Limites ao exercício da competência tributária pela instituição de obrigações acessórias: um confronto com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência

AutorDiego Bomfim
CargoAdvogado - Professor da Escola Paulista de Direito
Páginas300-317

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1. Introdução

A transformação das funções estatais, em decorrência do abandono de uma postura absenteísta e do incremento de uma atuação estatal positiva, vem, inegavelmente, refletindo na forma de criação dos textos legais.1

No Estado Liberal, onde restavam privilegiadas as bases de um capitalismo tradicional pautado no liberalismo econômico,2 havia uma rígida divisão entre o Es-tado e o mercado; este último deveria caminhar sozinho, devendo o Estado se pautar de maneira neutra, figurando como guardião da ordem pública, nada além.

Nessa linha, o direito positivo era utilizado como instrumento repressivo, bastando para preservação dos direitos fundamentais reconhecidos à época que o ente público adotasse uma postura negativa. Ou seja, não era reconhecida como função do ente estatal a intervenção sobre o domínio econômico,3 bastando que os direitos fun-

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damentais de primeira geração fossem preservados.4

O direito positivo manifestava-se como um conjunto de normas repressivas de condutas, havendo prevalência da utilização de normas que previam sanções negativas e coercitivas.5 Como endossa Tér-cio Sampaio Ferraz Jr.: "O Estado assumia a função de garantidor da ordem pública, sem qualquer ingerência na esfera dos interesses econômicos, e o Direito, estabelecido ou reconhecido pelo Estado, aparecia como um instrumento com nítido aspecto repressivo".6

Com o Estado Social (Welfare State) as normas promocionais de condutas passaram, mais intensamente, a integrar os ordenamentos jurídicos, fazendo com que a repressão fosse, em certa medida, substituída pela promoção.

Ao invés de punir o descumprimento da hipótese normativa, o direito positivo passou também a premiar os sujeitos de direito que se pautassem de acordo com os ditames almejados pelo legislador,7 mesclando normas repressivas e promocionais de condutas.

Essa evolução também é verificada no específico campo da instituição e administração dos tributos, vez que utilizados também com o escopo indutor.8 A tributação9 passou a servir de potente instrumento de intervenção do Estado sobre o domínio econômico, deixando de figurar como mera forma de custeio.10 É nesse contexto

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que surgem, mais intensamente, o que José Luiz Saldanha Sanches11 nomeia de normas de direcção econômico-social.

Essa utilização interventiva da tributação, no entanto, encontra limites. Esses delineamentos negativos da utilização da tributação como instrumento de intervenção estatal não estão objetivados, nem, muito menos, estampados em um rol estanque. São, por vezes, descobertos em princípios e regras jurídicas não recortados (mesmo que didaticamente) como objeto de estudo da ciência do direito tributário, sendo construídos caso a caso pelo intérprete. Os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa surgem como delineadores do exercício da competência tributária, ora como justificativa, ora como impedimento da instituição de certas obrigações acessórias pelos entes políticos, sendo relevante mensurar em que ponto suas incidências transformam a instituição de uma obrigação acessória numa verdadeira sanção política, o que permitirá expor a compatibilidade, ou não, dessa forma de exercício da competência tributária com o ordenamento jurídico posto.

O escopo deste texto, portanto, é -aceitando a evolução das formas de atua-ção estatal e seus impactos sobre o exercício da competência tributária - analisar a forma como o Estado cria procedimentos administrativos voltados à instituição de prestações, positivas ou negativas, no interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos, expondo os limites impostos pelos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa.

2. Conceito de "competência tributária"

Para consecução dos objetivos já fixados, optou-se pelo caminho da demarcação dos conceitos que, direta ou indireta-mente, afetam a tomada de posição sobre os efeitos dos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa quando da instituição das obrigações acessórias. Essa a razão de revisitar-se o conceito de "competência tributária", bem como as formas de seu exercício, a seguir destacadas.

O vocábulo "competência" vem sendo tomado em diversas acepções, v.g., quando indica a presteza na execução de uma tarefa, ou mesmo quando entendido como aptidão na execução de atribuições ou, simplesmente, quando tido como autorização para proceder. Mesmo recortando o campo específico do direito positivo, é corrente seu uso como indicador de institutos diferentes,12 o que comprova sua ambigüidade.

Assim, levando-se em consideração a advertência de Guibourg, Ghigliani e Gua-rinoni de que "todas las palabras son vagas y muchas son ambiguas (todas, al menos potencialmente ambiguas)",13 é necessário, sob pena de não se construir um discurso unívoco, transmudar os termos imprecisos por signos lingüísticos novos criados arbi-

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trariamente (estipulação) ou continuar a empregar signos plurívocos, desde que explicitado o exato sentido em que a palavra foi utilizada (na expressão de Carnap, empreender o processo de elucidação14).

Dentre as várias acepções do termo, toma-se "competência" como autorização outorgada normativamente a determinadas pessoas para criação de outras normas, dentro de limites materiais e formais preestabelecidos.15

Assim, em função da peculiar característica de o direito positivo regular sua própria criação,16 surge a necessidade de diferenciação entre as chamadas normas de comportamento e normas de estrutura.17 As primeiras têm como objeto a prescrição de condutas intersubjetivas, enquanto as demais regulam a própria criação das primeiras normas.

Essa interação normativa no campo particular da criação de tributos tem pelo menos um contraponto: as normas de imunidade tributária. É que a definição de "competência tributária" está intrinsecamente ligada à de "imunidade tributária", sendo possível afirmar que o estudo de um instituto diz do outro, inegavelmente.

Estudar a demarcação das competên-cias tributárias é estudar também os enunciados que trazem consigo as normas que prescrevem as imunidades, razão pela qual os dois institutos serão abordados conjun-tamente.

Nessa linha, é possível afirmar que nos últimos anos ganhou aceitação o posicionamento18 que descreve a regra imuni-zante como "uma das múltiplas formas de demarcação de competência". Ou seja, as regras de imunidade conformariam o desenho da competência tributária, sem que coexistissem dois momentos distintos na aplicação das normas que permitem a instituição dos tributos sobre as materialida-des eleitas e as normas imunizantes; ambas as normas atuariam juntas, advindo dessa síntese a norma de competência tributária.

Paulo de Barros Carvalho, após elaboração de críticas às noções correntes ostentadas pela doutrina, informa serem as imunidades tributárias "a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas".19

Por isso, as imunidades tributárias não poderiam ser entendidas como limitações constitucionais à competência tributária, já que a própria norma de imunidade seria uma das responsáveis pela conformação da competência.20

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Em que pese à solidez dos argumentos que são postos no intuito de afirmar a incongruência da definição das imunida-des como limitações à competência tributária, construindo, inclusive, acurada crítica à definição de "competência tributária" prescrita pelo Código Tributário Nacional,21 a doutrina não logrou a mesma trilha quando empreendeu crítica à definição de "imu-nidades" como limitações constitucionais ao poder de tributar.

É que para essa linha de entendimento costuma-se utilizar como argumento-mor das críticas a impossibilidade de suposição de dois momentos cronologicamente diversos, bem como argumentos que correlacionam poder e competência tributária.

Já se percebe que a doutrina, apesar de cuidar separadamente das duas matérias, não distingue em suas críticas o entendimento de imunidade (i) como limitação à competência tributária e (ii) como limitação ao poder de tributar,22 fragilizan-do a contestação à segunda linha de entendimento (já que faz correspondência equivocada entre competência tributária e poder tributário).

Nessa segunda linha de pensamento (de imunidade como limitação ao poder de tributar) não cabe a crítica pautada na impossibilidade de suposição de dois momentos cronologicamente diversos, já que é inserida no trato da matéria a noção de "poder" - noção que, cronologicamente, está pressuposta ao delineamento da competência.

Existe uma sensível diferença entre competência tributária e poder tributário.23 Aprópria Constituição Federal, quan-do insere as imunidades como limitações constitucionais ao poder de tributar, traz ínsita essa idéia de cisão entre as duas realidades, firmando como corolário um conceito mais amplo ("poder"), que, após ser lapidado por normas jurídicas (dentre elas as de imunidade), é transmudado ao conceito de "competência tributária". Não há, portanto, em que pese a posicionamentos em sentido diverso,24 similitude entre os conceitos.

Esse raciocínio é reforçado pelo escólio de Hugo de Brito Machado, que, tratando do assunto, expõe: "A palavra 'poder' alberga idéia de mando ilimitado. O Direito existe para impor limites ao poder. Por isto é que se diz que, uma vez organizado juridicamente o Estado, melhor falar-se de competência, em vez de poder tributário. A palavra...

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