Competência tributária e a sua estrutura normativa

AutorTácio Lacerda Gama
CargoMestre e Doutor pela PUC/SP
Páginas29-52

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Nas próximas páginas responderemos à pergunta sobre se é possível e útil construir uma norma de competência tributária.1 Após elucidar-mos as acepções adotadas para os termos "norma" e "competência", ficará claro que a proposta é oferecer um modelo lógico-sintático de representação das normas2 que prescrevem como outras normas devam ser feitas. Para definir o que deve estar contido nesta representação, retomaremos algumas premissas já expostas noutros trabalhos.

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A primeira delas é a de que a unidade do signo é dada pela relação entre significante e significado. Com as devidas alterações, a unidade da norma de competência deve disciplinar, integralmente, a conduta de criar outras normas. Outra premissa relevante é a seguinte: os elementos do sistema de direito positivo são dotados de heterogeneidade semântica e pragmática, mas de homogeneidade sintática, pois se organizam segundo a mesma forma.3 Por fim, relacionaremos sete elementos que precisam ser, direta ou indiretamente, disciplinados pela norma de competência, sob pena de essa não prescrever o mínimo e irredutível de manifestação do deôntico.

Fundados nestes pontos de partida, vejamos como construir uma estrutura lógica para a norma de competência tributária.

1. Enunciados, proposições, normas em sentido amplo, normas em sentido estrito e normas em sentido completo

Enunciados são porções de texto a partir das quais se constrói um sentido. Como define Paulo de Barros Carvalho, os "enunciados" aparecem como "um conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma, consubstanciam a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da comunicação".4 Enunciados prescritivos, por sua vez, são fragmentos do direito positivo a partir dos quais se constrói o sentido das mensagens normativas.

Quando deixamos a objetividade dos textos e passamos à subjetividade do intérprete que constrói a mensagem, transitamos do plano dos enunciados ao das proposições. Se os enunciados eram jurídicos, as proposições construídas a partir deles serão prescritivas de conduta. Numa definição: a proposição prescritiva é o sentido construído a partir dos enunciados prescritivos.5

Nem sempre, porém, podemos equiparar o conceito de proposição prescritiva com o conceito de norma jurídica. Isto porque norma jurídica é conceito po-lissêmico, que, por isso mesmo, pode ser aplicado em diversas circunstâncias, com diferentes acepções.

Fixemos, para os fins deste trabalho, três acepções fundamentais: norma em sentido amplo, norma em sentido estrito e norma em sentido completo.

Norma jurídica em sentido amplo é sinônimo de proposição prescritiva. A simples indicação de uma alíquota, a qualificação de um sujeito passivo ou ativo, a prescrição de uma imunidade, de um princípio, são, todos elas, exemplos de proposições ou normas jurídicas em sentido amplo.

Muito embora esteja próxima do senso comum, essa idéia de "norma" é vaga e, por isso, enseja imprecisão. Vejamos, por exemplo, uma norma em sentido amplo que estabeleça: "A alíquota do tributo é de 10%". De imediato se questionaria: que tributo? Deve ser aplicada sobre que base de cálculo? O que torna o tributo devido? Onde e quando esse fato pode ocorrer? Quem deve pagar e quem deve receber? Entre outras questões igualmente possíveis. Toda essa sorte de dúvidas evi-

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dencia a necessidade de um conceito mais preciso, que agregue os elementos numa estrutura com sentido jurídico.

É justamente isso o que se propõe a norma jurídica em sentido estrito: aglutinar os elementos necessários à expressão do mínimo e irredutível de manifestação do deôntico. Como ensina Karl Engish, é necessário "reconduzir a um todo unitário os elementos ou partes de um pensamento jurídico-normativo completo que, por razões 'técnicas', encontram-se dispersas -para não dizer violentamente separadas".6 Com efeito, as proposições prescritivas devem ser reunidas, uma a uma, num juízo condicional que vincula um acontecimento a uma conseqüência jurídica. O acontecimento é um fato. A conseqüência, uma relação.7 O vínculo entre antecedente e conseqüente é a expressão da vontade competente para criar a norma, é o dever-ser.

