Negro de alma branca? a guinada hermenêutica acerca da injúria racial no STJ e STF

AutorPaulo Fernando Soares Pereira, Thiago Gomes Viana, Jorge Alberto Mendes Serejo
CargoPós-Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ? PUC/RIO. Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Procurador Federal na Advocacia Geral da União (AGU). E-mail: paulofsp1983@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-6802-9035 / DouDoutorando em Direito, Estado e Constituição...
Páginas159-196
Revista Direito.UnB |Revista Direito.UnB | Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 153-190 Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 153-190
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NEGRO DE ALMA BRANCA? A GUINADA HERMENÊUTICA
ACERCA DA INJÚRIA RACIAL NO STJ E STF
BLACK WITH WHITE SOUL? THE NEW HERMENEUTICAL STANDARDS
ABOUT RACIAL INJURY IN STJ AND STF
Paulo Fernando Soares Pereirai
Pós-Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RIO.
Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Procurador Federal na Advocacia Geral da União (AGU).
E-mail: paulofsp1983@gmail.com.
https://orcid.org/0000-0001-6802-9035
Thiago Gomes Viana
DouDoutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB.
Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Professor da graduação e pós-graduação da UNDB – Centro Universitário, Centro Universitário Estácio e da Es-
cola Superior do Ministério Público do Maranhão (MPMA).
E-mail: thiagogviana88@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3760-1657
Jorge Alberto Mendes Serejo
Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Professor dos cursos de graduação em Direito da UNDB – Centro Universitário e do Instituto de Ensino Superior
Franciscano (IESF).
Advogado.
E-mail: j_serejo@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0355-4346
RESUMO
A legislação penal antirracista pátria nasceu como resposta às reivindicações do Movimento Negro
brasileiro, no entanto, desde a pioneira Lei Afonso Arinos, até hoje, são várias as críticas do movimento
e da academia quanto à sua efetividade. Relativamente ao crime de injúria racial, questiona-se se e em
que medida a doutrina e jurisprudência têm realizado uma leitura constitucionalmente adequada do inciso
XLII, do art. 5º, da Constituição Federal. Adotando-se metodologicamente o método dedutivo e a análise
documental, objetiva-se explorar as controvérsias acerca do crime de injúria racial a partir do Caso Heraldo
Pereira x Paulo Henrique Amorim no STJ e STF, onde se decidiu pela imprescritibilidade do delito. Para tanto,
inicialmente, aborda-se a categoria do racismo, suas concepções e principais aspectos. Posteriormente,
analisa-se a transformação, evolução da legislação antirracista no Brasil e sua instrumentalização nas
disputas do campo jurídico. Por fim, aborda-se a guinada hermenêutica no STJ e STF quanto ao referido
crime a partir do caso em análise e suas implicações penais materiais e processuais. Conclui-se ser
acertada a tese acolhida pelo STJ e STF no caso, concretizando uma adequada leitura constitucional do
conceito de racismo (Caso Ellwanger) e sintonizada com os dados empíricos, de modo a enfrentar a que se
mostra a mais comum manifestação racista.
Palavras-chave: Racismo; Injúria; Nomeação; Judiciário; Branquitude.
Recebido: 14/02/2021
Aceito: 30/11/2021
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ABSTRACT
Brazilian’s anti-racist criminal legislation was born in response to the demands of the
brasilian Black Movement; however, since the pioneering Afonso Arinos law, until
today, there have been several criticisms from the movement and the Academy about
its effectiveness. Regarding the crime of racial insult, it is questioned whether and
how the legal doctrine and jurisprudence have carried out a constitutionally adequate
reading of art. 5º, XLII, of the Federal Constitution. Adopting the deductive method and
documentary analysis, the present article intend to explore the controversies about the
crime of racial insult based on the case Heraldo Pereira versus Paulo Henrique Amorim
at STJ and STF, where the decision made was for its imprescriptibility. Therefore, the
category of racism, its conceptions and main aspects are approached. Subsequently,
analyses the transformation of anti-racist legislation in Brazil and its instrumentalization
in wranglings in the legal field. Finally, the hermeneutic shift at STJ and STF regarding the
crime in question and its material and procedural criminal implications are addressed. It
concludes that the thesis accepted by the STJ and STF in the case was correct, carrying
out an adequate constitutional reading of the concept of racism (Ellwanger Case) and in
tune with the empirical data, in order to face the most common racist manifestation.
Keywords:Whiteness; Racial insult; Judiciary; Nomination; Racism.
1. Introdução
O debate sobre a igualdade racial tem cada vez mais ocupado espaço nas O debate sobre a igualdade racial tem cada vez mais ocupado espaço nas
discussões públicas, especialmente após o surgimento da internet e suas potencialidades discussões públicas, especialmente após o surgimento da internet e suas potencialidades
comunicativas que permitem o contato e articulação de pessoas de distintos lugares de comunicativas que permitem o contato e articulação de pessoas de distintos lugares de
um mesmo país e até mesmo fora das fronteiras nacionais.um mesmo país e até mesmo fora das fronteiras nacionais.
Essa preocupação se espelha na aprovação de diversos diplomas internacionais Essa preocupação se espelha na aprovação de diversos diplomas internacionais
específicos sobre a temática desde ao menos 1958. Em 23 de dezembro de 2013, a específicos sobre a temática desde ao menos 1958. Em 23 de dezembro de 2013, a
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou o Programa de Atividades Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou o Programa de Atividades
para a Implementação da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), para a Implementação da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024),
estruturado nos eixos reconhecimento, desenvolvimento e justiça, tendo como principais estruturado nos eixos reconhecimento, desenvolvimento e justiça, tendo como principais
objetivos a promoção do respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos objetivos a promoção do respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, bem como um maior e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, bem como um maior
conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a contribuição de conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a contribuição de
afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades e, ainda, adotar e reforçar os afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades e, ainda, adotar e reforçar os
ordenamentos jurídicos nacionais, regionais e internacionais, de modo a fazer cumprir ordenamentos jurídicos nacionais, regionais e internacionais, de modo a fazer cumprir
a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
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No Brasil, a temática racial saiu da condição de “estados de coisas” No Brasil, a temática racial saiu da condição de “estados de coisas” 11 e se transformou e se transformou
em um problema político apenas em 1950 e, ainda assim, motivada notadamente pelo em um problema político apenas em 1950 e, ainda assim, motivada notadamente pelo
caso da famosa bailarina Katherine Dunham, que teve a hospedagem negada em um caso da famosa bailarina Katherine Dunham, que teve a hospedagem negada em um
hotel na cidade de São Paulo, onde viera se apresentar. O fato teve uma forte repercussão hotel na cidade de São Paulo, onde viera se apresentar. O fato teve uma forte repercussão
negativa nacional e internacionalmente e poucos meses depois foi aprovada a Lei nº negativa nacional e internacionalmente e poucos meses depois foi aprovada a Lei nº
1.390/51 (Lei Afonso Arinos). Após as articulações no processo constituinte, a previsão 1.390/51 (Lei Afonso Arinos). Após as articulações no processo constituinte, a previsão
na Carta Magna do racismo como crime imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de na Carta Magna do racismo como crime imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de
reclusão foi celebrada como uma vitória pelo Movimento Negro. Cerca de um ano depois, reclusão foi celebrada como uma vitória pelo Movimento Negro. Cerca de um ano depois,
a Lei Afonso Arinos foi posteriormente revogada pela vigente Lei nº 7.716/1989 (Lei a Lei Afonso Arinos foi posteriormente revogada pela vigente Lei nº 7.716/1989 (Lei
Caó). Esta e todas as leis que alteraram a redação desta, além de outras, a exemplo do Caó). Esta e todas as leis que alteraram a redação desta, além de outras, a exemplo do
Estatuto da Igualdade Racial, comprovam não apenas uma preocupação do Movimento Estatuto da Igualdade Racial, comprovam não apenas uma preocupação do Movimento
Negro como também do Estado, em, ao menos na seara legal, prever mecanismos de Negro como também do Estado, em, ao menos na seara legal, prever mecanismos de
enfrentamento ao racismo.enfrentamento ao racismo.
Dentre as leis que alteraram a Lei Caó, a Lei nº 9.459/1997 surgiu como reação à Dentre as leis que alteraram a Lei Caó, a Lei nº 9.459/1997 surgiu como reação à
famigerada prática jurisprudencial em não enquadrar na Lei Caó as ofensas de cunho famigerada prática jurisprudencial em não enquadrar na Lei Caó as ofensas de cunho
racista e classificar tais discursos como injúria simples. Assim, criada a figura da injúria racista e classificar tais discursos como injúria simples. Assim, criada a figura da injúria
racial no Código Penal (CP), a jurisprudência eivada de racismo estrutural passou a racial no Código Penal (CP), a jurisprudência eivada de racismo estrutural passou a
entender que o mandado constitucional de criminalização se circunscreveria apenas às entender que o mandado constitucional de criminalização se circunscreveria apenas às
condutas previstas na Lei Caó, não à injúria racial porque esta não seria manifestação condutas previstas na Lei Caó, não à injúria racial porque esta não seria manifestação
de racismo.de racismo.
O presente artigo tem como objetivo trabalhar a mudança paradigmática quanto O presente artigo tem como objetivo trabalhar a mudança paradigmática quanto
ao delito de injúria racial operada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo ao delito de injúria racial operada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo
Tribunal Federal (STF), notadamente motivada pelo Caso Heraldo Pereira versus Tribunal Federal (STF), notadamente motivada pelo Caso Heraldo Pereira versus
Paulo Henrique Amorim, reconhecendo-se, à revelia do que até então se decidia nos Paulo Henrique Amorim, reconhecendo-se, à revelia do que até então se decidia nos
tribunais e no que pensava o senso comum teórico dos juristas, a imprescritibilidade e tribunais e no que pensava o senso comum teórico dos juristas, a imprescritibilidade e
inafiançabilidade de tal delito.inafiançabilidade de tal delito.
Para tanto, na primeira parte, analisa-se, de maneira geral, o fenômeno do racismo Para tanto, na primeira parte, analisa-se, de maneira geral, o fenômeno do racismo
e sua complexidade e constante mutabilidade, a fim de demonstrar que a injúria racial e sua complexidade e constante mutabilidade, a fim de demonstrar que a injúria racial
e o crime de racismo, em verdade, fazem parte do mesmo fenômeno que a Constituição e o crime de racismo, em verdade, fazem parte do mesmo fenômeno que a Constituição
Federal procurou combater. Federal procurou combater.
Na segunda parte, debater-se-á a historicização da criminalização do racismo Na segunda parte, debater-se-á a historicização da criminalização do racismo
na legislação brasileira ao longo dos processos de disputas sobre a questão racial no na legislação brasileira ao longo dos processos de disputas sobre a questão racial no
1 Entende-se por “estado de coisas” a “situação que se arrasta durante um tempo razoavelmente
longo, incomodando grupos de pessoas e gerando insatisfações sem, entretanto, chegar a mobilizar as
autoridades governamentais. Trata-se de uma situação que incomoda, prejudica, gera insatisfação para
muitos indivíduos, mas não chega a constituir um item da agenda governamental, [...] não se encontra
entre as prioridades dos tomadores de decisão”. (RUA, Maria das Graças. Políticas públicas. 3. ed. rev.
atual. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2014, p.
66).
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