Muito barulho por nada? Uma análise crítica do novo Código de Ética Médica

AutorOctávio Luiz Motta Ferraz
Páginas189-204
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TRABALHOS FORENSES/CASE STUDIES
MUITO BARULHO POR NADA? UMA ANÁLISE C RÍTICA
DO NOVO C ÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA(*)
MUCH ADO ABOUT NOTHING? ANALYZING THE NEW
CODE OF MEDICAL ETHICS OF BRAZIL
Octávio Luiz Motta Ferraz(**)
INTRODUÇÃO
Em 13 de abril de 2010, entrou em vigor o novo Código de Ética Médica
brasileiro, aprovado pela Resolução n. 1.931 do Conselho Federal de
Medicina. Segundo o portal do conselho, foram dois anos de debates
coordenados pela Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica,
que tinha por incumbência atualizar o código anterior, de 1988. Durante
esses dois anos, participaram nesse projeto 400 delegados, entre conselheiros
federais e regionais de medicina, membros de sindicatos e sociedades de
especialidades médicas, além de representantes de várias entidades da
sociedade civil, e foram recebidas 2.575 sugestões de mudanças.
A justificativa principal para a realização deste notável esforço foi a
alegada necessidade de atualização do código antigo para colocá-lo em
compasso com os avanços tecnológicos dos últimos 22 anos(1). Em tom um
tanto quanto grandiloquente, o presidente do Conselho Federal de Medicina,
Roberto Luiz d’Avila, afirma em artigo que o novo código “representa a
(*) NOTA DO EDITOR: O novo Código de Ética Médica brasileiro passou a vigorar no dia 13 de abril
de 2010. Disponível em .
(**) Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ética e Direito Médico pelo
King’s College (Londres), doutor em Direito pelo University College (Londres); professor assistente,
Faculdade de Direito da Universidade de Warwick. Londres/Inglaterra. E-mail:
. Recebido em 20.10.10. Aprovado em 21.12.10.
(1) Neves, 2008; Siqueira, 2008.
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introdução da medicina brasileira no século 21”(2). Outras mudanças de caráter
social e econômico posteriores à adoção do código anterior, como a criação
do SUS e o estabelecimento e rápido crescimento da medicina privada (planos
de saúde, seguro-saúde etc.) também constituíram, segundo o presidente do
CFM, motivos complementares para a adoção de um novo código. Por fim,
mas não menos importante, o código novo teria a função de reforçar a autonomia
do paciente.
No presente artigo, busco fazer uma análise crítica do resultado final do
novo código do ponto de vista tanto formal quanto substantivo. Como buscarei
demonstrar, na minha opinião, o novo código apresenta inúmeros defeitos em
ambos esses aspectos. Além de extremamente longo e prolixo, o novo código
é ainda mais assistemático que o anterior, confuso e contraditório em várias
passagens. Esses defeitos o impedem de exercer sua principal função, isto é,
ser um guia claro e acessível da conduta profissional do médico, não apenas
para este, mas para a sociedade como um todo.
Meu objetivo não é de forma alguma atacar o trabalho realizado pela
Comissão Nacional, cuja magnitude e complexidade são inquestionáveis,
mas simplesmente contribuir para o debate e, quiçá, influenciar positivamente
futuras revisões do código.
I. QUESTÕES FORMAIS
1. Para que serve um código de ética médica?
É necessário um código de ética médica? Para que ele serve? Essas
perguntas, que são intimamente inter-relacionadas, podem parecer à primeira
vista inusitadas no contexto brasileiro. Estamos tão acostumados a ter um
código de ética médica (estamos no nono) que não nos questionamos mais
se tal documento é necessário, e porque é necessário, o que tem que ver
com sua função (i. e. para que serve?). Mas são perguntas válidas e úteis
porque nos ajudam a pensar não apenas se devemos adotar um tal código
(o que parece fora de questão no Brasil), mas também que espécie de
código devemos adotar, isto é, de que forma e com que conteúdo.
Podemos inverter a ordem das perguntas e começar pela função de
um código de ética. Em termos bastante genéricos, o principal objetivo
(abordarei outros mais específicos abaixo) de um código de ética é o de
estabelecer normas éticas de conduta a serem seguidas por profissionais
de determinada área no exercício de sua atividade profissional, no presente
(2) Um novo código para um novo tempo. Disponível em:
com_content&view=article&id=128:o-novo-codigo-de-etica-medica-melhora-o-sistema-de-saude-
&catid=46:artigos&Itemid=18>. Acesso em: 05 out. 2010.
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caso a medicina. Mas isto leva-nos imediatamente à segunda questão. É
necessário para isso um código e, se a resposta for positiva, como deve ele
ser organizado e o que deve estar nele contido? Essas indagações têm
como premissa a constatação de que há outros instrumentos que exercem
(ou podem exercer) essa mesma função genérica de um código de ética.
