado no DL 446/85, de 25 de outubro, alterado pelo DL 220/95, de 31 de agosto (por força da Diretiva 93/13, de 5 de abril), objeto da Declaração de Retificação n. 114-B/95, de 31 de agosto, e novamente alterado pelo DL 249/99, de 7 de julho. A estas alterações acrescem as operadas pelo art. 24º do DL 323/01, de 17 de dezembro, respeitante à conversão de escudos para euros (art. 29º, n. 2, e 33º, n. 1, do DL 446/85) e o Regulamento Custas Processuais (art. 25º,
n. 1, do DL 34/2008, de 26 de fevereiro), que revogou a isenção de custas constante da parte final do art. 29º, n. 1, do DL 446/85.

A intervenção do Ministério Público (MP) neste contencioso ocorre maioritariamente nos tribunais cíveis345 e pode assumir várias formas:

Em primeiro lugar, através da instauração de ação inibitória destinada «a obter a condenação a abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais» (art. 26º, n. 1, do DL 446/85).

Neste caso, o controlo das cláusulas, abstrato (ou preventivo), é levado a cabo independentemente da sua inclusão em contratos singulares, em que se pretende que os utilizadores de CCG sejam condenados a abster-se do seu uso. Este controlo efetua-se abstratamente e não em concreto, tendo em conta as cláusulas em si próprias, no seu conjunto e segundo os padrões em jogo, e não isoladamente ou em função do caso concreto678

Em segundo, através da instauração da ação inibitória prevista no art. 10º, n. 1, al. b), da Lei 24/96, de 31 de julho. Esta ação inibitória destina-se a «prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor consignados na presente lei, que, nomeadamente () se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas».

Entre esta ação e a ação inibitória atrás mencionada, prevista no art. 26º, n. 1, do DL 446/85, existe uma relação de especialidade9. Quando a questão é exclusivamente respeitante a cláusulas contratuais abusivas, o MP intenta a ação prevista no art. 26º, n. 1, do DL 446/85. Porém, no caso dos fatos apurados integrarem cláusulas contratuais abusivas em conjugação com práticas lesivas dos direitos do consumidor, nomeadamente que atentem contra a sua saúde e segurança física ou consistam em práticas comerciais10

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expressamente proibidas por lei, é instaurada a ação inibitória prevista no art. 10º, n. 1, da Lei 24/96 de 31 de julho.

Em terceiro, o MP intervém em ações, contestações ou embargos em representação de ausentes, incertos ou incapazes (arts. 21º, 22º e 23º do Código de Processo Civil11– CPC). Neste caso, ao contrário do que acontece nas ações inibitórias, que são ações coletivas, estamos perante a defesa de interesses individuais/concretos, constituindo também uma fonte de obtenção de informação para instaurar eventuais ações inibitórias12.

Em quarto lugar, existe no MP um atendimento ao público em todas as jurisdições. Esta função não consta expressamente das competências do MP, mas é enquadrada enquanto manifestação do direito de acesso dos cidadãos ao direito e à justiça e de articulação entre os meios formais e informais de resolução de conflitos13.

É uma função que exige preparação e formação, bem como sensibilidade para a defesa dos consumidores. Admito que nesta matéria a formação da maioria dos magistrados do MP é genérica e não [consegue] responder às questões complexas e diversificadas colocadas pelos consumidores, pelo que deve ser equacionado o encaminhamento para outras entidades que também têm atendimento aos cidadãos (associações de consumidores, entidades reguladores, centros de informação autárquica ao consumidor).

Por último, o MP tem legitimidade para intentar ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores a nível comunitário (art. 5º, n. 5, da Lei 25/2004)14. Não tenho conhecimento de que o MP português tenha utilizado esta competência e, mesmo no resto da União Europeia, são raras as ações intentadas.

Desde a década de 1990 tem sido regular a instauração de ações inibitórias (quase exclusivamente de cláusulas contratuais gerais), na sua quase totalidade pelo núcleo de propositura de ações da Procuradoria do Palácio da Justiça de Lisboa15, com especial ênfase a partir de 2008, e obtendo uma elevada taxa de procedência dos pedidos. Apesar da nova reorganização judiciária16, este núcleo continua em funções, na agora designada Comarca de Lisboa – cível.

II O presente

No mencionado artigo que publiquei nesta Revista em 2011, apontei uma série de problemas que afetavam a eficácia da intervenção do MP neste contencioso das cláusulas contratuais abusivas. Ora, existem melhorias nalguns dos problemas detectados, por exemplo:

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a) O registo das cláusulas contratuais gerais declaradas nulas pelos tribunais.

Este registo, embora mencionado no preâmbulo do DL 446/85, com o objetivo de «assegurar a publicidade das que forem elaboradas, alteradas ou proibidas por decisão transitada em julgado», apenas surgiu com o DL 220/95, de 31 de agosto, impondo o art. 35º, n. 1, a criação do serviço que «fica incumbido de organizar e manter atualizado o registo de cláusulas contratuais gerais abusivas que lhe sejam comunicadas».

O registo constava de uma base de dados arcaica e deficiente, pois, entre outros problemas, não continha a sentença completa.

Esta situação alterou-se completamente e o registo pode agora ser consultado no site http://www.dgsi.pt/jdgpj.nsf?OpenDatabase. No final de setembro de 2014 tem um total de 247 documentos.

Um outro registo elaborado pelo MP, mas limitado à área territorial da Procuradoria Distrital de Lisboa, pode ser consultado em:
http://www.pgdlisboa.pt/docpgd/doc_busca.php?buscajur=&nid_ especie=3&nid_subespecie=21&pagina=1&ficha=1.
b) Há uma redução da morosidade na fase de recurso17das ações inibitórias.

Esta redução encontra o seu fundamento numa alteração legislativa ao regime dos recursos no anterior CPC (art. 721º, n. 3) e que, no fundo, obstava ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. É a aplicação da “dupla conforme”, ou seja, a restrição de interposição de recurso de revista quando o Tribunal da Relação confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão do tribunal da 1ª instância.

Na atual redação do art. 671º, n. 3, do CPC a restrição decorrente da “dupla conforme” não funciona quando o Tribunal da Relação empregue para a confirmação da decisão de 1ª instância fundamentação diferente da utilizada nesta última, a qual pode passar mesmo pela modificação da matéria de fato (na medida em que os fatos provados integram os fundamentos da decisão).
c) Na carreira do MP, o...

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