O antecedente da norma jurídica pode mencionar um fato passado; sendo, nesses casos, concreta a norma.8 Mas pode conotar atributos para um fato de futura ocorrência. Nestas situações, o antecedente da norma assume feição abstrata.9 No antece-dente abstrato, ou hipótese, descrevem-se características, notas, que possibilitam a identificação de acontecimentos juridicamente relevantes.10 O antecedente concreto da norma, por seu turno, volta-se para o passado, trazendo para o mundo jurídico um fato que já ocorreu no espaço e no tempo.

Não é relevante para o direito positivo o acontecimento social, todo ele, mas apenas aquele conjunto de características previstas na hipótese como sendo relevantes. Explica Pontes de Miranda: "O fato jurídico provém do mundo fáctico, porém nem tudo que o compunha entra, sempre, no mundo jurídico (...)". Mais adiante, conclui: "No dizer o que é que cabe no suporte fáctico da regra jurídica, ou, melhor, no que recebe a sua impressão, a sua incidência, a regra jurídica discrimina o que há de entrar e, pois, por omissão, o que não pode entrar".11

Esse aspecto seletor de propriedades12 da hipótese normativa demarca os contornos que separam o fato jurídico dos demais fatos sociais.

Vejamos, em ordem, o que acabamos de expor: (i) o sujeito competente prescre-

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ve uma hipótese normativa; (ii) a hipótese veicula uma escolha por certas características de um acontecimento futuro e incerto; (iii) esse acontecimento sucede no mundo social; (iv) ingressa no mundo jurídico não aquilo que ocorre no meio social (evento), mas a tradução de elementos deste fato social para a linguagem prescritiva das normas (fato jurídico), conforme a escolha programada normativamente pela hipótese.

Observemos, agora, o que falamos, na forma de um exemplo: (i) a União elegeu uma série de hipóteses para o imposto sobre a renda; (ii) numa delas, previu circunstância de um contribuinte brasileiro, num determinado lapso de tempo, perceber renda ou provento de qualquer natureza; (iii) "Pedro", residente e domiciliado no país, percebe uma série de rendimentos no exercício financeiro de 2007; em face disso, (iv) ele descreve os ganhos percebidos e suas respectivas origens, na forma prevista pela lei.

Essa circunstância, passada ou futura, prevista no antecedente da norma, deve ser contingente, ou seja, possível e não necessária. Fatos impossíveis não ocorrem no espaço e no tempo, por isso não se subso-mem à hipótese das normas jurídicas. Fatos de ocorrência necessária independem da vontade - e, portanto, seguem as leis da Natureza, e não do Direito. Nos dois casos não faria senso cogitar de regulação jurídica.13

O antecedente das normas jurídicas relata fato, de modo concreto ou abstra-to, cuja ocorrência enseja a imputação de efeitos jurídicos individuais ou gerais. É abstrata a menção de acontecimento futuro contingente, ou seja, de ocorrência incerta, mas provável.

Vejamos mais: para regular a conduta, a norma prevê ou relata um fato e imputa efeitos que são, necessariamente, relações jurídicas. É uma relação jurídica o vínculo estabelecido entre dois sujeitos, na qual um deles pode exigir um comportamento do outro, sendo o primeiro denominado de sujeito ativo e o outro, passivo. Paulo de Barros Carvalho define relação jurídica como sendo "vínculo abstrato segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada de sujeito passivo, o cumprimento de uma determinada prestação".14 No mesmo sentido são as palavras de Karl Engisch: "As conseqüências jurídicas, que nas regras de Direito aparecem ligadas às hipóteses legais, são constituídas por direitos e deveres".15 É também ele quem ensina: "Ser-nos-á permitido pensar aqui em direitos e deveres positivos - se bem que eventualmente possamos ainda pensar naqueles direitos e deveres que são algo negativo, um non facere ou omissão. Eles representam a própria substância do Direito. Em face deles as negações (slc. efeitos jurídicos) apresentam-se tão-só como limitações, como algo secundário. O centro gravitacional do Direito reside nisto: em ele positivamente conferir direitos e impor deveres".16

O vínculo efetivo, com sujeitos individualizados e prestação igualmente determinada, chama-se relação jurídica individual. Empregaremos também a...

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