Distribuição de competências no processo executivo português reformado

AutorLeonardo Faria Schenk
CargoDoutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor convidado de Direito Processual Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Advogado
Páginas210-223

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1. Introdução

O sistema executivo português vem sendo alterado com regularidade em busca de melhores resultados.

Em 1985, por exemplo, por via do Decreto-Lei n.º 242, de 9 de setembro, passos significativos foram dados para facilitar o acesso à tutela executiva. Na oportunidade, dentre outras medidas, ao exequente foi reconhecido o direito de nomear bens à penhora no requerimento inicial quando a execução se apoiasse em condenação transitada em julgado há menos de um ano, antecipando-se a efetivação da constrição patrimonial, seguida pela notificação do devedor e eventual resistência. Também o reconhecimento de firma do devedor foi dispensado em alguns títulos executivos.1

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Mais tarde, em 1993, o Decreto-Lei n.º 404, de 10 de dezembro, criou o procedimento de injunção, destinado a possibilitar uma forma célere e simplificada de obtenção do título executivo nas obrigações pecuniárias de pequeno valor.

O ciclo de revisão do Código de Processo Civil português, levado a efeito pelos Decretos- Leis n.º 329-A, de 12 de dezembro de 1995, n.º 180, de 25 de setembro de 1996, não deixou de fora a execução.

LEBRE DE FREITAS, ao arrolar as principais inovações desse período, destacou a melhoria nos sistemas de realização dos direitos dos credores; o alargamento do rol dos títulos executivos; a imposição de dever ao judiciário de cooperar para a descoberta dos bens do executado; a supressão da moratória forçada; a racionalização dos sistemas de oposição à penhora; a dispensa de alguns atos de comunicação processual e a agilização dos procedimentos de venda. Foram ainda aclaradas algumas ambiguidades da disciplina processual e fortalecida a posição do terceiro interessado.2

Na oportunidade, também a simplificação do procedimento foi buscada, com a previsão do rito sumário para as execuções fundadas em sentenças líquidas ou sujeitas à apuração do valor da condenação por mero cálculo. Para todas as demais permanecia o procedimento ordinário. A adoção do procedimento sumário assegurava o direito de o exequente nomear bens à penhora logo na petição inicial da execução, seguindo-se a efetivação da constrição patrimonial e a notificação do devedor, cabendo ao executado impugnar, querendo, tanto a penhora quanto a própria execução em um único momento.3

Não ficou por aí. Em 1997, o Decreto-Lei n.º 274, de 8 de setembro, novamente cuidou da estrutura dos procedimentos executivos, estabelecendo um rito sumário de execução simplificado e outro, denominado sumaríssimo especial, para a cobrança das dívidas de pequeno valor.

Constatado o aumento da litigiosidade nas últimas décadas e o consequente crescimento do número de causas pendentes de julgamento e de efetivação do resultado,4 Portugal alterou profundamente o seu sistema executivo em 2003, por meio do Decreto-Lei n.º 38, de 8 de março.

Para LEBRE DE FREITAS, duas foram as principais linhas orientadoras dessa reforma: "a preocupação de proporcionar a maior eficiência e a preocupação de garantir a salvaguarda dos direitos dos cidadãos." 5

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Um dos traços marcantes da reforma de 2003 foi a tentativa de desonerar os órgãos judiciais, com uma nova distribuição de competências funcionais. Buscou-se um modelo de execução desjudicializada, com a transferência de inúmeras competências para os agentes de execução, sem quebra da reserva jurisdicional e do controle judicial.6 Até então, todo e qualquer ato da execução, ainda que sem natureza jurisdicional, deveria ser praticado pelas partes ou pelos órgãos jurisdicionais.7

Nas palavras de GOUVEIA, foi uma "reforma ambiciosa, que partiu de idéias desconhecidas" no ordenamento português, instituindo "práticas novas e arrojadas." 8

A mudança de paradigma imposta pela execução reformada foi antecedida por estudos sociológicos e estatísticos, os quais auxiliaram na identificação das causas de bloqueio do processo executivo9 e serviram de apoio para a adoção do modelo da desjudicialização e da simplificação processual, ao simples reforço da estrutura judiciária existente.

O novo modelo foi apoiado sobre dois poderes: o jurisdicional, atribuído ao juiz da execução, a essa altura liberto de outras tarefas; e o de direção processual, confiado ao agente de execução, agora com atributos de autoridade.10

O presente estudo abordará as dificuldades dessa divisão de competências na ação executiva portuguesa reformada, passando pelo esperado equilíbrio entre os seus agentes para, na parte final, revelar o atual panorama legislativo.

