Reflexões sobre a moralidade na tragédia grega: revendo o mito de Antígona

AutorLuís Gustavo Franco
CargoMestrando em Direito no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC)
Páginas685-702

    Mestrando em Direito no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Endereço eletrônico para correspondência sobre o artigo: luisgustavofranco@hotmail.com.

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1. Introdução

Preliminarmente, cumpre esclarecer que a leitura ora proposta prescinde da estratificação da obra a partir de seus possíveis contextos, isto é, desde um ponto de vista eminentemente histórico, social, mitológico, religioso ou literário. Há, inclusive, divergências quanto à (in)dissociabilidade de alguns destes aspectos1. Assim sendo, partimos de questionamentos que todos – em conjunto – ou mesmo cada um – isoladamente – poderiam suscitar, precisamente porque o fim precípuo em persecução assim o admite. Não há de se negar a dimensão valorativa do conjunto ou de cada componente, ambas realidades a permitir uma análise e discussão de preceitos de moralidade segundo o dilema e personagens postos em questão.

2. Desenvolvimento
2. 1 A sociedade grega

Antes de propor algumas reflexões sobre a eticidade na mitologia e tragédia gregas, tomando por base a peça Antígona2, de Sófocles, cumpre analisar, ainda que muito brevemente, a constituição e a importância de alguns fenômenos da sociedade grega relacionados à compreensão do objeto proposto.

Há, desde logo, uma separação importante: a dos humanos, seres mortais e falíveis e, de outro lado, os deuses. A divindade no mun-Page 687do grego não implicava o absoluto. Os deuses eram vários, cada qual com funções específicas. Por isto, a um se relacionava o mar, a outro a guerra, a um terceiro a verdade, a esta a beleza, àquela o amor e assim por diante. Essa multiplicidade era parte do mundo, criada que foi com ele, como parte de um movimento mais amplo e organizado. O culto estava muito associado ao quanto havia de mundano nas próprias divindades3.

Mas também no culto está a distinção entre o humano e o divino. A diferença tem sua origem mitológica na questão do sacrifício. Chegado o momento de repartir as funcionalidades entre humanos e deuses, tal qual estes já o haviam feito entre si, Prometeu tenta ludibriar Zeus. Prometeu reserva duas porções de um boi sacrificado. Em uma delas, por debaixo da gordura do animal, esconde os ossos e outras partes não digeríveis. Em outra, esconde sob a aparência desagradável da pele e entranhas as partes boas de se comer. Zeus percebe o ardil, escolhe a primeira e se vinga condenando os homens a viver com a permanente necessidade de satisfação da fome, tal qual os animais, destes se distinguindo apenas pela capacidade de manejar o fogo. Mas a exceção não advém da benevolência de Zeus. Os deuses são implacáveis nos seus castigos. Com a privação do uso do fogo celeste, Prometeu rouba uma pequena centelha de fogo, que os homens, para conservar, terão de alimentar também permanentemente4.

Interessante notar que toda a qualidade de vida que foi determinada ao homem, toda a desgraça humana daí advinda, ou seja, a necessidade de se manter com o trabalho, de se perpetuar pela geração, de saciar a fome, a sujeição às doenças, ao cansaço, à velhice e, por fim, à morte, vem como castigo complementar de Zeus conhecido pela mão de uma mulher. O próprio conhecimento do gênero feminino é também uma das misérias impostas ao homem. Tudo vem ao mundo depois que Pandora, a mulher feita de terra e água, não contém sua curiosidade e abre a caixa que lhe havia sido confiada. O que é também bastante revelador do papel marginal que competia à mulher na sociedade grega.

Pois se os próprios deuses faziam parte do mundo, há que se compreender por que razão os gregos tratavam do mesmo modo o que fosse natural e sobrenatural. Eram como que manifestações distintas de uma mesma realidade. Daí também que os próprios costumes sejam uma espécie de culto, um mito que se funda novamente a cada prática e que não se justifica por motivo outro que nãoPage 688 sua própria existência. Tudo quanto aparentasse uma feição meramente religiosa, tinha também sua dimensão social; tudo quanto parecesse assunto relativo ao doméstico, era também de interesse da pólis. Todos os espaços se constituíam como campos da política, do civismo, de exercício da cidadania5. São inseparáveis as relações entre indivíduo, sociedade e Estado, indissociáveis as esferas pública e privada, todo problema moral é também um problema da política.

De onde se pode igualmente retirar a importância dos cultos funerários. A própria tradição da propriedade moderna remonta aos tempos em que os antigos enterravam os seus mortos no terreno onde residiam. Daí o caráter “sagrado” da propriedade. Os heróis eram reverenciados em altares especialmente para eles construídos, cultuados tal qual um símbolo cívico6. As homenagens aos mortos tinham papel fundamental na coesão dos grupos, funcionando tanto como elemento agregador dos laços familiares quanto dos laços comunitários.

