Neoliberalismo, 'Novo Regime Fiscal' e Assistência Social

AutorHector Cury Soares - Juliana Toralles dos Santos Braga
Páginas271-281

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Hector Cury Soares1

Juliana Toralles dos Santos Braga2

1. Introdução

O Projeto de Emenda à Constituição (PEC), que tramitou sob o n. 55 no Senado e o n. 241 na Câmara dos Deputados, foi aprovado no Senado no dia 13 de dezembro de 2016, em segundo turno. Foi instituído o chamado "Novo Regime Fiscal", inserindo os arts. 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113 e 114 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição da República (Emenda à Constituição n. 95).

Todo projeto foi tomado de grande polêmica pois a referida PEC, sob a égide da necessidade de promover uma mudança nos rumos das contas públicas brasileiras, propôs a limitação ao aumento da despesa primária3.

O reflexo dessa limitação é a impossibilidade de aumento real — acima da inflação — no âmbito das contas públicas por 20 exercícios financeiros4. A emenda constitucional afeta diretamente o Orçamento da Seguridade Social, conforme o art. 101 do ADCT:

Art. 101. Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 102 a 109 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

A justificativa do Poder Executivo é a deterioração no resultado primário das contas públicas nos últimos anos, gerando um déficit de cerca de R$ 170 bilhões se considerado apenas o ano de 20165. Neste sentido, a raiz do problema fiscal brasileiro estaria no crescimento acelerado da despesa primária. No âmbito político, o significado da EC 95/2016 é a retomada do ideário neoliberal para as políticas públicas brasileiras, naquilo que outrora foi caracterizado como "crise do Estado"6.

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Todavia, a presente pesquisa visa apresentar que, do ponto de vista dogmático-jurídico, a limitação dos gastos em seguridade social geram a progressiva deterioração da assistência social e, consequentemente de um direito previsto na Constituição da República. Como consequência, viola a cláusula de progressividade dos direitos sociais, presente no art. 2 , item 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e na Constituição da República.

Para comprovar a hipótese de pesquisa, adota-se uma abordagem metodológica descritiva, investigando os principais conceitos e delineamentos adotados pelo tema na doutrina pátria e estrangeira coletando-os mediante pesquisa documental e revisão bibliográfica.

Dessa maneira, o trabalho estrutura-se abordando, em primeiro lugar, a relação entre os custos dos direitos fundamentais dentro do Orçamento Público; em segundo lugar, a constitucionalidade da cláusula de progressividade e seu reconhecimento pelo Estado brasileiro; por fim, os possíveis impactos da Emenda Constitucional n. 95 na assistência social, como obstáculo à progressividade dos direitos fundamentais sociais.

2. A importância da teoria dos custos dos Direitos

O congelamento das despesas primárias, que afetarão di-retamente a educação e a saúde no Brasil, corrobora uma tese há muito defendida no âmbito da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais7, que é preciso dispor de recursos no Orçamento Público para efetivar direitos fundamentais. Essa necessidade acentua-se no caso dos direitos sociais prestacionais, pois implicam em prestações positivas do Estado, que geram serviços e produtos disponíveis gratuitamente aos cidadãos.

Na seara doutrinária, a obra The Cost of Rights: why liberty depends on taxes, de Holmes e Sunstein, surgiu como um marco para a Teoria dos Direitos Fundamentais ao demonstrar que todos os direitos são positivos, no sentido de que todos eles, independentemente de serem direitos de liberdade ou direitos econômicos, sociais e culturais, geram custos ao Estado8. Os autores expõem as fragilidades dessa dicotomia ao dizer que quase todo o direito tem um dever correlato e os deveres somente são cumpridos quando há a possibilidade de o Poder Público fazê-los serem cumpridos, havendo, para tanto, a necessidade do desembolso de recursos do Estado9.

A tese de Holmes e Sunstein está correta se considerarmos que as liberdades públicas demandam prestações positivas que assegurem o seu exercício. Se examinarmos, no Brasil, a totalidade de recursos que são destinados ao Poder Judiciário, às polícias e ao custeio das eleições periódicas, perceberemos o quão significativo é o custo dos direitos de liberdade, tanto quanto os direitos econômicos, sociais e culturais10. Portanto, para se efetivar quaisquer direitos fundamentais são necessários investimentos por parte do Estado.

