Competência Legislativa em Matériade Licitação: Contribuições paraResolução de Conflitos entre os EntesFederados

AutorVictor Aguiar Jardim de Amorim
CargoAdvogado e Consultor Jurídico
Páginas34-42

Page 34

1. Introdução

Em razão do sistema de distribuição de compe-tências legislativas entres os entes federados instituído pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessária uma análise da problemática atinente à delimitação da atuação de cada ente nas matérias de competência normativa concorrente.

A distribuição de competência do tipo vertical pressupõe a existência de um critério para a conciliação de interesses entre os entes, sendo conferida à União a prerrogativa de editar normas gerais em relação às matérias especificamente indicadas pela Constituição.

Tais normas gerais deverão ser observadas pelos demais entes federativos quando da edição de suas respectivas leis tendentes a complementar as disposições gerais advindas da União.

Diante de tal realidade e considerando a previsão do art. 22, XXVII, da CF, que confere à União a competência de editar normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, é necessária a realização de acurado estudo para se identificar, a partir da atual lei nacional que dispõe sobre o assunto (Lei 8.666/93), as normas de cunho geral, de modo que, dessa forma, sejam delimitados os espaços normativos passíveis de serem preenchidos pelos estados, Distrito Federal e municípios.

2. Do sistema constitucional de repartição de competências

A forma federativa de Estado prescinde da concatenação de diversos requisitos que lhe possibilitam a existência.

O Estado federal apresenta uma complexa estrutura organiza-

Page 35

cional, tanto no aspecto jurídico, quanto no aspecto político.

Em havendo a pluralidade de ordenamentos jurídicos, dada a autonomia dos entes que compõem a Federação, mostra-se necessária a organização e estruturação do poder central e regional de modo a evitar eventuais conflitos e sobreposições de competências.

"Federação implica igualdade jurídica entre a União e os Estados, traduzida num documento (constitucional) rígido, cuja principal função é discriminar competência de cada qual, de modo a não ensejar violação da autonomia recíproca por qualquer das partes."1

Em sede de conclusão preliminar, assenta-se ser a repartição de competência requisito essencial para a manutenção da forma federativa de Estado.

Não há dúvida de que a manutenção da autonomia dos entes federados perpassa, necessariamente, pela adequada estruturação de um sistema de repartição de competências, com vistas a garantir o equilíbrio e a harmonia.

Cabe à Constituição Federal o papel de assegurar a coexistência entre os múltiplos ordenamentos jurídicos existentes: o da própria Federação, que é central, e dos es-tados-membros, que são parciais.

Com efeito, é assente que a existência da Federação pressupõe um sistema constitucional de repartição das competências atribuídas aos entes autônomos, cabendo à Constituição disciplinar os critérios de distribuição.

Tem-se que competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são, assim, as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.

Consoante José Afonso da Silva:

"Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções."2

A necessidade de manutenção de um sistema de equilíbrio e harmonia entre os entes federativos traduz a enorme relevância do sistema de repartição de competências para a existência do Estado federado.

Nas palavras de Uadi Lam-mêgo Bulos,

"Competências federativas são parcelas de poder atribuídas, pela soberania do Estado Federal, aos entes políticos, permitindo-lhes tomar decisões, no exercício regular de suas atividades, dentro do círculo pré-tra-çado pela Constituição da República.

(...)

O exercício harmônico dessas atribuições é responsável pela manutenção do pacto federativo, pois uma entidade não pode adentrar o campo reservado à outra, praticando invasão de competências."3

Com base, primordialmente, na experiência federalista norte-americana, ao longo do tempo, foram sendo desenvolvidas diversas "técnicas" de distribuição de competência entre os entes que compõem a federação4.

Mostra-se como técnica mais utilizada pelos países ocidentais a repartição vertical, por meio da qual é permitida a coordenação e a complementação de atribuições por parte dos entes constitucionais. Abrange a competência comum, em que todas as pessoas da Federação podem atuar em determinadas esferas ao mesmo tempo, preferencialmente de maneira coordenada, além da competência concorrente, em que as normas de caráter geral são definidas pela União, podendo os demais entes federativos, dentro do mesmo campo material, dispor sobre as regras pertinentes aos interesses regionais ou locais.