Sobre a poesia, a literatura e a cultura gregas, há de se assinalar suas funções de elemento transmissor da memória e do saber das cidades e de elo de unificação entre elas, como requisito fundamental para a formação e conservação de um sentimento de identidade comum e necessário à Hélade. É das histórias contadas pelos antepassados, isto é, dos mitos que os gregos retirarão matéria-prima para o desenvolvimento de suas artes e de sua filosofia7.

Falamos um pouco sobre deuses, o homem, a mulher, a natureza, a religião, a política, os costumes, as honras fúnebres, a cultura. Hora de apresentarmos a mitologia retratada na tragédia.

3. Os mitos de Laio e Édipo

É possível afirmar que, na mitologia, a tragédia se repete. Para analisar o drama de Antígona, é necessário recuperar a história de seus antecessores e notar como seus destinos estão fatalmente interligados. Assim adentramos indiretamente no estudo de alguns traços característicos da tragédia grega.

O antecessor direto e mais remoto da casa real de Tebas a ser citado em Antígona é Laio. Laio tem seu destino marcado de forma infeliz por fatos que ocorreram quando ainda jovem. Seu pai, Lábdaco, morrera e deixara a coroa vaga. O trono era cobiçado, houve disputa pela sucessão e Laio, temendo a morte, foge para Élida, onde é acolhido pelo rei Pélope. Laio acaba apaixonando-sePage 689 por Crisipo, filho de Pélope. Às escondidas, ambos se entregam, mas são descobertos. Crisipo, temendo a reação do pai, suicidase. Pélope amaldiçoa Laio8.

A culpa de Laio será purgada a partir do nascimento de Édipo. Laio manda Creonte consultar o oráculo de Apolo, em Delfos, sobre o seu futuro filho. Apolo era o Deus da Verdade. Diz que Laio morreria pela mão do filho. Laio, tentando evitar o destino, manda que um servo mate a criança. O servo, em vez de cumprir a ordem, entrega o menino a um camponês, que o leva até Corinto, onde será criado junto à família do rei Pólibo, como se filho deste fosse. Édipo resolve consultar o mesmo oráculo, ante a notícia de que não seria filho de Pólibo, ao que é advertido de que mataria o próprio pai e desposaria a própria mãe. Crendo que se afastando de Corinto, evitava de fazer cumprir a profecia, eis que distante de Pólibo e Mérope, Édipo parte para um exílio voluntário. No meio do caminho é interpelado de forma rude por senhores que querem passagem. Édipo, tomado de raiva, mata quatro dos cinco homens. No seu vaguear, descobre que nas proximidades de Tebas um terrível monstro anda a dizimar toda a população. Nada tendo a perder, Édipo resolve enfrentar a Esfinge e a derrota. Pela façanha, é recebido como rei em Tebas, cujo trono ficara vago desde a morte de Laio. Anos mais tarde, Tebas é tomada por uma terrível praga. Édipo manda consultar o oráculo, o qual responde que os dias de desgraça terão fim quando o assassino de Laio for devidamente punido. Édipo manda chamar Tirésias, um grande profeta. Ele negase a revelar a verdade, até que Édipo o acusa de nada dizer por ter tomado parte na morte de Laio. Diante do aparente absurdo manda que o profeta se retire. Jocasta, sua esposa, consola-o dizendo que profetas também se enganam. Refere que Laio havia morrido na estrada que conduz a Delfos, vítima de ladrões. Édipo estranha a resposta e pergunta quando isto sucedeu. Ao que Jocasta responde que pouco antes de sua chegada em Tebas. Édipo pergunta se o rei se fazia acompanhado. Jocasta responde que um sobreviveu. Édipo quer vê-lo, suspeita de que Laio fosse um dos homens com quem se defrontara na estrada. Jocasta insiste na versão dos ladrões e que o filho de Laio fora entregue à morte nas montanhas. Ato contínuo, chega um mensageiro referindo a morte do rei de Corinto, Pólibo. Jocasta indaga sobre o significado da profecia do oráculo, uma vez que o rei não havia morrido pelas mãos de Édipo, seu filho. O mensageiro então revela que Édipo não era seu filho, apenas fora criado como tal. Édipo pergunta pe-Page 690los seus verdadeiros pais. O mensageiro só sabe dizer que o havia recebido das mãos de um servo de Laio. Nisto surge um velho, em quem o mensageiro reconhece o pastor que lhe entregara a criança. Édipo lhe indaga sobre onde encontrara a criança. O velho, sem querer dizer a terrível verdade e sob a ameaça de Édipo, dizlhe que pergunte a Jocasta, pois fora ela que lho entregara, para que sumisse com ela em virtude de uma tal profecia. Se a profecia dizia quanto a matar o pai? Sim! Édipo enfim descobre a verdade. Procura então pela sua mulher e mãe. Encontra-a morta no quarto, não agüentara a dor da verdade. Édipo também não suporta ver a realidade e, com os broches que enfeitavam o vestido da suicida, cega os próprios olhos9. Finalmente, aplica contra si mesmo, em face do assassinato de Laio, a pena máxima então existente: o exílio. Cego, mendigo, acabado, Édipo é conduzido por...

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