Como exemplos podemos citar as leis, criminais e civis, e mesmo
constitucionais, resoluções específicas do Conselho Federal de Medicina,
pareceres etc.
Não é tão óbvio assim, portanto, como poderia parecer à primeira vista,
que um país deva necessariamente adotar um código para além desses
outros instrumentos normativos. Na Inglaterra, por exemplo, não há
propriamente um código que reúna todas ou as principais normas éticas da
profissão médica. Há apenas diretrizes autônomas (“guidance”) sobre
determinados assuntos, como por exemplo eutanásia, confidencialidade,
aborto, etc., que são reunidas de tempos em tempos em booklets (“pequenos
manuais”). Essa opção explica-se em grande parte pela tradicional rejeição
da cultura inglesa por uma ética de grandes princípios gerais, o que se
traduz também no mundo jurídico pela inexistência de uma constituição
codificada e de códigos de leis ordinárias. Já na França, há código, mas é
aprovado por lei e integrado ao Código de Saúde Pública, e passa então a
fazer parte do ordenamento jurídico do país, como outra lei ordinária.
A opção inglesa talvez não seja aceitável em nossa cultura brasileira,
muito afeita à codificação, mas serve para nos lembrarmos de que a
necessidade de um código não é inquestionável (os médicos ingleses, ao
que se saiba, não cometem mais faltas éticas que em outros países que
adotaram códigos) e, mais que tudo, para refletirmos sobre o que deve estar
contido em um código e como deve ser estruturado quando optamos por
adotar um. Colocado de outro modo, já que queremos um código para regular
a conduta ética dos profissionais da medicina além de outros instrumentos
regulatórios como leis, resoluções etc., é importante refletir com cuidado
sobre o seu conteúdo e organização.
2. O que deve conter um código de ética médica?
Tenho a opinião de que quaisquer iniciativas que pretendam estabelecer
diretrizes éticas à atividade médica devem necessariamente usar duas
espécies distintas de enunciados normativos: os princípios e regras gerais
da atividade que pretendem regular e regras específicas, isto é, as normas
mais detalhadas que buscam elucidar a aplicação dos princípios e regras
gerais à luz de temas e situações particulares.
Os princípios e regras gerais, ao contrário das regras específicas, não
se modificam com tanta frequência. A atualidade de vários dos preceitos do
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juramento de Hipócrates, como os princípios da não maleficência, da
confidencialidade, etc., são confirmação disso(3). O que suscita frequente
necessidade de atualização, debate e esclarecimento é a interpretação e
aplicação desses princípios gerais a novos casos concretos, que na medicina
aparecem com frequência cada vez maior por conta do rápido desenvol-
vimento de novas tecnologias. Para citar um exemplo, o princípio geral da
confidencialidade dos dados pessoais do paciente não muda com o apare-
cimento de tecnologia capaz de registrar e comunicar esses dados de
maneira mais eficiente e rápida (e. g. informática). Deve-se discutir e estabe-
lecer, é claro, regras específicas novas para a proteção da intimidade dos
pacientes aplicáveis a essa nova tecnologia à luz do princípio da confi-
dencialidade, que continua o mesmo.
Se esta distinção estiver adequada, surge a dúvida de como organizar
um código cujas normas têm natureza diversa e necessidade de atualização
marcadamente diferentes. Se se incluir o que chamei acima de regras
específicas no código, haverá necessidade de atualização cada vez mais
frequente, quase que permanente, sempre que mudanças tecnológicas
ocorrerem. Além disso, o código será cada vez mais longo, o que, como
sustentarei abaixo, pode conflitar com um de seus objetivos principais, que é
oferecer um guia claro e acessível para conduta profissional cotidiana e para
a sociedade como um todo.
Parece-me que a solução está em limitar o código, ou ao menos seu
núcleo duro, ao estabelecimento dos princípios e regras gerais, mais
duradouros, e deixar as regras específicas, menos estáveis, para documentos
adicionais, como resoluções ou pareceres, que podem ser revisadas, uma a
uma, com maior frequência e rapidez, sem a necessidade de revisão do
código em si(4). Um bom exemplo é o Código de Ética Médica Internacional,
da Associação Médica Mundial, com seus 19 concisos artigos e o Código de
Ética Médica americano, com 10 princípios apenas, que são detalhados e
atualizados com a frequência necessária pelas chamadas “opiniões”, emitidas
pelo Conselho para Assuntos Éticos e Judiciais (Council for Ethical and
Judicial Affairs)(5). Talvez haja espaço, mesmo dentro desse modelo de código
que estou sugerindo, para uma quantidade maior de enunciados. O código
canadense, por exemplo, que tem 54 enunciados, mantém-se no entanto
dentro desse modelo(6).
(3) Outros princípios, como o da autonomia do paciente, sofreram alterações profundas, é claro, e
continuam sofrendo, mas estas se dão de forma muito mais gradual e lenta que os avanços
tecnológicos. Veja a excelente exposição de Siqueira (2008) sobre a mudança de paradigma do
paternalismo à autonomia do paciente.
(4) Essa posição que estou defendendo foi articulada com clareza quando da revisão do código de
ética canadense de 1990, realizada em 1996 (Ver Sawyer e Williams, 1996).
(5) COUNCIL on Ethical and Judicial Affairs. Disponível em:
about-ama/our-people/ama-councils/council-ethical-judicial-affairs.shtml>. Acesso em: 05 out. 2010.
(6) CODE of Ethics. Disponível em: . Acesso
em: 05 out. 2010.
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Mas o fato é que nem o código brasileiro atual, nem tampouco os anteriores,
seguem o modelo acima sugerido. Como bem apontou Gabriel Oselka, nossos
códigos representam uma combinação do que ele chama de “código moral”,
com enunciados que determinam os valores profissionais, com “código
administrativo”, com enunciados que regulam com precisão muitos aspectos
práticos da profissão(7). Isso gera as duas consequências já apontadas acima
(ambas negativas em minha opinião), inter-relacionadas, de uma necessidade
de revisão mais frequente e adição, em cada revisão, de novos enunciados, o
que torna nossos códigos demasiado longos. De fato, passamos de 145 artigos
no código antigo para 163 no código novo(8). Essa “inflação” contínua de artigos
prejudica a função primordial do código de constituir um guia prático e acessível
aos profissionais e à população em geral. Como bem apontam Sawyer e
Williams(9) sobre o conciso código canadense, “outros valores refletidos no formato
do código são a brevidade e utilidade; o código é longo o suficiente para oferecer
conselhos práticos sobre os temas éticos mais importantes da prática médica,
mas não tão longo a ponto de prejudicar o uso rápido a fácil”(10).
Nas seções seguintes, abordarei de forma mais específica e detalhada os
problemas do novo código. Como veremos, alguns decorrem inevitavelmente
da opção de modelo adotada, e só poderiam ser corrigidos, portanto, pela
modificação desse modelo na linha do sugerido acima. Outros problemas, no
entanto, são independentes do modelo adotado, e podem ser corrigidos em
futuras revisões do código mesmo com a manutenção de tal modelo.
3. A falta de critérios para incluir e excluir máterias
A proliferação de artigos decorre em parte da opção de se incluir temas
específicos no código (isto é, do modelo de código adotado), e em parte de
desnecessárias repetições do mesmo enunciado em mais de um artigo.
Tratarei separadamente de cada um desses pontos.
A opção pelo modelo de código de regras específicas gera um problema
de difícil solução sobre os critérios a serem utilizados para inclusão ou
exclusão de certos temas no código. Por que razão, por exemplo, incluir
regras específicas sobre transplantes de órgãos e terapia genética, mas não
sobre neurocirurgia, esterilização e tratamento anticoncepcional, para citar
(7) OSELKA, G. O código de ética médica. In: SEGRE, M.; COHEN, C. (Orgs.). Bioética. 3. ed. São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2002. p. 63-68.
(8) Para efeitos de comparação estou contando todos os artigos de cada código do início ao fim,
incluindo preâmbulos e disposições gerais.
(9) SAWYER, D. M; WILLIAMS, J. R. After 4 years of work, revised code of ethics goes to general
council for decision. Canadian Medical Association Journal, v. 155, n. 3, Aug. 1996.
(10) Minha tradução livre do original em Inglês: “Other values reflected in the format are brevity and
usefulness; the code is long enough to provide practical advice on the major ethical issues of
medical practice, but not too lengthy to hinder quick and easy use.”
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apenas três exemplos de matérias excluídas? Todos esses campos específicos
da medicina podem gerar dilemas éticos complexos (e. g. deve o médico
prescrever anticoncepcional para menores? Deve o neurocirurgião informar o
risco de morte de certa operação? Deve o médico praticar, ou recomendar, a
esterilização de menores excepcionais?), de modo que o critério de inclusão-
-exclusão não pode ser o da importância ou dificuldade dos aspectos éticos
envolvidos. Fosse adotado esse critério, e o código teria que ser ainda mais
longo, provavelmente com várias centenas de artigos.
Para confirmar isso, basta manusear os pareceres éticos emitidos pelo
Conselho Federal de Medicina. Cada parecer contém uma ou mais questões
éticas importantes que seriam dignas de inclusão no código se fosse esse o
critério adotado.
Mas se não é esse o critério para incluir e excluir matérias, qual seria?
