Notas sobre privatização

AutorRachel Sztain
Páginas98-111

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Privatização é, antes de mais nada, um programa que pressupõe conjunto de medidas que devem ter por escopo o aumento do social mediante a reestrutura-ção das atividades do Estado no plano económico.

Porém, qualquer programa voltado ao aperfeiçoamento do bem-estar social está intrinsecamente associado a decisão política anterior que deve optar ou por modelo económico centralizado, de economia planificada, ou pela economia de mercado. Dessa decisão prévia é que resultam as questões legais quanto à forma de intervenção do Estado no domínio económico, exercendo, ou não, atividades empresariais. Assim, o modelo político escolhido é que serve como divisor de águas e por ele se define, se desenha, o papel do Estado no plano económico.

A visceral ligação subjacente entre bem-estar geral e atividade económica do Estado é o que faz com que qualquer discussão sobre privatização venha carregada de forte conteúdo emocional, apaixonada e apaixonante, desvendando as posições po-lítico-ideológicas dos interlocutores ou de-batedores.

Segundo o ideário que cada um aceita e adota, justifica-se e deseja-se o exercício da atividade económica diretamente pelo Estado ou, ao contrário, entende-se que ela deva ser completamente banida, limitando-se qualquer intervenção do Estado nas operações económicas, no máximo, à fiscalização dos agentes privados. Caberia ao Es-tado exercer apenas suas atividades típicas como, por exemplo, segurança interna e de fronteiras, distribuição da justiça, definição de políticas sociais como educação (no mínimo até certo nível de escolaridade), saúde e previdência ou seguridade social, podendo estas ser exercidas por particulares e complementadas pelo Estado.

Ensino e saúde são exemplos claros de dever do Estado, que vêm sendo complementado por particulares. O número de escolas públicas, em todos os graus, insuficiente para atender a todos os interessados, leva à aceitação do aumento do número de escolas privadas; os hospitais públicos têm aceito convénios com planos de assistência à saúde privados a fim de aumentar os recursos necessários ao bom desempenho de sua função, e isto nada obstante o direito à educação e à saúde estejam contemplados na Carta de 1988, como direitos sociais, juntamente com os direitos a lazer, segurança, previdência social e assistência aos desamparados (art. 69).

Essa incapacidade do Estado de atender adequadamente -- para não dizer minimamente - aos direitos sociais é um dos fatores que levam a repensar sua intervenção no domínio económico como agente direto, concorrendo com particulares.

A par disso, fatores endógenos, como distribuição demográfica da população e modificações do mercado de trabalho, ou hexógenos, como os provocados pela globalização dos mercados, por exemplo, também interferem na formulação de políticas

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nacionais internas, com reflexos nas demandas sociais, afetando igualmente o ideário sócio-econômico nacional.

Deixando de parte quaisquer ideários ditos liberais ou neoliberais, é preciso lembrar que a privatização não é fenómeno brasileiro, nem sequer que se dá apenas nos regimes de economias ditas de mercado, designação que costuma vir acompanhada de sentido negativo. Também nos casos de regimes socialistas, social-democrátiços, e até conservadores corporativos há discussões e procedimentos que pretendem reduzir o tamanho do Estado-empresário.

Tanto é assim que, após a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) - sem que os países integrantes daquele bloco passassem a ser considerados economias de mercado -, foram privatizadas empresas estatais lá existentes, transferidas para particulares, casos que mereceram análise e discussão de estudiosos de distintas áreas do conhecimento como, por exemplo, políticos, sociólogos, economistas e juristas.

Se as privatizações inglesas, levadas a cabo no período em que foi Primeira-Ministra Margareth Thatcher, não causam surpresa, dado o fato de que politicamente o partido conservador entendia que o Estado não deveria exercer atividades económicas, quando se passa à Europa continental, chegando à França socialista de Mitterand, à Alemanha social-democrata, e aos países do Leste Europeu, como a Polónia, Rússia, Repúblicas Checa e Eslovaca, parece importante reconhecer que deve haver alguma razão para que programas de privatização das empresas, ante controladas pelo Estado, tenham tamanha área de abrangên-cia e interesse.

E o mais curioso é que embora nos vários países da Europa do Leste o fenómeno tenha sido comprovado, a definição das formas, os modelos desenhados, pelos quais a privatização foi conduzida, são diferentes. Não é de estranhar haver distintas maneiras de privatizar pois é necessário ter presente as resistências e interesses vestidos a vencer, a forma de ganhar o apoio da população, a necessidade de gerar recursos para o tesouro, proteger os empregos, entre outros, assim como estabelecer sistemas de controle dos resultados após a privatização.

Dessas diferenças e dos interesses específicos, em cada país, resultam efeitos distintos que atingem tanto a velocidade de execução dos programas, quanto o modo de formação de grupos ou blocos de controle de sociedades privatizadas.

Algumas razões práticas que justificariam privatizações podem ser a necessidade de investimentos em áreas estratégicas, típicas de atuação do Estado, e dificuldade de obtenção de recursos financeiros, especialmente quando a taxa de poupança interna é pequena, situação em que empréstimos domésticos podem ser inviáveis. A dependência de mútuo vindo do exterior, outra alternativa, nem sempre será factível; emitir moeda sem contrapartida de bens e serviços produz inflação, com as consequências conhecidas, e é por isso que, nessas situações, a venda pelo Estado de bens, ou a transferência de serviços nos setores em que se admite a alienação a particulares mediante privatização, tem sido o caminho escolhido por políticos das mais distintas tendências ideológicas nestes últimos anos.

A privatização pode, ainda, operar a abertura da economia, facilitando a entrada de bens, serviços e recursos externos, estimulando, às vezes, o desenvolvimento sócio-econômico, com o consequente aumento do bem-estar geral, meta social do processo. Outro efeito importante alcançado com as privatizações, este de caráter organizacional, é a redução do poder exercido por grupos de pressão atuantes junto aos órgãos governamentais responsáveis pelas empresas estatais ou sociedades de economia mista.

O aumento da eficiência produtiva, cuja consequência é oferecer incentivos aos administradores das sociedades privatizadas segundo seu desempenho, pode ser também fator relevante para a comparação dos

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resultados produzidos por sociedades privadas e públicas. É que nas empresas públicas há constrangimentos orçamentados e operacionais que caracterizam a prática administrativa, constrangimentos esses que inexistem, com igual intensidade, no setor privado.

A fiscalização da gestão nas sociedades privadas é, em geral, mais eficiente do que nas públicas, por isso que um dos efeitos da privatização é o aperfeiçoamento das técnicas administrativas (ao menos em muitas situações), impondo padrões compor-tamentais que se aproximam daqueles exigidos de administradores privados, a antigos funcionários públicos que permaneçam vinculados à sociedade.

Parece estar implícita na decisão política de privatizar a ideia de que empresas estatais precisam ser reestruturadas para se manter operando no mercado, garantindo empregos, produtos e/ou serviços, em economias submetidas à concorrência. Outra evidência é de que a decisão política de abrir o mercado e fomentar a concorrência precede o desenho dos instrumentos jurídicos.

É sabido, em qualquer tipo de ativida-de, pública ou privada, que a dissociação entre administração e propriedade exige a criação de estímulos adequados para que os administradores não resistam a modificações ou reorganizações empresariais. As questões são amplamente debatidas pela denominada teoria de agency. Também é sabido que nas empresas públicas a remuneração e a criação de estímulos são limitados, de sorte que aquela teoria não encontra espaço para produzir os efeitos necessários.

Ademais disso, quando se discute criação de valor, tanto para acionistas quanto para terceiros interessados nos resultados das sociedades, a existência de blocos acio-nários mantidos por instituições ou grupos fortes facilita o exercício de controles sobre os administradores, otimizando os resultados da atividade (se o ex-deputado Roberto Campos tiver razão, as empresas estatais criam valor para os funcionários, na ativa ou não, mas não para o titular do controle, o Estado).

A ideia de criação de valor complementa aquela da função social das empresas: criação de empregos, preservação do meio ambiente, manutenção da oferta de bens e serviços no mercado de modo a satisfazer aos consumidores, pontos importantes a serem considerados nas decisões quanto à forma de efetuar as privatizações.

Por isso, qualquer programa coerente e bem-sucedido de privatização deve reduzir os efeitos negativos provocados pelos grupos de pressão, internos ou externos - aí incluídos empregados, sindicatos, empresários - que agem egoisticamente, visando a obtenção de benefícios especiais para certas classes, e deve promover, de forma eficiente, a reestruturação das atividades económicas do Estado, liberando recursos para investimentos na área social.

Vendo-se a privatização como movimento inverso ao da nacionalização, fica patente que, se no primeiro caso aplicam-se recursos públicos no pagamento dos bens (salvo hipóteses de confisco), é razoável que no movimento oposto ingressem recursos financeiros no caixa do Estado.

O emprego desse recurso deve visar ou ao pagamento da dívida do setor público, com isso reduzindo-se tanto seu estoque quanto as despesas com juros, de forma a estimular-se a poupança nacional, ou aplicação...

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