Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral

AutorIngo Wolfgang Sarlet/Tiago Fensterseifer
CargoDoutor em Direito pela Universidade de Munique/Mestre em Direito Público pela PUCRS
Páginas69-94

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1. A dimensão ecológica da dignidade (da pessoa) humana

É do conhecimento de todos que a matriz filosófica moderna da concepção de dignidade humana tem sido reconduzida essencialmente e na maior parte das vezes ao pensamento do filósofo alemão IMMANUEL KANT. Especialmente no campo do Direito até hoje a fórmula elaborada por KANT informa a grande maioria das conceituações jurídico-constitucionais da dignidade da pessoa humana.1 A formulação kantiana coloca a idéia de que o ser humano não pode ser empregado como simples meio (ou seja, objeto) para a satisfação de qualquer vontade alheia, mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, sujeito) em qualquer relação2, seja em face do Estado seja em face de particulares. Isso se deve, em grande medida, ao reconhecimento de um valor intrínseco a cada existência humana, já que a fórmula de se tomar sempre o ser humano como um fim em si mesmo está diretamente vinculada às idéias de autonomia, de liberdade, de racionalidade e de autodeterminação inerentes à condição humana. A proteção ética e jurídica do ser humano contra qualquer "objetificação"

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da sua existência e o respeito à sua condição de sujeito nas relações sociais e intersubjetivas são seguramente manifestações da concepção kantiana de dignidade da pessoa humana, embora, por certo, encontradas já em pensadores anteriores.

Sem que se vá - ainda - questionar alguns aspectos da concepção kantiana e voltando-nos ao direito constitucional positivo, há como partir da premissa de que a Constituição brasileira de 1988, no seu art. 1°, inciso III, consagra expressamente a dignidade da pessoa humana como o princípio fundamental (como fundamento do próprio Estado democrático de Direito), portanto, como ponto de partida e fonte de legitimação de todo o sistema jurídico pátrio. A dignidade da pessoa humana, como, aliás, já tem sido largamente difundido, assume a condição de matriz axiológica do ordenamento jurídico, visto que é a partir deste valor e princípio que todos os demais princípios (assim como as regras) se projetam e recebem os impulsos para os seus respectivos conteúdos normativo-axiológicos, o que não implica aceitação da tese de que a dignidade é o único valor a cumprir tal função e nem a adesão ao pensamento de que todos os direitos fundamentais (especialmente se assim considerados os que foram como tais consagrados pela Constituição) encontram seu fundamento direto e exclusivo na dignidade da pessoa humana3. Assim, a dignidade humana, para além de ser também um valor, configura-se como sendo -juntamente com o respeito e a proteção da vida! - o princípio de maior hierarquia da nossa Constituição e de todas as demais ordens jurídicas que a reconheceram4. A dignidade da pessoa humana apresenta-se, além disso, como a pedra basilar da edificação constitucional do Estado (social, democrático e ambiental) de Direito brasileiro, na medida em que, sob a influência das luzes lançadas por KANT, o constituinte reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e

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não meio da atividade estatal5, o que, diga-se de passagem, demarca a equiparação de forças na relação Estado-cidadão, em vista da proteção e afirmação existencial desse último, especialmente no que tange aos seus direitos fundamentais.

No âmbito de um Estado Socioambiental de Direito, tal qual consagrado na Constituição de 1988, pelo menos como se sugere no presente estudo6, a dignidade da pessoa humana é tomada como o principal, mas não o exclusivo fundamento (e tarefa) da comunidade estatal7, projetando a sua luz sobre todo o ordenamento jurídico-normativo e assim vinculando de forma direta todos os atores estatais e privados. Para além de uma força normativa autônoma como princípio (e também valor) jurídico a dignidade da pessoa humana se projeta especialmente em conjunto com toda uma gama de direitos tanto de natureza defensiva (negativa) como prestacional (positiva), implicando também toda uma gama de deveres fundamentais, que, embora não sejam necessariamente todos deduzidos diretamente da dignidade da pessoa humana, geralmente também atuam como concretizações em maior ou menor medida desta dignidade e que também por esta razão podem ser igualmente (como o princípio da dignidade individualmente considerado) opostos tanto em face do Estado quanto frente a particulares8. Com isso, desde logo se afirma a necessidade de reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais (e principalmente da dignidade humana) também nas relações entre particulares, assim como o reconhecimento da dimensão normativa (vinculante) do princípio constitucional da solidariedade e dos deveres que lhe são inerentes.

