Notas sobre a regra-matriz de incidência tributária

AutorLucas Galvão de Britto
CargoMestrando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
Páginas84-95

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Um testemunho e uma introdução

Frequentava os bancos do curso de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte quando cheguei àquele volume, de capa azul com letras vermelhas. Estava ainda sob efeito das contundentes palavras de Alfredo Augusto Becker que havia lido havia algumas semanas. O professor gaúcho, em seu Teoria Geral do Direito Tributário, descrevia a demência que imperava no direito tributário. Ante o diagnóstico da enfermidade1 que acometia os pensadores desse ramo do saber jurídico, promovendo a mancebia irregular dos métodos, misturando noções de economia, contabilidade e até mesmo de direito para criar um fato que, de tão inconsistente, mereceu a alcunha de fato jurídico "invertebrado", querendo dizer com isso que faltava aos estudos de direito tributário o rigor metodológico e a seriedade científica. O livro de Becker, ao contrário do que sugeria o título a um aluno de graduação, não era um curso, mas uma denúncia que eu vinha, leitura após leitura, descobrindo ser muito precisa e acertada.

Já ao primeiro contato, o Curso de Paulo de Barros Carvalho mostrou-me que, à generalidade da demência que Becker des-

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crevia, deveria ser feita importante exceção. Ao contrário do que a maioria das obras fazia, percebia-se, desde o índice, o apego ao método e à consistente fundamentação das ideias, demarcando claramente o âmbito de atuação do cientista do direito e do sujeito competente para produzir a linguagem do direito positivo, separando descrição de prescrição e tratando de objeto bem demarcado do ponto de vista científico. Conservava um ceticismo saudável, repelindo as frases peremptórias e o uso abusivo do argumento de autoridade em prol do raciocínio que induz o livre convencimento.

O trabalho de Paulo de Barros Carvalho mostrava um amor das proposições verdadeiras; não uma exposição de proposições como verdades fazendo valer a máxima de Pontes de Miranda (2000:42).

A impressão que retive é a de que se tratava de trabalho coeso e bem estruturado, produto da reflexão de um homem sério e cônscio de seu papel como cientista do direito. Hoje, passados alguns anos desde aqueles dias, fundado no convívio que a Academia e atividade profissional proporcionaram, posso dizer que sigo vendo Paulo de Barros Carvalho assim: um homem sério.

O tema sobre o qual fui convidado a tratar - a Regra-Matriz de Incidência Tributária - afigura-se como uma das principais contribuições de Paulo de Barros Carvalho ao estudo do Direito Tributário. Trata-se de expediente que simplifica a aproximação do sujeito cognoscente com o seu objeto de estudos e permite-lhe conhecer melhor das variáveis envolvidas no fenómeno da incidência tributária e relações que existem entre elas. É uma fórmula que auxilia a compreender todo e qualquer tributo, justamente porque trabalha com aquilo que é sua parte eidética: a estrutura, que permanece a mesma, ainda que mudem os dados da experiência jurídica.

Para falar desse assunto, seguindo a linha com as qual Paulo de Barros Carvalho ensinou-me a pensar, penso ser necessário esclarecer o papel das fórmulas na construção do conhecimento indagando: Que são fórmulas? Para que construí-las? Tendo firmado algumas noções sobre isso, penso que já caberá falar de como as fórmulas foram e são empregadas na construção da linguagem da ciência do direito, mostrando, enquanto exemplo, como Kelsen fez uso do plano estrutural das normas para criar sua teoria pura do direito. O terceiro item deste trabalho tem por objeto o sentido da norma, isto é, como o sujeito cognoscente preenche a estrutura das normas com o sentido construído a partir dos enunciados prescritivos postos nos textos legais. O quarto e último item tratará da estrutura da regra-matriz de incidência tributária, enunciando e tecendo comentários sobre os critérios que a compõem. Penso que feitas essas considerações estará cumprido o objetivo de não de expor, ainda que brevemente, a teoria da regra-matriz de incidência tributária.

1. Fórmulas e conhecimento

Vilém Flusser (2007) diz que o homem nasce em meio a desordem: seu aparato sensorial o inunda constantemente com informações, correspondendo ao "caos de sensações" que Kant antes dele já descrevera. O ser humano, para não se perder em meio a tantos e incessantes dados, deve filtrá-los, ignorar uns, selecionar outros atribuindo-lhes sentido para, assim, ordenar esses recortes do contínuo heterogéneo de maneira a possibilitar à sua consciência, a apreensão do mundo que o rodeia. A consciência, pelo esforço de selecionar e ordenaras sensações, articulando-as, faz o mundo.

Essas operações que possibilitam transformar caos em mundo são realizadas pelo emprego de um instrumento desenvolvido e aperfeiçoado pelo ser humano ao longo de toda sua trajetória evolutiva: a linguagem. O homem sempre conhece pelo emprego da linguagem que lhe permite recolher o dado intuído sensivelmente e articulá-lo em estruturas que serão saturadas de sentido, formando uma proposição. Daí que conhecer,

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em uma de suas acepções, é a capacidade de emitir proposições sobre algo.

Ainda que a ocorrência de uma maçã madura cair da macieira sempre tenha ocorrido, é a observação do homem seguida a enunciação desta que lhe permitem dizer a outra pessoa "a maçã caiu" e inserir esse acontecimento2 no mundo. Dentre várias concepções possíveis, é possível dizer que o mundo é formado pelo conjunto de acontecimentos e, logo, de proposições.

Foi pelo emprego da linguagem, formulando proposições, que Galileu pôde registrar as informações que seus sentidos lhe ofereciam e perceber que os objetos caem, independentemente da massa que tenham, com a mesma aceleração. Foi também com o emprego da linguagem que Newton descreveu esse comportamento, esmiuçando a relação que havia entre os componentes estudados e enunciando a existência de uma força - a gravidade - que, sendo física, estaria também regida pela fórmula conhecida como 21 lei de Newton: F = m.a (em que Festa para a força, m para a massa do objeto e a para a aceleração).

A explicação de Newton, por mais revolucionária que tenha sido, não mudou a forma como as maçãs caem das macieiras e nem o poderia: é linguagem e, como tal, não toca os objetos de que fala. Contudo, a teoria newto-niana abriu ao homem as portas para o avanço do conhecimento sobre aquele fenómeno. Isto é, permitiu-lhe o entendimento sobre que fatores estão diretamente relacionados e quais são irrelevantes, fornecendo instrumental valioso para a elaboração de cálculos que possibilitam previsões precisas dos elementos que precisam ser mobilizados, por exemplo, para a construção de muitas maravilhas da engenharia moderna e contemporânea.

Newton esgotou o assunto, mostrou a realidade "como ela é"? Sim e não. Tendo em vista o seu propósito, de descrever a força que atrai dois corpos considerando a relação que existe entre a massa e a aceleração, podemos dizer que ele foi bem-sucedido em seu tento. Mas a história da física mostra que muitos outros vieram depois dele e, levando em conta outros aspectos envolvidos na queda dos objetos e com apoio nas fórmulas do próprio Newton, desenvolveram outros setores da física como a aerodinâmica, a astronomia física, a hidrodinâmica... Essa é uma característica da linguagem em relação ao real: ela não esgota o objeto que descreve, porquanto evidencia-lhe somente parte dele, os relatos linguísticos recolhem somente uma parte de algo que é uno e irrepetível e servem de base à construção de outros relatos dele derivados. Daí ser possível, a partir do contato com um objeto, a formação de um número infinito de proposições distintas.

As proposições formadas a partir de uma mesma ocorrência não serão sempre as mesmas: cada uma recorta e articula os dados sensíveis segundo certas regras que lhe impõem uma estrutura a qual será saturada de significação segundo um certo repertório. A estrutura e o repertório ditam aquilo que é relevante à observação para que possa um sujeito conhecer o fenómeno de seu interesse. Para a física de Newton, não importa saber se a maçã que caiu era verde ou vermelha, se tinha cheiro azedo ou doce, se estava ou não infestada porum verme... interessa tão só sua massa, justamente porque a fórmula da queda livre dos objetos éP = m.g (em que P está para a força peso, m representa a massa de um objeto e g a constante da aceleração gravitacional).

Toda proposição, por ser formada dentro de um panorama de linguagem, está sujeita a certas regras que lhe prescrevem estrutura e léxico. Essas regras são chamadas, pela semiótica de sintagmáticas e paradigmáticas que ditam, respectivamente, as formas de combinar os signos (sintaxe) e quais deles podem ser utilizados (semântica) na formação

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de uma proposição bem formada (Araújo, 2005). Uma fórmula, tal como aquela descritora das forças físicas elaborada por Newton, ou a regra-matriz de incidência tributária desenhada por Paulo de Barros Carvalho, é sempre uma estrutura a evidenciar os aspectos envolvidos num fenómeno e que está...

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