Normas cosmopolitas e efetiva

Autordo Prado Junior, Manoel Batista

A Constituição de 1988 reafirmou a tradição do constitucionalismo brasileiro de proteção das terras indígenas, inaugurada pela Constituição de 1934. Inovou, contudo, ao romper com o paradigma integracionista que orientava a legislação indigenista, assegurando cidadania para os povos indígenas, a partir do reconhecimento de sua capacidade jurídica, de sua autonomia, da proteção às terras indígenas pelo conceito de terra tradicionalmente ocupada estabelecido no art. 231, e do reconhecimento de suas identidades e do direito à diferença.

Na busca por consolidar um constitucionalismo democrático, a Constituição atribuiu tratamento a esses direitos enquanto fundamentais, com base em seus princípios e em normas internacionais aplicáveis ao Brasil, como dispõe o próprio art. 5, [section] 2 (CARVALHO NETO e SCOTTI, 2012). Desse modo, projetou temporalmente a superação dos deletérios efeitos dos séculos de relação colonial, por meio do reconhecimento da multiculturalidade e plurietnicidade do Estado brasileiro no contexto de transição democrática. (1)

A passagem de um paradigma integracionista para o democrático implicou no respeito à diferença como percurso para o aprofundamento da igualdade. Essa mudança é percebida nos planos doméstico e internacional, graças às articulações dos povos indígenas e suas representações na sociedade civil em diversas partes do mundo e no Brasil, que pavimentaram o caminho para reconhecimento, promoção e proteção de seus direitos. No final dos anos 1980, por exemplo, a Convenção no. 107 da OIT, de 1957, foi substituída pela Convenção no. 169 da OIT. Adotada na 76a Conferência Internacional do Trabalho, em 1989, esta foi o primeiro instrumento internacional a determinar o direito à identidade do povo indígenas a partir do princípio fundamental da autoidentificação (OIT, 2011, p. 7). (2)

Dessa forma, igualdade e diferença constituem pilares para a proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas e comportam a afirmação de suas identidades, códigos, práticas, línguas, territorialidades e tradições, seus planos de vida e projetos de futuro enquanto sujeitos e coletividades autônomos. As terras indígenas, que são a base para o exercício desses direitos, também foram impactadas pelas mudanças de paradigma trazidas pela Constituição de 1988 e por instrumentos internacionais de direitos humanos dos povos indígenas.

Seu conceito, como estabelecido no art. 231 na figura do advérbio "tradicionalmente ocupada", passou a comportar a projeção do presente e futuro e o reconhecimento de que as territorialidades dos povos indígenas se reorganizaram, em muitos casos, por movimentos forçados ao longo do processo colonial e pós-colonial. Trata-se de uma concepção de ocupação não vinculada exclusivamente ao passado, mas, sobretudo, ao modo como determinado povo exerce sua territorialidade no presente e os recursos aos quais necessita para sua reprodução física e cultural no futuro. Assim, a delimitação de uma terra indígena comporta e representa a espacialidade do próprio povo indígena. Essas inovações impedem a ideia de transitoriedade desses sujeitos e coletividades, com a qual se pautava o paradigma integracionista, no Brasil encartado na figura da tutela (3).

Esses trânsitos ou ondas nos abrem reflexões sobre os diálogos entre o direito internacional dos direitos humanos e os direitos indígenas no Brasil, sobretudo no que concerne aos caminhos ou dispositivos de comunicação que reforçam a proteção jurídica transnacional dos povos indígenas, tanto pelo arcabouço dos direitos humanos universais e da emergência de normas cosmopolitas de justiça, quanto pelos direitos dos povos indígenas no plano interno.

A partir deles, propomos analisar os desdobramentos do caso do Povo Xucuru e seus membros vs. Brasil, no qual o Estado brasileiro foi condenado em 2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e suas interações com a jurisprudência recente sobre as terras indígenas, em especial com relação à tese do marco temporal da ocupação, segundo a qual são passíveis de reconhecimento pelo Estado apenas as terras indígenas para as quais se comprova a efetiva ocupação por esses povos em 05 de outubro de 1988. Introduzida no julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do sol pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009, e posteriormente aprofundada em 2014 no caso Guyraroka, pela segunda turma da Corte, (4) a tese tem sido alvo de controvérsias jurídicas desde então, em função do seu efeito restritivo sobre o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas.