Com efeito, a aplicação da técnica da repartição vertical funda-se no critério da predominância do interesse, segundo o qual as matérias de interesse nacional são normatizadas pela União, as de interesse regional pelos estados, ficando os municípios encarregados dos assuntos de interesse local.

Por sua vez, é notória a ausência de consenso jurisprudencial ou doutrinário a respeito do entendimento do termo "normas gerais" utilizado no texto constitucional, conforme anota José Adércio Leite Sampaio,

"A formulação de um conceito de normas gerais, como salientamos, não é tarefa das mais fáceis. A doutrina se tem debatido com esse tema e os resultados não são muito úteis. Podemos reunir sucintamente a construção jurídica do conceito de normas gerais a partir das qualidades que uma norma jurídica deve apresentar para ser considerada como tal: sua natureza principiológica ou diretiva (normas-diretrizes), a 'fun-damentalidade' ou 'essencialidade' do objeto de sua disciplina para o sistema jurídico-constitucional, seu amplo alcance subjetivo, de modo a contemplar todos os entes públicos (norma de caráter nacional), e também objetivo, a disciplinar todas as situações ou institutos jurídicos de mesma espécie (norma uniforme) e, enfim, sua eficácia indireta para os cidadãos ou imediatamente vincu-lante apenas ao legislador estadual (norma de norma).

Segundo o ministro Carlos Velloso, fundado em Alice Borges, tais normas seriam identificadas como normas nacionais, de caráter mais genérico e abstrato do que apresentam as normas jurídicas em geral e, notadamente, aquelas normas locais. Todavia esse índice mais elevado de generalidade só pode ser avaliado caso a caso, de acordo com

Page 36

as suas peculiaridades e a uma certa dose de discricionariedade judicial, exigindo, da mesma forma, uma apresentação casuísta de um conceito que se vai perfilhando de maneira negativa. Assim, por exemplo, a União recebeu competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitação em todas as modalidades para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais dela própria, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 22, XXVII). Pois bem, no exercício dessa competência, ela terminou cometendo excessos. Os dispositivos da Lei n. 8.666/1993 que proibiam a doação de imóvel e a permuta de bem móvel, que não fossem para outro órgão da Administração Pública, bem como a imposição obrigatória de condição resolutiva às doações de imóveis - permitida a inalienabilidade, pelos donatários, dos bens doados - que, por entrarem em detalhamento na disciplina do assunto, fugiam do conceito de norma geral.5

Ora, em várias situações podemos perceber que o interesse municipal pode prevalecer sobre o nacional, ou sobre o estadual, ou, então, o estadual sobre o nacional.

Tal avaliação perpassa pela concepção de "interesse público", que nos dizeres de Toshio Mukai,

"Não pode ser medido apenas quantitativamente, visto que se trata de um conceito indeterminado e não matemático. E é de Georges Vedei o conceito mais preciso de interesse público, para quem ele não é nem a soma dos interesses particulares, nem é alheio aos indivíduos que compõem a Nação: 'é a composição entre diversos interesses particulares, sendo, quantitativamente, o interesse do maior número de pessoas, e, qualitativamente, podendo ser o de uma minoria cujo interesse, pelo seu valor humano, se considera superior aos interesses da maioria'.

É também a linha de ensinamento de Celso Bastos, lembrada por Ed-gard Silveira Bueno Filho: 'A verdade é que o interesse da coletividade local deve prevalecer sobre o geral, desde que dentro do parâmetro lembrado por Celso Bastos. Ou seja, se o bem afetado tem maior repercussão na necessidade local e menor na necessidade geral, deve prevalecer a proteção da primeira'."6 (grifou-se)

De todo modo, tem-se que o parâmetro mais consentâneo com a lógica federativa para analisar eventual conflito de competência entre União e os demais entes da Federação é, de fato, o critério da preponderância de interesses, sendo, inadmissível que haja uma presunção absoluta de supremacia do interesse federal sobre os demais entes que compõem a federação brasileira.

Ora, a lógica da presunção acima criticada, ao determinar a preferência do interesse federal diante de um caso de colisão com qualquer que seja o interesse envolvido, independentemente das variações presentes no caso concreto, termina por suprimir os espaços para ponderações.

Nesse sentido, vejamos as precisas palavras de Gustavo Binen-bojm:

"(...) se o interesse público, por ser um conceito jurídico indeterminado, só é aferível após juízos de ponderação entre direitos individuais e metas ou interesse coletivos, feitos à...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT