"Narciso acha feio o que não é espelho": reflexões sobre a exceção brasileira em Narciso em férias/"Narcissus shies away from look-unlikes": Thoughts on the Brazilian Exception in Narcissus Off Duty.

AutorCordeiro, Roan Costa

"si se non noverit" (Ovídio, Met., 3, 348) Introdução--O direito no espelho (1)

Em 13 de dezembro de 1968, decretava-se no Brasil o Ato Institucional no 5 (AI-5). A ruptura institucional com o Estado de Direito e a democracia estava consumada para além de quaisquer dúvidas, deixando para trás anseios de imediato retorno à "normalidade". A Ditadura civil-militar, instalada no poder com o Golpe de 1964, torna-se então irreversível mediante a consolidação da corrente subterrânea de uma longa história brasileira de violências e exceções que transformam o autoritarismo no sentido mesmo do poder, pervertendo-o numa confusão de profundas e absurdas consequências para o presente e futuro a habitar o imaginário jurídico-político brasileiro.

Na madrugada de 27 de fevereiro, apenas duas semanas após a promulgação do AI-5, em meio ao "transe" entre a vigília e o sono, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (2) viria a ser surpreendido pelo som da campainha de seu apartamento em São Paulo na Avenida São Luís, bastante próximo do nacionalmente conhecido cruzamento da Avenida Ipiranga com a São João: eram agentes da Polícia Federal que, batendo à sua porta e entrando em sua casa, viriam a levá-lo, assim como seu amigo, também músico e compositor, Gilberto Passos Gil Moreira, à experiência bastante corpórea, real da exceção brasileira então consolidada. Inicia-se aqui o período de suas prisões arbitrárias pela ditadura.

Décadas depois, Caetano Veloso relatou a impactante experiência então sofrida em sua autobiografia, Verdade tropical, publicada em 1997, adotando para o longo capítulo em que a narra o título bastante sugestivo de "Narciso em Férias". Ele também veio a narrá-la, lançando agora seu corpo no relato falado de sua própria experiência, no documentário homônimo, lançado em 2020, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, com produção de Paula Lavigne. Aqui tomado como objeto de um exercício de compreensão, a partir do documentário nos moveremos nos meandros de um confronto trazido pelo cinema para o direito, tal como um espelho que o confronta, irremediavelmente, com a imagem de sua exceção. A investigação da natureza desse espelhamento é aberta pelas diversas narrações que alcançam a experiência desse Narciso: posta em jogo nos registros documentais oficiais da ditadura e também nos ecos da canção, delineia-se o contorno de uma singularização da experiência na qual a norma e a exceção, a realidade e a representação são constantemente questionadas e lançadas uma na outra, uma contra a outra.

Narciso em férias, na sua realização cinematográfica, coloca desde o princípio diante de nós, espectadores, a imagem do corpo e o som da voz de um estranho Narciso, chamado a relatar diante da câmera os cinquenta e quatro dias de sua prisão durante a ditadura numa espécie de entrevista que rearticula e remaneja a forma do interrogatório, ao mesmo tempo fonte de medo e obsessão de Caetano Veloso no seu período no cárcere. Do outro lado da lente, a presença de seu corpo e a ressonância de sua voz desafiam a estabilidade das convicções estruturantes do imaginário jurídico-político vigente, que pretende se projetar para muito além daquilo que aparece no mundo como uma criação humana que permite estabilizar as fundações de nossas comunidades (Arendt, 2011: 276).

Ao defrontar-se com o rosto de Caetano Veloso no documentário, o espectador é levado a um enfrentamento, antes de tudo, com o que costumeiramente lhe escapa. Nesse sentido, podemos dizer que somos expostos às privações de memória, que decorrem de um processo de apagamento das violências que são constitutivas das relações de força que perpassam o poder e o direito, notadamente aquelas que atravessam espaço de puro arbítrio dos crimes políticos. No seguinte verso, tomado como fragmento, encontramos uma tradução desse processo: "Quando eu te encarei frente a frente"--a repressão, a violência, a estupidez dos algozes, a exceção escancarada pela ditadura--"eu não vi o meu rosto". Em outros termos, a tela coloca diante do público, seu intérprete tanto quanto seu "espectador", nos limites de uma produtiva tensão despertada pelo cinema, o que consideramos ser a ficção fundante de nossa representação da realidade jurídica: a de que o plano normativo existente, que estrutura toda uma compreensão do direito, não é perpassado por experiências da exceção (para já não dizermos que aquele seja estruturado por esta), isto é, que conseguiria transformála em algo externo à sua lógica e à sua história, para empregarmos os termos "topográficos" da oposição "dentro"/"fora" corrente no discurso jurídico (Agamben, 2008: 38-39).

A partir daqui, buscamos questionar a estrutura de sua representação tendo em vista a experiência de uma exceção, componente de nossa experiência jurídica, considerada segundo os ângulos da sua composição narrativa no documentário Narciso em férias. Nesse sentido, tomamos o ângulo específico do "direito no cinema", de um lado, para considerar a exceção (jurídica) no cinema e, de outro, para ressaltar a dimensão instituinte das distintas práticas que também operam por meio de narrações. (3) Assim, o real, a própria realidade em jogo no documentário é perpassada por distintas narrações, capazes de revelar ou ocultar aspectos e sentidos que uma ou outra esconde ou desvela. Com a contribuição específica da forma cinematográfica, buscamos compreender a relação, na tela, entre narrativas distintas não apenas sobre o real ou uma determinada realidade, mas antes de tudo sobre os sentidos que são capazes de projetar. Afinal, enquanto narrações do mundo, o cinema e o direito já operam constituições e reconstituições da realidade.

Na primeira parte do texto, discutimos o cinema quanto ao seu modo de se relacionar com seu material--sons e imagens marcados por uma relação indexadora (4) "verdadeira tanto na ficção quanto na não ficção" (Nichols, 2010: 65)--como representação. Estaremos diante, portanto, do questionamento de uma narração do real que estabelece uma relação com o mundo que não se restringe, por princípio, a ser tão somente uma "janela" para a realidade. O caráter particular do cinema que nos permite percorrer esse caminho e investigar o que aqui chamamos de "espelhamentos" decorre de uma característica da própria arte cinematográfica: o fato de que se efetive a partir do entrelaçamento também com outras artes. Esse trânsito, inclusive, é aquele que mais nos permite aproximar o direito do cinema, tendo-se em vista o fato de que este também se forma como um cruzamento de distintas narrativas.

Na segunda parte do texto, consideramos que o documentário, portanto, permite não apenas considerar uma representação de "questões, aspectos, características e problemas encontrados no mundo histórico" (Nichols, 2010: 72), mas também o confronto com um ponto de vista que, ao estreitar aquela vinculação indexadora entre o plano da tela e o plano do mundo, coloca em jogo a própria relação com o mundo, podendo nos apontar possibilidades (do real) que partem do que vemos ou sabemos, do que não vemos e não sabemos, do que queremos ver e saber e também do que não queremos ver nem saber. Assim, em Narciso em férias, encontraremos tanto uma conexão com o "que foi dito e feito" na apresentação de um "teatro da memória" (Nichols, 2010: 90) quanto uma via de acesso para tratar das relações, reciprocamente iluminadoras, entre o passado (da experiência representada) e o presente (da representação cinematográfica e da sua recepção). É nesse momento que aprofundamos o sentido da "exceção brasileira" refletida na representação de Narciso em férias.

Na terceira parte, aventamos uma leitura da canção que desfecha a narrativa do filme, Terra, lançada apenas em 1978. Ao ser cantada e tocada por Caetano no documentário--que termina ao som da versão de estúdio de Terra--, a música apresenta o ápice em que Narciso e Orfeu podem então apontar para uma reconciliação que rompe com a imagem repressiva de experiências autoritárias. Com isso, veremos afinal que o filme surge como um "lugar de memória" (Nora, 1993) que, do ponto de vista de sua atualização (um olho atual que vê), aparecerá como um lugar de "rememoração" de violentas experiências realizadas com os limites da política e do direito.

  1. Narrar a experiência: Narciso e os jogos de espelhos

    "We meet at last, this film between us,

    Between the perception and the noun,

    The desire, and the assurance, I and AM"

    (W. H. Auden, Narcissus)

    Ao rememorar o sequestro inesperado que o lançou no cárcere, Caetano Veloso narra que, sem saber o que lhe aconteceria, a realidade do tempo e do espaço do mundo vivido fora da cela começou a desvanecer. Iniciaria uma tentativa de buscar a si mesmo, provocada pela perda dos outros, é certo, de seus amigos e de seu convívio regular, mas também de sua experiência consigo mesmo. O sentido visual mais elementar da imagem de um Narciso em férias--um empréstimo literário, aliás, que realizou de Scott Fitzgerald--captura precisamente a experiência, "que se perpetuou por todo o período da prisão", de "não ter acesso a espelhos. Com efeito, por dois meses não vi meu próprio rosto" (Veloso, 2017: 360). Sob tal imagem a prisão política é narrada, em Verdade tropical, como uma espécie de suspensão, entre o sono e a vigília, do mundo e da imagem de si mesmo cuja busca já se punha em questão no mito de Narciso.

    Segundo Ovídio (5) (2017: 187) narra em suas Metamorfoses, quando Liríope (cujo nome também faz referência a uma flor), mãe de Narciso, pergunta a Tirésias se seu filho "veria os longos dias de uma velhice avançada", o célebre adivinho cego lhe responde: "se ele não se conhecer [si se non verit]". (6) O Narciso do mito era um jovem de dezesseis anos que rejeitara o desejo de todas e todos os amantes. A ninfa Eco, que por ele se apaixonara, teve a mesma sorte dos demais na rejeição--antes castigada pela sua loquacidade por Juno, Eco "repete o final da frase e devolve as palavras ouvidas" (Ovídio, 2017: 189), agora, acometida...

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