Outra possibilidade seria a frequência com que médicos se deparam com
determinado dilema ético. Assuntos mais corriqueiros seriam incluídos no código,
atendendo assim às necessidades da maioria dos profissionais, deixando-se os
assuntos mais especializados para resoluções complementares, a serem
consultadas apenas por aqueles que efetivamente atuam nas áreas correspon-
dentes. Mas esse também não me parece um critério razoável, e com certeza
não é o adotado pelo novo código. Transplante de órgãos, reprodução assistida,
terapia genética estão longe de ser atividades que a maioria dos médicos
brasileiros exercem. Trata-se, pelo contrário, de “atividades nicho”, altamente
especializadas, com relativamente poucos profissionais atuantes em comparação
com outras atividades médicas mais tradicionais, cujos dilemas éticos não são
tratados no código (um bom exemplo aqui é o da alocação de recursos escassos,
problema do cotidiano dos médicos do sistema público)(11).
Não me parece, portanto, que haja critérios adequados para se decidir
que questões éticas específicas vão ser incluídas ou excluídas em código que
adota o modelo dual (moral-administrativo) acima citado. Ou se incluem todas,
e aí teríamos um documento ainda mais longo do que o presente, ou se
excluem temas específicos e se restringe o código aos princípios e regras
gerais do exercício da atividade, deixando para as diretrizes a regulação das
matérias específicas, como defendi acima.
Vale mencionar, por fim, um critério substantivo que pode ser utilizado
mas que não resolve os problemas citados acima, qual seja, o da matéria.
Parece adequado que apenas questões efetivamente relacionadas de algum
modo à ética médica, e não outras (por exemplo de defesa corporativista da
profissão, questões meramente administrativas etc.) sejam incluídas num
código. Nesse ponto, é interessante discutir se (e quais) direitos dos médicos
(11) Uma distinção relacionada à que faço aqui é mencionada por Siqueira (2008), entre a “bioética
de fronteira”, que trata dos hodiernos avanços do conhecimento científico e a “bioética do cotidiano”,
voltada para as ações do dia a dia dos profissionais de saúde.
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devem ser incluídos ou não. Muitos códigos excluem esse tópico por
entenderem que não pertencem a um documento cuja função é estabelecer
os deveres do médico no campo da ética médica. O código canadense é
novamente um exemplo.
Essa posição me parece adequada, já que questões como a remuneração
profissional (cap. II, X), o direito de não ser discriminado (I), o direito de atender
pacientes em qualquer hospital independentemente de pertencer ao corpo
clínico (VI), e o direito de exigir desagravo ao CRM quando atingido em sua
honra (VII), parecem um tanto quanto distantes do campo da ética médica para
pertencer a um código de ética. Há alguns direitos dos médicos, no entanto,
como o de recusar-se a praticar atos contrários à sua consciência (IX) (a
chamada “objeção conscienciosa”), que na minha opinião constituem questões
éticas e, portanto, têm lugar num código.
4. A falta de sistematicidade e clareza
Independentemente da correção ou não do modelo de código adotado,
a recente revisão deixou passar uma oportunidade importante de ao menos
tornar o código mais claro e sistemático, e, portanto, mais acessível e fácil de
se utilizar, o que deve ser objetivo de todo código. De fato, trata-se de corolário
da função geral de um código (regulamentar a atividade médica) e de outras
funções mais específicas que poderíamos acrescentar agora, valendo-nos
da proposta de Anderson(12), com a qual concordamos:
Um código de ética serve diversos propósitos. Eles incluem articular
padrões profissonais para seus membros, asseguando a proteção do
público e ampliando a confiança da sociedade nesse grupo. Códigos
oferecem a oportunidade de expressar os valores do grupo e da
profissão. No nível prático, códigos podem ser usados para auxiliar
membros na tomada de decisões éticas, e podem servir de escudo
para proteger os praticantes de pressões externas inaceitáveis. Códigos
de ética também determinam os padrões de comportamento a serem
usados como medida para avaliar as ações de seus membros.
Para bem servir a esses múltiplos propósitos, como bem aponta Anderson,
um código deve possuir três características principais: acessibilidade, isto é,
ser compreensível não só aos profissionais mas também ao público; clareza,
isto é, precisa “evitar confusão ... e não conter duplos sentidos”; e ser compatível
como as leis e demais resoluções sobre os assuntos que pretende regular. O
código novo, como passo a demonstrar, não me parece possuir as duas
primeiras qualidades em abundância. Em certos aspectos, aliás, ele representa
um retrocesso em relação ao anterior.
(12) ANDERSON, L. Writing a new code of ethics for sports physicians: principles and challenges.
British Journal of Sports Medicine, n. 43, p. 1079-1082, 2009.
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Ao contrário do antigo código, no qual os artigos eram todos numerados
de forma contínua, desde o primeiro ao último capítulo, com numerais arábicos,
o presente inicia com numerais romanos nos capítulos I e II, reiniciando a
contagem em cada um desses capítulos, depois passa para numerais arábicos
no capítulo III, e adota numeração contínua até o capítulo XIII (isto é, sem
reiniciá-la a cada capítulo como nos capítulos I e II), aí volta a reiniciar a
contagem, e passa a numerais romanos novamente, no capítulo XIV. Ora,
por que não uma contagem única e contínua do início ao fim como no código
anterior, facilitando assim o manuseio e referência aos seus artigos?
Em outros pontos, o código novo repete os defeitos do antigo, como na
disposição das matérias dentro dos capítulos e entre os mesmos, na própria
escolha dos capítulos e de sua ordem, e na repetição constante de enunciados
em capítulos diversos e dentro do mesmo capítulo.
5. Divisão de capítulos e matérias
O código é dividido em quatorze capítulos, alguns deles poderiam muito
bem ser eliminados, incorporados por outros, ou drasticamente reduzidos
com ganho de sistematicidade e clareza ao código. O capítulo I, por exemplo,
cujo título é “Princípios Fundamentais”, contém, no entanto, uma mistura
assistemática, confusa, repetitiva e prolixa (nada menos que 25 enunciados)
de princípios gerais e regras específicas, muitas das quais serão repetidas
mais adiante em outras parte do código. Por exemplo: repete-se por três
vezes dentro deste capítulo que a medicina está a serviço da saúde do ser
humano (I, II e VI), e por outras três que o médico deve ter autonomia no
exercício da profissão (VII, VIII e XVI), especificando-se detalhadamente em
alguns deles situações em que tais valores são contrariados. Ora, para essa
parte do código, que deveria ser limitada aos “princípios fundamentais”,
bastaria um único enunciado, estabelecendo, por exemplo, que “o médico
exercerá a profissão com autonomia e terá como alvo principal a saúde do
ser humano, bem como o respeito aos seus direitos fundamentais, e a saúde
da coletividade”. A especificação desse princípio geral deveria ser deixada,
como aliás já ocorre, para os capítulos seguintes do código.
Outros enunciados deste capítulo não se enquadram nem com esforço
interpretativo na noção de princípios fundamentais, como por exemplo: “XIII
— O médico comunicará às autoridades competentes quaisquer formas de
deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida”, ou “XX — A
natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza
relação de consumo”. Se é que tais enunciados deveriam constar do código,
certamente estão fora de lugar no capítulo dos “princípios fundamentais”.
Não me parece necessário, além disso, um capítulo à parte sobre
direitos humanos. Praticamente toda a atividade médica envolve direitos
humanos como liberdade, integridade física, intimidade, o próprio direito à
saúde, de modo que quase todas as disposições importantes do código se
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relacionam de uma forma ou de outra a esses direitos. Melhor seria, portanto,
estabelecer em um artigo inicial, o princípio geral de que o médico respeitará
os direitos humanos no exercício de suas atividades e deixar a especificação
desse princípio para regras gerais sobre a responsabilidade do médico em
partes posteriores do código(13).
Nesse capítulo sobre a responsabilidade do médico, aliás, poderiam ser
reunidas todas as normas atualmente espalhadas pelos capítulos V ao XIII do
código, pois todos tratam na verdade de normas de responsabilidade ética do
médico. A rigor, o código estaria melhor sistematizado se fosse dividido em
apenas três partes, a saber, princípios gerais, deveres e direitos dos médicos
e disposições gerais. A parte principal, sobre os deveres e direitos dos médi-
cos, poderia ser subdividida entre normas que se referem ao relacionamento
com o paciente, normas que se referem ao relacionamento com a sociedade
em geral, e normas sobre relacionamento intraprofissão, i.e. entre médicos e
outros médicos, outros profissionais e instituições de saúde.
O que não se justifica são as dez subdivisões da responsabilidades dos
médicos existentes, com diversas repetições desnecessárias de enunciados,
e disposição de temas sem qualquer ordem lógica identificável. Por que razão,
por exemplo, o capítulo sobre sigilo profissional (IX), que é central à relação
médico-paciente (capítulo V) e se aplica à generalidade da atividade médica,
encontra-se fora, e tão distante desse capítulo, entremeado por capítulos
específicos como transplante de órgãos (capítulo VI) relações do médico com
outros profissionais (capítulo VII) e remuneração profissional (capítulo VIII)?
6. Repetição de enunciados
Há ainda várias repetições desnecessárias e confusas do mesmo
assunto em capítulos e artigos diversos. Por exemplo, o direito de informação
do paciente está inserido no arts. 13, 22, 34, 44, 101. É certo que se trata de
um dos direitos mais importantes do paciente, mas a repetição assistemática
não auxilia em nada o esclarecimento dos deveres do médico. Melhor seria
um único artigo formulando claramente os deveres do médico de informação
ao paciente e suas potenciais exceções, aplicável a qualquer procedimento
médico, terapêutico ou experimental.
O mesmo ocorre com o dever do médico de não exercer a medicina
como comércio, que aparece no artigo IX do capítulo I, e volta a aparecer no
art. 58. A mera repetição ocupa espaço e de resto não esclarece esse obscuro
princípio. O que significa exercer a profissão como comércio? Estaria proibida
a medicina privada no Brasil?
(13) O art. 30, de qualquer forma, também está fora de lugar no capítulo sobre direitos humanos. (“É
vedado ao médico: Usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer crimes.”)
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O dever do médico de obter o consentimento do paciente antes de
qualquer procedimento também é repetido, sem necessidade, nos artigos
XXI do capítulo II e, 22 e 31, sem que em nenhum deles, como veremos
abaixo, sejam colocados claramente os pontos principais desse importante
direito ao consentimento informado do paciente.
Poderia continuar apontando outras inconsistências e repetições
desnecessárias encontradas no código. O argumento principal aqui, porém,
já está demonstrado: o código poderia ser muito mais conciso, claro e
sistemático mediante simples eliminação dessas repetições e da reorganização
dos artigos e capítulos. Não se trata, porém, de mero pedantismo ou questão
formal de menor importância. Pelo contrário, a boa forma (sistematicidade e
clareza) é essencial a um documento que pretende ser um guia eficiente da
conduta do médico. Além disso, e como passamos a ver na segunda parte
deste artigo, os problemas formais estão em vários casos relacionados a
problemas substantivos igualmente importantes.
II. QUESTÕES SUBSTANTIVAS
1. Contradições e obscuridades
Tão importantes quanto as repetições desnecessárias e as
impropriedades de organização de capítulos e classificação de normas acima
apontadas, são as obscuridades e contradições que existem no código. Em
alguns pontos, a linguagem utilizada pelo código é técnica demais, como por
exemplo a opção pelas expressões “normas diceológicas” e “normas
deontológicas” para expressar simplesmente direitos e deveres (Preâmbulo,
VI), as expressões técnicas “imprudência”, “negligência” e “imperícia”, para
expressar simplesmente erro médico etc. O principal problema, no entanto,
está em contradições entre enunciados diversos. Vejamos, como exemplo,
os casos da “objeção conscienciosa”, do sigilo profissional, da responsabilidade
médica, do consentimento informado e da eutanásia, temas de inegável
importância na ética médica.
2. Objeção conscienciosa
A “objeção conscienciosa” é regulada em duas normas diversas nos
dois primeiros capítulos do código. No capítulo I, tem o seguinte enunciado:
Cap. VII — O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo
obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua
consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de
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ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou
quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
Já no capítulo II, tem-se a seguinte enunciado sobre o mesmo tema: “É
vedado ao médico: IX — Recusar-se a realizar atos médicos que, embora
permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.”
Como se percebe, enquanto o enunciado do capítulo II não traz exceção
nenhuma à regra geral, no enunciado do capítulo I tais exceções são
colocadas. Isso causa obscuridade e confusão sobre a conduta a ser seguida
pelo médico. Imaginemos que um médico praticante ortodoxo do catolicismo
esteja diante de uma paciente que necessite de aborto legal, por exemplo
resultante de estupro. Consulta a norma do capítulo II e conclui que não deve
auxiliar a paciente pois se trata de procedimento contrário aos ditames de
sua consciência. Não se preocupa em verificar se há outro médico na região
capaz de realizar o procedimento, pois a norma no artigo IX lhe parece clara
e sem exceções. Seria justo condená-lo, no caso de a paciente sofrer dano,
por não ter lido a outra norma do código, encontrada em outro capítulo, onde
as exceções estão indicadas?
3. Sigilo médico
O mesmo problema ocorre na questão do sigilo médico, que está
regulado em mais de um lugar no código e de maneira diferente. No capítulo
I temos: “XI — O médico guardará sigilo a respeito das informações de que
detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos
casos previstos em lei.”
Já no art. 73, que inaugura o capítulo inteiro dedicado à questão do
sigilo, encontra-se a seguinte enunciado: “É vedado ao médico: Art. 73. Revelar
fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão,
salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.”
Ora, que norma deve ser seguida em relação às exceções ao dever de
sigilo profissional, a mais restrita, que faculta a quebra do sigilo apenas por
lei, ou a mais flexível, que inclui as exceções de motivo justo e consentimento
do paciente? Não se trata de obscuridade sem importância, já que há situações
em que pode pairar dúvida sobre se o paciente pode consentir legitima-
mente em abrir mão do sigilo, como no caso de exames admissionais para o
trabalho (art. 76) por exemplo.
