Notas sobre os direitos fundamentais

AutorJoão Claudio Gonçalves Leal
CargoProfessor das Faculdade de Direito de Vitória (FDV/ES); Mestre em Garantias e Direitos Fundamentais (FDV/ES).
Páginas1-13

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1 Constituição e direitos fundamentais

A constituição, entendida como o conjunto de normas de maior grau hierárquico no direito nacional (KELSEN, 2000, p. 182), serve de fundamento último de validade em um dado ordenamento jurídico. Isto quer dizer que ela estabelece, direta ou indiretamente, como devem ser criadas as demais normas jurídicas que irão compor um ordenamento jurídico. Em outras palavras, fala-se em supremacia da constituição na medida em que todas as outras normas jurídicas que compõem o direito positivo (direito posto, criado pelo homem) devem ser produzidas segundo a forma por ela estabelecida. E quando se afirma que as normas jurídicas vigentes em determinado Estado devem ser criadas com base em certo conjunto normativo, isto significa que este assume a função de sua ordenação fundamental.

O conteúdo mínimo dessa ordenação fundamental, de acordo com Kelsen (2003, p. 130-131), é o conjunto de normas que regem “a elaboração das leis, das normas gerais para cuja execução se exerce a atividade dos organismos estatais, dos tribunais e das autoridades administrativas”. Tais normas, portanto, dizem respeito à “determinação dos órgãos e do procedimento da legislação” (ibid., p. 131). Mas também é possível que a constituição seja composta por normas que determinem não apenas a forma de criação de outras normas, mas também seu conteúdo. Isto seria possível, especialmente, quando a constituição possui um procedimento de reforma diferenciado daquele aplicável às leis em geral.

Se o direito positivo conhece uma forma constitucional especial, distinta da forma legal, nada se opõe a que essa forma também seja empregada para normas que não entram na Constituição em sentido estrito, e antes de maisPage 2nada, para normas que regulam, não a criação, mas o conteúdo das leis. (ibid., p. 131)

Tal observação merece destaque, pois o estágio atual do constitucionalismo tem feito com que estudiosos não se satisfaçam com um conceito de constituição que leva em consideração apenas sua posição no ordenamento jurídico de um Estado (BARROSO, 2003, p. 340). Assim, o conceito de constituição se complementaria com a referência a existência, em seu corpo, de normas que consagram direitos “que servem de pressupostos para que seres humanos iguais e livres possam organizar suas vidas em comum por intermédio do direito” (VIEIRA, 1997, p. 81). Tais direitos, em linhas gerais, seriam rotulados de direitos fundamentais.

Já em 1928, Kelsen (2003, p. 131) observava que “as Constituições modernas contêm não apenas regras sobre os órgãos e o procedimento da legislação, mas também um catálogo de direitos fundamentais dos indivíduos ou de liberdades individuais”. Entretanto, a previsão de direitos fundamentais não ocorre universalmente, sendo que, ordinariamente, é na constituição dos Estados do ocidente que a encontramos. Daí porque SILVA (2002, p. 169) alude à existência das denominadas “constituições ditatoriais”, assim entendidas … as que não reconhecem formalmente nem permitem se desenvolvam substancialmente os direitos do homem, nem nas suas dimensões liberais nem nas sociais, assim como as que, embora formalmente os enunciem, contenham elementos formais que os nulifiquem ou são simplesmente ineficazes por via de uma estrutura de poder dominante.

Não bastasse a existência de textos constitucionais omissos quanto aos direitos fundamentais, nota-se que a própria expressão (direitos fundamentais) é extremamente vaga. Os direitos fundamentais da constituição dos Estados Unidos da América não possuem, por exemplo, a mesma extensão dos direitos fundamentais da CRFB de 1988.

Sendo assim, ainda que parte da doutrina (dentre outros, NEVES, 1994, p. 61-75) relacione os conceitos de constituição, constitucionalismo, Estado de Direito e direitos fundamentais, não consideraremos a previsão de direitos fundamentais como nota característica do conceito de constituição. Exigir uma relação necessária entre constituição e direitos fundamentais é próprio de uma conceituação ideal dePage 3constituição, o que, apesar de possível e tradicionalmente praticado, não parece corresponder ao universo de possibilidades. Tomamos a relação existente entre constituição e direitos fundamentais em um outro nível. Assim, não é propriamente a constituição que se caracteriza pela previsão de direitos fundamentais. São os direitos fundamentais que se caracterizam por se encontrarem previstos em normas constitucionais. É o que se destacará a seguir, ao se conceituar direitos fundamentais.

2 Conceito de direitos fundamentais

Os direitos fundamentais são tradicionalmente encarados pela doutrina como resultado de diversos eventos e ideologias inspirados pelas idéias de liberdade e de dignidade humana (BONAVIDES, 2004, p. 562). De fato, uma abordagem histórica revela que a inserção de certos direitos nos textos constitucionais ocorreu de forma vinculada a movimentos político-ideológicos. Movimentos estes que, em termos amplos, voltaram-se à reforma do conceito de Estado e formação da idéia de Estado de Direito.

Goyard-Fabre (2002, p. 322) esclarece que o Estado de Direito, vinculado à idéia de democracia, tem por princípio básico a proteção dos direitos fundamentais. Observa, entretanto, que o conceito de direitos fundamentais foi sendo modificado ao longo dos séculos (ibid., p. 335). Novos direitos foram reconhecidos e aqueles de outrora passaram por uma reformulação em seu conteúdo na medida em que novas demandas foram surgindo e novas mudanças foram sendo introduzidas nos sistemas político e jurídico. No caso específico dos direitos fundamentais, fala-se então nas dimensões (ou gerações) de direitos, cada uma delas sendo vinculada às ideologias e aos movimentos que justificaram ou fundaram sua inserção nos textos constitucionais.

Além da perspectiva histórica, é possível buscar a construção do conceito de direitos fundamentais sob uma perspectiva dogmática. Sob essa ótica, é possível falar em conceito formal e material de direito fundamental. Uma conceituação do tipo formal leva em consideração a posição dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico e, em especial, no próprio texto constitucional. Já uma conceituação do tipo materialPage 4fará alusão a valores ou conteúdos que, considerados como básicos (fundamentais), qualificariam um certo direito como de caráter fundamental ou não (CANOTILHO, 1998, p. 378-379).

Para uma conceituação sob o ponto de vista formal, seguimos a lição de Alexy (2002, p. 62), para quem direitos fundamentais são aqueles provenientes dos denominados enunciados normativos de direito fundamental inseridos no texto...

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