Além dos autores estadunidenses, o Professor da Universidade de Coimbra José Casalta Nabais desenvolve, em sua tese de doutoramento e estudos posteriores, aquilo que convencionou chamar de "face oculta dos direitos fundamentais", quais sejam os deveres fundamentais. Como dever fundamental principal surge o pagamento de impostos, responsável pelo sustento das políticas estatais. Em outras palavras, os cidadãos são os responsáveis pela sustentação, em termos de finanças públicas, do Estado, para que esse último possa efetivar direitos fundamentais. Além de Nabais, Robert Alexy11, Rodolfo Arango12, Ricardo Lobo Torres13 e outros14 concordam com a impor-

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tância de se levar em conta o custo dos direitos fundamentais como um dos elementos para a sua concretização.

Sob o ponto de vista dogmático, a Constituição da República garante a fonte de financiamento das despesas públicas no seu Título VI, Capítulo I, que trata do Sistema Tributário Nacional15, reforçando a tese da importância de se assegurar uma fonte de financiamento aos direitos fundamentais.

Se por um lado os direitos geram custos, por outro lado o Estado deve assegurar que os recursos sejam suficientes para a promoção de uma condição digna aos indivíduos. Nesse sentido, independentemente da geração/dimensão, os direitos fundamentais gozam de igual força face ao orçamento, principalmente se considerarmos a desigualdade não só presente na realidade brasileira, mas comum a todos os Estados latino-americanos.

Dessa forma, o Estado conta com um orçamento para atender ao controle dos gastos públicos, reafirmando a própria condição de Estado Democrático de Direito (art. 1 º)16. No orçamento são discriminadas as receitas e despesas públicas, que devem prezar pelo equilíbrio dos gastos de maneira a permitir a efetivação dos direitos prestacionais sociais.17

Na Constituição da República, o Plano Plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária anual (LOA) são os meios utilizados pelo Estado para planejar a sua ação; é na LOA, entretanto, que há a aplicação concreta de recursos na efetivação de direitos. No art. 165, § 8º e no art. 16718, há a disposição de que os recursos que o Estado prevê arrecadar e as despesas que estará autorizado a realizar devem constar no orçamento anual. Assim, o orçamento assegura o confronto entre os recursos possíveis e as despesas necessárias.

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A aplicação de recursos tem como consequência a escolha de áreas, programas e projetos que sejam considerados prioritários na efetivação do direito prestacional à assistência social; a escolha política adotada é corporificada com a LOA.

Não há recursos disponíveis para todas as necessidades em termos de saúde pública, por isso são feitas escolhas políticas na alocação desses recursos — escolhas estas que não devem ser feitas arbitrariamente, mas a partir de parâmetros que as justifiquem constitucionalmente.

Salientamos a lição de Sunstein e Holmes "A legal right exists, in reality, only when and if it has budgetary costs".19 É preciso reforçar a importância do custo do direito à saúde como um elemento essencial para sua efetivação, sem marginalizar os parâmetros mínimos estabelecidos na Constituição.

Isto posto, é possível concluir que: a) todos os direitos fundamentais geram custos; b) à assistência social gera custos ao Estado; c) para financiar a assistência social, o Estado dispõe de um Orçamento no qual são alocadas demandas consideradas prioritárias.

3. A progressividade — proibição de retrocesso — dos direitos sociais

Nesta seção, pretende-se demonstrar que, se consideradas verdadeiras as premissas, o art. 101 do ADCT carece de constitucionalidade por violar a progressividade e a proibição de retrocesso. Para tanto, a seguir ressalta-se a presença da progressividade na Constituição da República e a sua violação pela EC n. 95/2016.

O Brasil é signatário do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC)20, que passou ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. O PIDESC, que data de 1966, é fruto dos desdobramentos dos princípios da Carta das Nações Unidas e decorrência, segundo o texto do preâmbulo, da necessidade de assegurar a dignidade inerente à pessoa humana.

Ao ser internalizado, o PIDESC adquire efeito de norma constitucional estabelecendo uma série de deveres ao Estado brasileiro na esfera dos direitos fundamentais sociais. Sobre o tema há a importante contribuição do Prof. Antonio Augusto Cançado Trindade:

O disposto no art. 5 , § 2 da Constituição brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição brasileira de 1988: se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas...

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