Outra repetição que gera obscuridade encontramos entre os artigos
que tratam da responsabilidade do médico por seus atos. No art. XIX do
capítulo I lê-se: “XIX — O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e
nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação
particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.”
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Parece estranho que o médico se responsabilize por atos executados
com diligência, competência e prudência. A responsabilidade nasce exatamente
do contrário, como corretamente estabelecido mais adiante no código, no capítulo
III, que inicia com a proibição ao médico de “causar dano ao paciente, por ação
ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”
(art. 1º). E o que significam danos resultantes da “relação particular de confiança”?
Na minha opinião, o art. XIX, além de obscuro, é desnecessário em face do
art. 1º do capítulo III. Esse artigo, aliás, poderia ser bem mais simples, limitando-se
a lembrar ao médico que não deve causar dano ao paciente. As modalidades
técnicas da negligência, imprudência e imperícia pertencem ao mundo jurídico,
ao Código Civil, não a um código de ética médica. O artigo equivalente do
código canadense pode servir como modelo de simplicidade e clareza: “14. O
médico deve adotar todas as medidas razoáveis para prevenir danos ao paciente;
se ocorrer dano, deve informá-lo ao paciente”. (14)
Nesse tema da responsabilidade, aliás, o código é pródigo em
repetições ao meu ver desnecessárias. Além do confuso art. XIX, já
mencionado, temos outros 3 artigos também desnecessários.
Art. 3º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico
que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos
tenham assistido o paciente.
Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional
que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido
pelo paciente ou por seu representante legal.
Ora, a responsabilidade do médico independe de sua admissão ou
não. Para que servem, portanto, esses artigos senão para confundir e tornar
mais complexo algo que é simples? Se o médico nega responsabilidade é
porque entende que agiu adequadamente, e sua responsabilidade será
apurada à luz do art. 1º. Os arts. 3º e 4º nada acrescentam àquele.
A repetição desnecessária se dá também no capítulo V, que veda ao
médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento
em favor do paciente (art. 32). Ora, tal artigo, novamente, explicita sem
necessidade o que já está implícito no artigo. Trata-se de um caso claro de
negligência, mas por que repeti-lo aqui, e porque somente esse caso e não
outros?
Os problemas formais apresentados nesta seção são talvez mais
preocupantes na medida em que não fazem do código apenas prolixo, mas
também prejudicam sua compreensão e causam dúvidas quanto à sua
aplicação. Na seção, seguinte focaremos as questões de natureza
substantivas.
(14) Minha tradução livre do ingles: “14. Take all reasonable steps to prevent harm to patients;
should harm occur, disclose it to the patient.”
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4. Consentimento informado e distanásia
O chamado “consentimento informado”, isto é, o direito do paciente de
receber informações sobre os procedimentos médicos sugeridos e de decidir
livremente se quer se submeter aos mesmos é abordado no código nos
seguintes enunciados:
Capítulo II, art. XXI
No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus
ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as
escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos
e terapêuticos por eles expressos (sic), desde que adequadas ao caso e
cientificamente reconhecidas.
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir
livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo.
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante
legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas
ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Novamente aqui, portanto, temos a repetição de um enunciado por três
vezes (o que por si só seria desaconselhável), mas também uma potencial
contradição entre enunciados. Discute-se muito no âmbito da ética médica
sobre os eventuais limites do dever de obtenção, e respeito, do consentimento
informado. Há quem sustente que esse dever deve ser o mais amplo possível
em respeito à autonomia do paciente; há quem sustente (poucos, é certo)
que o médico deve agir em benefício do paciente e que um dever muito
amplo pode prejudicar esse objetivo, e há várias posições intermediárias(15).
Um dos casos mais complexos é o da recusa de tratamento sem o qual o
paciente corre risco de morte, como por exemplo a recusa dos adeptos da
religião testemunhas de Jeová de receber transfusão de sangue. Qual o
dever do médico nessa situação? Em que medida o novo código auxilia
o médico na decisão a ser tomada?
Os enunciados dos arts. 22 e 31, que são bastante similares às dos
arts. 46 e 56 do antigo código, não oferecem solução precisa para esse caso.
Pode-se interpretá-las tanto no sentido de respeitar a autonomia do paciente
mesmo se a recusa ao tratamento lhe cause a morte, como no sentido de
(15) Discorri sobre o assunto com mais profundidade em FERRAZ, O. L. M. Knowledge and power in
democratic medicine: an inquiry into the duty to inform and the ‘therapeutic privilege’ of doctors
(Dissertação de Mestrado), King’s College Londres, 1997).
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que, nesses casos, o médico tem o dever de tratar o paciente contra a sua
vontade(16). Isso porque a exceção à regra dos casos de “risco de morte” pode
ser interpretada de forma restritiva ou mais abrangente. Na interpretação
restritiva, a exceção opera apenas e tão somente na situação em que não há
tempo ou condições de se obter o consentimento do paciente. Imagine-se
um acidentado em estado de coma que chega ao pronto-socorro precisando
de cirurgia urgente. O próprio Código Penal libera o médico da obtenção do
consentimento nessa situação. Numa interpretação mais abrangente, a
exceção se estenderia também aos casos de pacientes que recusam
tratamento sem o qual podem vir a morrer, como a transfusão de sangue. Os
Conselhos Regionais de Medicina já se manifestaram diversas vezes sobre
o assunto, e não apresentam posição concordante. Nos CRMs do Paraná e
da Paraíba, por exemplo, parece vigorar atualmente a opinião de que o
médico deve tratar o paciente contra sua vontade nos casos de risco de
vida(17). Essa posição tem respaldo na Resolução n. 1021/80, do Conselho
Federal de Medicina. Já no CRM de São Paulo, há vários pareceres do
eminente bioeticista Marco Segre sustentando que o médico têm a opção de
escolher se respeita ou não a vontade do paciente(18). Segundo a posição do
presidente do CFM acima já citada, o código teria vindo reforçar a autonomia
do paciente. Será que reforçou a ponto de aceitar que o paciente tem o
direito de decidir que prefere morrer a receber transfusão de sangue, ou
qualquer outro tratamento? Em minha opinião, o novo enunciado expresso
no art. XXI, capítulo I, não traz elucidação sobre esse ponto. Simplesmente
repete, com outras palavras, e de forma um tanto quanto truncada, o que já
está contido nos arts. 22, 24 e 31: “o médico aceitará as escolhas de seus
pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles
expressos (SIC).” Não adiciona nada, portanto, a esses artigos que auxilie
uma interpretação mais voltada ao fortalecimento da autonomia do paciente.
Pelo contrário, poder-se-ia até sustentar que as exceções colocadas naquele
artigo, ausentes nos demais, teria enfraquecido a autonomia do paciente.
Com efeito, o novo artigo determina que o médico aceite as escolhas do
paciente “de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais”
e “desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.
Mais um exemplo, portanto, de adição ao código que o torna mais
longo e prolixo sem esclarecer o médico como deve se portar, e sem aprimorar
o modificar o código anterior.
Talvez a única real novidade do código seja a inclusão de dispositivo
sobre a prática da chamada distanásia, ou obstinação terapêutica, isto é, o
prolongamento artificial da vida. Mesmo aqui, porém, incorre-se novamente
(16) Defendi a primeira interpretação no artigo Eutanásia e homicídio — matar e deixar morrer: uma
distinção moralmente válida? Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 2, n. 2, jul. 2001.
(17) PARECER CRM-PR N. 1072/98; PROCESSO CONSULTA CRM-PB N. 11/05.
(18) PARECERES CRM-SP 19123/94; 27278/96; 29299/96 e 41191/99.
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no vício da repetição confusa. Enquanto o art. XXII estabelece que o médico
“evitará” a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos
desnecessários, o parágrafo único do art. 41, que continua a proibir a
eutanásia, estabelece que o médico deve oferecer todos os cuidados
paliativos disponíveis “sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas
inúteis ou obstinadas”. Ou seja, não se sabe se estamos diante de uma
proibição firme de se adotar ações desnecessárias ou de uma vedação
branda. De qualquer modo, trata-se sem dúvida de progresso na direção
correta. Legitima-se, finalmente, uma prática eticamente adequada mas que
era seguida com receio de que pudesse ser caracterizada erroneamente
como eutanásia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sustentei no presente artigo que o novo Código de Ética Médica, produto
de um notável esforço de centenas de participantes, milhares de propostas e
dois anos de trabalho da Comissão Nacional de Revisão do CEM, apresenta
no entanto importantes defeitos de forma e conteúdo que acabam tornando-o
inadequado ao fim precípuo de um código de ética: estabelecer de forma
clara, acessível e coerente os preceitos éticos da profissão não só aos
médicos, mas à sociedade como um todo.
O código é extremamente longo, repetitivo, assistemático e em vários
pontos contraditório e obscuro. Esses defeitos decorrem em parte da opção
por um modelo de código na minha opinião equivocado (o chamado modelo
“moral-administrativo”, que mescla preceitos gerais com regras bastante
específicas). Numa próxima revisão, deve-se considerar a opção por um
modelo diverso, e buscar reduzir, simplificar e sistematizar melhor os
enunciados do código.
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