O Neoconstitucionalismo e a Aplicação Imediata dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas

AutorClara Cardoso Machado
CargoBacharel em direito pela UFS-Universidade Federal de Sergipe
Introdução

O Estado Democrático de Direito contemporâneo1, marcado pela moderna concepção de direito Constitucional também denominado por muitos de “neoconstitucionalismo”2 abriga um novo artefato para todas as relações jurídicas- o fenômeno da constitucionalização do direito.

Após uma longa fase teórica de enfoque meramente periférico e político da Constituição3, percebeu-se a necessidade de aferir uma carga axiológica, normativa, vinculante e suprema ao texto constitucional a fim de que todas as relações jurídicas fossem pautadas a partir da Lei Fundante do País, que deve estar sempre no centro do Ordenamento Jurídico.

Diante disto, o neoconstitucionalismo se destaca como um meio de suplantar o Estado Legislativo de Direito e consubstanciar o Estado Constitucional de Direito, de modo que as condições de validade das normas jurídicas passaram a depender não só de seu aspecto formal, mas também da compatibilidade de seu conteúdo com os princípios e regras constitucionais4.

Outra importante característica do novo direito constitucional é a incorporação explícita em seus textos de valores, mormente no que diz respeito aos direitos fundamentais e a opções políticas específicas (como a obrigação de o Estado prestar serviços na área da educação e saúde) e gerais (como a redução das desigualdades sociais) existentes dentro do próprio sistema constitucional5.

Ademais, o novo direito constitucional também foi responsável pela exigência de uma leitura verticalizante de todos os ramos da ciência jurídica, então conhecida como constitucionalização do direito, que se evidencia através da interpretação da lei conforme a Constituição6 e da aplicação direta da Lex Maxima às relações jurídicas.

Nesta perspectiva, visualiza-se uma premente filtragem constitucional7 em todos os âmbitos do ordenamento jurídico que devem ser concebidos e efetivados, a partir de então, de acordo com os valores imersos na Constituição, como, por exemplo, a observância dos princípios e regras de direitos fundamentais.

Na trilha deste raciocínio, Luís Roberto Barroso8 ilustra a contribuição do neocontitucionalismo para o direito Constitucional contemporâneo:

[...] o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito Constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado Constitucional de Direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.

No Brasil, o fenômeno da constitucionalização do direito surgiu com a Constituição de 1988. De fato, a Carta Democrática de outubro tem um nítido caráter neoconstitucional, uma vez que foi a partir dela que se iniciou uma valorização não meramente formal da Constituição9, como outrora se observara, mas também material, potencializada pela normatividade de seus princípios e pela previsão de uma série de direitos e garantias fundamentais que visam o fortalecimento do sistema constitucional sobre todas as esferas do direito.

É neste novo paradigma que se faz premente a necessidade da plena efetivação dos direitos constitucionais, ressaltando-se, pois, a importância da aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas, conforme ficará demonstrado no decorrer deste artigo.

1. Breves Considerações acerca da Teoria dos Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais ocupam um espaço primordial entre os demais direitos no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que são aqueles que, quando efetivados, são capazes de garantir uma sociedade livre, justa e fraterna.

Consoante as lições do professor José Afonso da Silva, os direitos fundamentais tratam de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive10, ou seja, são direitos reconhecidos pelo Estado para propiciar uma vida mais digna ao homem.

Historicamente, a teoria dos direitos fundamentais ganhou diferentes enfoques no âmbito jurídico. Vista inicialmente sob um prisma eminentemente social e político vinculada apenas à idéia dos direitos preexistentes e inatos a toda e qualquer pessoa, a teoria foi conquistando espaço no mundo do direito na medida em que a sociedade evoluiu e, consequentemente, exigiu o reconhecimento efetivo das novas dimensões dos direitos fundamentais dentro do Estado Constitucionalizado.

De fato, é nítida a preexistência dos direitos do homem11, principalmente quando se pensa nos ideários de liberdade, igualdade e fraternidade que, apesar de só serem expostos na Revolução Francesa, sempre estiveram no âmago dos seres humanos. Ocorre que apesar da patente inerência destes direitos, para que os mesmos fossem reconhecidos e efetivados era mister uma formulação jurídica adequada que só aconteceu com as Declarações Solenes.