2. Os agentes de execução

Um dos pontos de maior destaque na reforma da ação executiva portuguesa, levada a efeito em 2003, foi a nova estrutura de repartição de competências entre os magistrados e os agentes de execução.

Os agentes de execução foram pensados para assegurar o andamento dos processos, em substituição aos juízes, mas sob o seu controle. São duas as categorias de agentes de execução, os solicitadores de execução, estruturada dentre os já existentes solicitadores, sujeitos à formação e qualificação próprias e a um estatuto disciplinar específico, e os funcionários judiciais, pertencentes à secretaria de execução, com competência para atuar nas regiões em que não haja solicitadores de execução e em outros casos específicos.

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Ao agente de execução passou a competir a realização de todas as diligências do processo de execução, nos termos do art. 808 do Código de Processo Civil português e demais disposições, segundo leciona COSTA E SILVA.11 Incluem-se, dentre elas, a realização das citações, notificações, publicações, atos de penhora, venda e pagamento, exercidas sob o controle do juiz da execução.

A escolha do agente de execução foi assegurada ao exequente no próprio requerimento executivo, dentre os inscritos na própria comarca ou em comarca limítrofe ou, ainda, na falta, dentre aqueles inscritos em outra comarca do mesmo círculo judicial.12 Na outra ponta, a destituição do agente de execução era inicialmente ato reservado ao órgão judicial, e poderia ocorrer de ofício ou mediante provocação do exequente sempre que se apurasse atuação processual dolosa ou negligente ou mesmo a violação grave dos deveres estatutários.

Um dos objetivos claros da reforma – o de restringir ao máximo as atuações primárias dos magistrados na ação executiva – encontrou, assim, forte apoio nessa nova distribuição de competências. Apenas quando impossível negar a natureza jurisdicional do ato a ser praticado é que se exigiria a intervenção judicial. Nos demais casos, a aproximação e o contato direito dos magistrados com a execução seriam evitados a todo custo.13

Esse modelo, fincado na distribuição da execução entre dois poderes, o jurisdicional e o de direção do processo, não era adotado em Portugal antes da reforma de 2003. Sua previsão impôs verdadeira mudança de paradigma. O legislador português optou pelo agente de execução depois de observar, na Europa, a existência de quatro modelos executivos.

Como descreve RESENDE, um deles se assenta na figura do "huissier de justice", profissional liberal que exerce a função de agente de execução sob a vigilância disciplinar de uma associação pública e submetido ao controle dos magistrados. Com origem na França, a estrutura foi adotada pela Holanda, Bélgica e Luxemburgo, expandindo-se para os países do Leste Europeu. 14

O segundo pertence aos países nórdicos, segundo o qual a cobrança de dívidas se faz por meio de uma estrutura administrativa, sem qualquer dependência do aparelho judicial. Fruto de uma mentalidade social substancialmente diversa, grande parte das dívidas são cobradas por simples envio de uma correspondência, esse modelo executivo conta, ainda, com amplo acesso aos dados dos devedores, inexistindo qualquer forma de sigilo.

O terceiro modelo adota o sistema fruto da Commom Law, com a criminalização frequente do não pagamento das dívidas. Nesse modelo, embora guarde alguma semelhança com o "huissier de justice", os agentes de execução nem sempre são profissionais liberais, mas contam com uma estrutura de associações.

O quarto revela soluções mistas, em reformulação em alguns países.

Feita a escolha pelos agentes de execução, uma indagação se impôs: por que entregar tal mister aos conhecidos solicitadores? Era preciso entender porque o legislador português confiou aPage 214essa categoria profissional novas e importantes competências no processo executivo. A escolha, pelo que se viu, atendeu ao aspecto prático.

Informa RESENDE, no particular, que os solicitadores são uma classe antiga, referida nas Ordenações Afonsinas e regulamentada nas Ordenações Filipinas, constituída em associação pública há mais de sete décadas. Com larga experiência e tradição na área jurídica, notadamente em questões patrimoniais, de direito de família e comercial, dentre outras, suas atribuições profissionais se assemelhavam com as dos agentes de execução de outros sistemas.15 Não menos importante na escolha do legislador português foram as vantagens de os solicitadores já estarem profissionalmente organizados, sujeitos a regras disciplinares próprias. Além disso, a categoria alcançava razoável extensão geográfica e sempre aceitou bem as incompatibilidades com o mandato.

Para os solicitadores, por outro lado, pesou a consciência de que a profissão estava em profunda crise. Contribuíram para esse cenário a privatização dos serviços de notas e a ampliação da utilização da mão-de-obra dos estagiários para os serviços complementares dos escritórios de advocacia.

Assim, tanto para o legislador, quanto para os solicitadores, a reforma unia o útil (aproveitar a estrutura já existente) ao agradável (oferecer novas oportunidades de...

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