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Em suma, o que se afirma é que a partir do princípio constitucional da dignidade humana, projeta-se todo um leque de posições jurídicas subjetivas e objetivas, com a função precípua de tutelar a condição existencial humana contra quaisquer violações do seu âmbito de proteção, assegurando o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada ser humano.

Ainda nesse contexto, é possível destacar uma dimensão social (ou comunitária) da dignidade da pessoa humana, já que a dignidade, apesar de ser sempre em primeira linha a dignidade da pessoa concreta, individualmente considerada, necessariamente implica um permanente olhar para o outro, visto que indivíduo e a comunidade são elementos integrantes de uma mesma (e única) realidade político-social-estatal. Em outras palavras, a dignidade do indivíduo nunca é a do individuo isolado ou socialmente irresponsável, projetando-se na dignidade de todos os integrantes do grupo social. Como acentua CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, à luz de uma perspectiva fundada no princípio constitucional da solidariedade, "a dignidade humana - mais que aquela garantida à pessoa - é a que se exerce com o outro" 9, com o que apenas se enfatiza a perspectiva relacional da pessoa humana em face do corpo social que integra, bem como o compromisso jurídico (e não apenas moral) do Estado e dos particulares na composição de um quadro social de dignidade para (e com) todos.

Com efeito, não nos parece possível excluir de uma compreensão necessariamente multidimensional e não-reducionista da dignidade da pessoa humana, aquilo que se poderá designar de uma dimensão ecológica (ou, quem sabe, socioambiental) da dignidade humana, que, por sua vez, também não poderá ser restringida a uma dimensão puramente biológica ou física, pois contempla a qualidade de vida como um todo, inclusive do ambiente em que a vida humana (mas também a nãohumana) se desenvolve. É importante, aliás, conferir um destaque especial para as interações entre a dimensão natural ou biológica da

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dignidade humana e a sua dimensão ecológica (ou ambiental), que objetiva ampliar o conteúdo da dignidade da pessoa humana no sentido de um padrão de qualidade e segurança ambiental mais amplo (e não apenas no sentido da garantia da existência ou sobrevivência biológica), mesmo que muitas vezes esteja em causa a própria existência natural da espécie humana, para além mesmo da garantia de um nível de vida com qualidade ambiental.

Há uma lógica evolutiva nas dimensões da dignidade humana que também podem ser compreendidas a partir de uma perspectiva histórica da evolução dos direitos humanos e fundamentais, já que esses, em larga medida, simbolizam a própria materialização da dignidade humana em cada etapa histórica. Assim como outrora os direitos liberais e os direitos sociais formatavam o conteúdo da dignidade humana, hoje também os direitos de solidariedade, como é o caso especialmente da qualidade ambiental, passam a conformar o conteúdo da dignidade humana, ampliando o seu âmbito de proteção. Daí falarse em uma nova dimensão ecológica para a dignidade humana, em vista especialmente dos novos desafios existenciais de índole ambiental a que está submetida a existência humana neste mundo "de riscos" contemporâneo.

Como ponto de partida das reflexões subseqüentes, adotar-se-á o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana formulado pelo primeiro autor deste ensaio10como moldura conceitual-normativa aberta a uma reformulação parcial, especialmente para o efeito de enfatizar a inclusão de uma dimensão ecológica e, de tal modo, tornar o conceito mais responsivo aos novos (e velhos) desafios existenciais impostos pela degradação ambiental, mas também em vista da evolução cultural e dos novos valores

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socioambientais legitimados no âmbito comunitário. Da mesma forma, a reflexão se propõe não apenas a extrapolar a dimensão humana, apontando para a necessidade de reconhecimento de uma dignidade da vida em geral, como também propõe o questionamento a respeito da possibilidade (e mesmo necessidade) de atribuição de dignidade às gerações humanas futuras e mesmo a outras formas de vida. Assim, para cumprir o nosso desiderato, propõe-se o seguinte percurso: após traçar uma moldura conceitual para a dignidade da pessoa humana à luz de uma matriz kantianoantropocêntrica, é que os seus limites conceituais e normativos serão ampliados em vista de uma comunicação do conceito com os novos valores culturais e éticos que sedimentam as relações socioambientais no marco da sociedade de risco11(e em risco de extinção) no início de século XXI, bem como diante de sua necessária contextualização no...

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