Notas sobre o Saneamento do Sistema Financeiro Nacional.

AutorAntonio Augusto Cruz Porto
Páginas251-265

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Obviedades muitas vezes são importantes. Não parece crível que a partir de dizeres evidenciadores do ululante torne-se improvável a construção de algo novo. Às vezes, notabilizar o óbvio elucida aspectos relevantes dentro de um determinado contexto de análise e, ainda, permite releituras, reinterpretações, reaprendizagens. É como, analogamente, reler um livro antes já lido: passado o tempo, vividas novas experiências, a interpretação será diferente, por certo.

Atualmente, parece insofismável dizer que o sistema bancário brasileiro evoluiu, aprendeu, cresceu, desenvolveu-se. A despeito de não ser possível conjecturar, nem de longe, a sua impermeabilização à sazonalidade das crises financeiras nacionais e globais, é fato que o passar dos anos e os severos testes vivenciados no saneamento do sistema financeiro brasileiro, em especial experimentados na década de 1990 do século XX, fortaleceram-no e tornaram-no mais robusto ao enfrentamento das oscilações econômicas ínsitas ao contexto da sociedade moderna.

Isso, porém, não é outro senão fruto da luta pela estabilização monetária175, dos programas de reestruturação das

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instituições financeiras ao longo dos anos e das modernizações das legislações pertinentes. Desta forma, abordar a insolvência bancária no Brasil - tarefa de já difícil concreção devido às suas inúmeras vertentes - sem que se inserisse o movimento de saneamento do mercado financeiro e bancário implementado a partir da edição do Plano Real tenderia à incompletude176.

O elevado grau de corrosão do poder de compra da moeda brasileira, sobretudo nos idos de 1980 e na primeira metade dos anos 1990, prejudicava intensamente o desenvolvimento do País. Um extenso programa de estabilização monetária, consolidado com a edição da Lei 8.880, de 27 de maio de 1994, e da Lei 9.069, de 29 de junto de 1995, permitiu notórios avanços na reestruturação do sistema financeiro, na estabilização da moeda e na reorganização das instituições bancárias com elevado grau de desencaixe entre ativos e passivos ou com desconexa exposição a riscos.

Nesse sentido, acentua Gilberto Tadeu Lima que "o sistema financeiro brasileiro, o maior e mais complexo na América Latina, teve sua dinâmica, em especial nas duas décadas anteriores a 1994, sensivelmente condicionada pelo crônico processo inflacionário que predominou no período"177. Na sua visão, os períodos em que havia grande descontrole sobre o processo inflacionário "permitiu às instituições financeiras

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ganhos proporcionados por passivos não remunerados, tais como depósitos à vista e recursos em trânsito (floating), compensando eventuais ineficiências administrativas e perdas decorrentes de concessões de créditos de liquidação duvidosa"178,

comprometendo, em consequência, a correta avaliação acerca da eficiência da gestão bancária e das qualidade dos produtos e serviços fornecidos pelas instituições bancárias. Fábio Ulhoa Coelho relembra que, "até então, o processo contínuo de deterioração do poder aquisitivo da moeda possibilitava aos bancos auferirem ganhos, sem muitos esforços, por não estarem obrigados ao pagamento de correção monetária integral sobre a generalidade dos depósitos"179.

As receitas derivadas do chamado ‘imposto inflacionário’ permitia que os bancos auferissem lucros desvinculados de sua capacitação administrativa e gerencial, limitando-se a estruturar suas atividades em torno da captação de recursos de clientes - sobretudo advindos de depósitos não remunerados - com vistas a obter ganhos com a alta inflação monetária180.

Com a estabilização do sistema e a estagnação dos sobressaltos inflacionários, os bancos deixaram de colher esses divi-

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dendos. Fez-se notar, também, a fragilidade do sistema bancário, desvelando graves problemas de gestão, fraudes e maquiagens contábeis. Emílio Dantas comunga de idêntica visão e traz al-guns números bastante relevantes a coonestar o pensamento181.

Otávio Yazbek182esclarece:

Com o fim da inflação, muitas instituições perderam as chamadas receitas de floating, decorrentes da administração conjunta dos depósitos à vista não remunerados, feitos pelos clientes, e de outras operações. Da mesma maneira, uma vez eliminadas as distorções até então existentes, ficou evidenciada a fragilidade da estrutura patrimonial de boa parte das instituições financeiras - não eram raros, desse modo, os problemas de má gestão, disfarçados pela reduzida transparência e pela contabilidade bancária.

Além disso, "a abertura da economia revelou o grau de ineficiência de vários setores domésticos, com reflexos na capacidade de recuperação de empréstimos concedidos pelos bancos"183. Fato é, nesse panorama, que o fim da inflação descontrolada - ou, ao menos, o estabelecimento programático de metas de inflação - implicou a necessidade de as instituições financeiras promoverem novas estratégias de atuação nos mercados sofisticados e de massa, novos modelos de gestão empresarial e novas políticas de condução interna de re-

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ceitas e despesas184. Foi assim que "para obtenção de resultados positivos as instituições financeiras passaram a depender mais de suas operações, quer sejam de tesouraria, quer sejam junto à clientela, e menos de meras captações de recursos a custo zero e repasse a taxas elevadas"185.

Portanto, a partir do advento do Plano Real, vislumbrou-se efetiva e significativa mitigação na receita dos bancos como corolário do controle da inflação. À época, "verificou-se uma total incapacidade de nossas instituições financeiras em promover espontaneamente os ajustes necessários para sua sobrevivência nesse novo ambiente econômico"186. Por conta disso, "emergiram certos problemas de liquidez na indústria bancária"187, desencadeando a necessidade de intervenção do Estado, por meio do órgão regulador, em inúmeras instituições financeiras, inclusive de grande porte, "impondo ao governo a necessidade de maior presença no cenário financeiro, além da adoção de normas legais e regulamentares mais rigorosas"188.

Em um cenário econômico com 265 instituições financeiras, mais de 16 mil agências e 11 mil postos de atendimento, vários bancos quebraram, acarretando inúmeros prejuízos financeiros e sociais ao Sistema Financeiro Nacional189.

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Nesse contexto, percebeu-se que a promoção de medidas de intervenção e liquidação, com a paralisação imediata das atividades bancárias, notadamente em instituições de grande porte (too big to fail) tenderia a implicar danos severos ao funcionamento do mercado financeiro, ao passo em que estancaria a intermediação de recursos aos setores produtivos e, ainda, bordejaria afluxos de capital para fora dos bancos eventualmente saudáveis, como resultado das corridas bancárias.

Além do mais, no contexto dos regimes especiais, os credores das instituições liquidandas têm de esperar pacientemente a apuração dos ativos da massa e o pagamento dos passivos, de acordo com a respectiva classificação creditícia, situação a desnudar, mais uma vez, os danos socioeconômicos de procedimentos liquidatórios190à vista da complexidade e da lentidão desses processos191. Portanto, "não havia alternativa milagrosa: ou o Governo Federal deixava que o mercado sofresse o impacto da intervenção ou liquidação, ou apresen-

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tava um programa de reorganização das empresas em estado de dificuldade, sob pena de acontecer uma quebradeira em cadeia"192.

Esse conjunto de fatores, somado a outros tantos - dentre os quais a decretação de intervenção do Banco Econômico S/A em 11 de agosto de 1995193-, fez com que o Estado propusesse novas formas de reorganização e reestruturação do sistema bancário brasileiro, com o saneamento das instituições insolventes a partir da criação do PROER, em novembro de 1995, compreendendo linhas especiais de assistência financeira194, flexibilização do atendimento dos limites operacionais aplicáveis às instituições financeiras e diferimento dos gastos relativos aos custos, despesas e outros encargos com a reestruturação, reorganização ou modernização de instituições financeiras, liberação de recursos do recolhimento compulsório/encaixe obrigatório sobre recursos à vista para aquisição de Certificados de Depósitos Bancários (CDB) de emissão de instituições participantes do PROER195. Perscrutando o assunto, Gilberto Tadeu Lima assinala que os recursos envolvidos "seriam provenientes dos depósitos compulsivos

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recolhidos pelas próprias instituições integrantes do sistema financeiro, não comprometendo o orçamento fiscal"196.

Ao longo do tempo, outros dois modelos de programas foram implementados: destinado aos bancos públicos estaduais (Proes197), criado em 1996, bem como o denominado Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais, por sua vez implantado em 2001. Especificamente no âmbito do Programa de reestruturação dos bancos estaduais, facultou-se à União Federal, a seu livre...

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