Na primeira seção retomaremos de modo breve a dupla proteção jurídica das terras indígenas e as disputas discursivas atuais sobre o regime jurídico dessas áreas. Na segunda, a partir do detalhamento do caso Xucuru e sua Sentença, verificaremos a adequação da atual jurisprudência brasileira sobre a matéria. Na terceira, tendo por base o cenário exposto, a existência de normas cosmopolitas de justiça e os usos da sentença, analisamos os potenciais diálogos entre o plano internacional e doméstico, apontando, na quarta seção, para um balanço dos impactos atuais.

  1. Os direitos dos povos indígenas: proteção transnacional e disputas atuais

    A Constituição de 1988 é clara ao definir o conceito de terras indígenas como as tradicionalmente ocupadas por esses povos. Seu texto também consolida uma proteção exposta a partir da tese do indigenato, para a qual tais direitos configuram-se como originários (5). O parágrafo 4 do art. 231 caracteriza as terras indígenas como inalienáveis e indisponíveis e o direito dos povos indígenas sobre elas imprescritível. Por outro lado, o parágrafo 6 também declara serem nulos ou extintos quaisquer atos que tenham por objetivo a ocupação, o domínio ou a posse dessas terras, o que reforça o núcleo de proteção essencial destas, imprescindíveis que são aos povos indígenas.

    Essas definições embasaram farta jurisprudência sobre as terras indígenas na ordem constitucional atual (ACO 323, ACO 312, ACO 366). Além disso, o Brasil é signatário de inúmeros instrumentos internacionais que, com base no direito internacional dos direitos humanos, disciplinam a atuação estatal com relação aos povos indígenas. A Convenção no. 169 da OIT, editada em 1989, foi recepcionada em nosso ordenamento pelo Decreto no. 5051/2004, após aprovação pelo Congresso Nacional em 2002 (6). A despeito da mora na ratificação, resta claro em seu texto o reforço à proteção dos valores e práticas culturais e religiosas dos próprios povos indígenas para a resolução de conflitos, tanto individuais quanto coletivos, e a obrigação estatal de salvaguardar o direito dos povos indígenas de "utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência". (7)

    A Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, aprovada por sua Assembleia Geral em 2007 ao se manifestar "preocupada com o fato de os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coisas, da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos", dispõe que os Estados devem proporcionar a reparação, por meio de mecanismos eficazes e estabelecidos conjuntamente com os povos indígenas, que podem incluir a restituição "em relação aos bens culturais, intelectuais, religiosos e espirituais de que tenham sido privados sem o seu consentimento livre, prévio e informado, ou em violação às suas leis, tradições e costumes".

    O artigo 26 da Declaração protege os modos tradicionais de ocupação desses povos e define que esses devem ser considerados pelos Estados ao atuarem no reconhecimento das terras indígenas. Com relação ao direito à justiça, o instrumento ressalta o direito a uma decisão rápida sobre controvérsias e estabelece que estas devem tomar em consideração os costumes, as tradições, as normas e os sistemas jurídicos dos povos indígenas interessados e as normas internacionais de direitos humanos. (8)

    No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, ainda, foi aprovada em 15 de junho de 2016 a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas que dispõe que estes "têm direito ao reconhecimento legal das modalidades e formas diversas e particulares de propriedade, posse ou domínio de suas terras, territórios e recursos, de acordo com o ordenamento jurídico de cada Estado e os instrumentos internacionais pertinentes". (9)

    Nota-se, portanto, que é cediço no direito internacional dos direitos humanos o direito à diferença experimentado por povos indígenas, pela proteção de seus usos, costumes e tradições, sendo imprescindível que seus modos de ocupar e seu histórico de ocupação sejam efetivamente considerados, assim como os direitos de propriedade sobre seus territórios, mesmo que deles tenham sido despojados a qualquer tempo.

    No entanto, incongruências e ameaças de retrocessos do Estado brasileiro com relação aos direitos humanos dos povos indígenas foram identificadas pelos dois últimos relatores especiais das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya (2009) e Victoria Tauli-Corpuz (2016).

    Em 2016, o relatório sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil encaminhado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu que "interpretações altamente controversas e fortemente contestadas da Suprema Corte no caso Raposa Serra do Sol" impõem restrições ao direito dos povos indígenas de possuírem e controlarem suas terras e identificou que "Cortes de primeira instancia assim como as cortes Superior e Suprema estão aplicando a decisão de maneira completamente contrária com as previsões constitucionais sobre direitos territoriais indígenas", o que acarretaria óbices ao gozo, por esses povos, de seus direitos básicos, bem como uma escalada de violência. (10) (A/HRC/33/42/Add.1)

    A tese do marco temporal da ocupação, inaugurada no caso Raposa Serra do Sol, estabeleceu-se...

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