Destarte, conforme leciona José Afonso da Silva12 as declarações “assumiram a forma de proclamações solenes em que, em articulado orgânico especial, se enunciam os direitos. Depois, passaram a constituir o preâmbulo das Constituições (...)”. Neste sentido, tais declarações tinham o fito, portanto, de positivar o reconhecimento pelo Estado de direitos que preexistem a ele, como sendo inerentes ao homem que era visto como sujeito de direitos.

Assim, os direitos do homem começaram a ser formalmente reconhecidos no século XIII, com a Magna Charta Libertatum de 1215, proclamada na Inglaterra pelo Rei João Sem Terra, que, apesar de ser uma declaração feudal para proteger os privilégios dos barões ingleses, é considerada como um ponto de referência para algumas liberdades públicas, como o devido processo legal, a liberdade de locomoção e a garantia da propriedade13.

Posteriormente, destacaram-se na gênese dos direitos fundamentais as declarações de direitos inglesas do século XVII, nomeadamente a Petition of Rights, de 1628, firmada por Carlos I, o Habeas Corpus Act, de 1679, subscrito por Carlos II, e o Bill of Rights, de 1689, promulgado pelo Parlamento Inglês. Tais declarações significaram a evolução dos direitos humanos, porquanto implicaram a expressiva ampliação no conteúdo das liberdades reconhecidas e a extensão da sua titularidade à totalidade dos cidadãos ingleses14.

Não obstante a importância das declarações inglesas para a evolução da afirmação dos direitos humanos, somente com a independência das colônias inglesas na América do Norte e a vitória da revolução liberal na França, nasceram definitivamente os direitos fundamentais, a partir da Declaração do Bom Povo da Virgínia de 1776, que buscava a estruturação do Estado, com um sistema de limitação de poderes15,seguida pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178916. A partir desta Declaração, fruto da Revolução Francesa, os direitos fundamentais galgaram, pretensamente, contornos universais, como afirmou o Deputado Démeunier, presente na Assembléia Nacional Francesa de 1789, "esses direitos são de todos os tempos e de todas as nações"17.

Demais disso, vale consignar que após estas declarações solenes quase todas as Constituições no mundo passaram a dispor de uma declaração de Direitos, a começar pela Constituição norte- americana de 1789, em face de suas dez emendas promulgadas em 179118.

Neste viés, frise-se que tais declarações valorizavam sobremaneira a garantia da liberdade do homem frente ao Estado. Diante disto, os direitos fundamentais eram vistos, a priori, como direitos de caráter “negativo” de defesa do indivíduo face ao Estado19, ou ainda, conforme escólio de Paulo Bonavides20 “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.

Por conseguinte, caracterizou-se a primeira geração21 ou dimensão22 dos direitos fundamentais como a era das liberdades, consolidada por direitos marcadamente individualistas, como os direitos civis e políticos, que, em sua maioria, correspondem à fase inicial do constitucionalismo ocidental, mas que continuam a integrar os Catálogos das Constituições no limiar do terceiro milênio, ainda que lhes tenha sido atribuído conteúdo e significado diferenciados23.

Seguidamente, após uma longa fase do Estado Liberal Mínimo percebeu-se a necessidade de intervenção Estatal nas relações sociais, devido a enorme quantidade de transformações porque passou a sociedade com as guerras mundiais, os desequilíbrios, as desigualdades etc, que exigiram do Estado, em caráter emergencial, a interferência com fins econômicos e sociais.

Segundo obtempera Dirley da Cunha Júnior24 “toda essa transformação ocorreu em virtude do fracasso do estado liberal, que não logrou concretizar materialmente as conquistas formais e abstratas da liberdade e, sobretudo, da igualdade”. Desta maneira, urgiu a necessidade de o Estado zelar pelo bem estar dos indivíduos intervindo na sociedade e atuando de maneira positiva a fim de tentar resolver os graves problemas sociais e econômicos que os oprimiam.

Neste contexto, surgem os direitos de segunda dimensão25 que outorgam aos indivíduos direitos a prestações sociais estatais, como saúde, educação, trabalho, etc, revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas26. Ademais, importa salientar a oportuna observação de Paulo Bonavides27 de que tais direitos surgem “abraçados ao princípio da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT