Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis

AutorAlex Sandro Ribeiro
CargoAdvogado e Parecerista em São Paulo Pós-Graduado em Direito Civil pelo UniFMU
Páginas18-22

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1. Notas introdutórias

Profundas alterações foram provocadas pela Lei n. 10.931, de 2004, na sistemática da alienação fiduciária em garantia, que não poderiam escapar de uma análise mais detida, mormente confrontando-as aos preceitos da Constituição Federal.

A alienação fiduciária em garantia, negócio jurídico inerente precipuamente ao sistema financeiro, porém que não lhe é privilégio, com misto de direitos obrigacionais, é um contrato que encerra direitos e obrigações para credor e devedor. Contrato bilateral, portanto. É acessório, posto vinculado a um contrato principal, qual seja o de mútuo financeiro, objetivando apenas a transferência de coisas, títulos ou direitos, com fins de garantias. Compõe-se de dois elementos: um, do direito obrigacional, relativo à obrigação mutuada; outro, do direito real, consistente na transferência da propriedade ao credor, como garantia da obrigação mutuada.

2. Direito intertemporal

Norma processual é tão-somente "aquela que trata das relações que se estabelecem entre os que participam do processo e do procedimento, isto é, do modo pelo qual os atos processuais sucedem no tempo"1.

Decorrido o prazo da vacatio legis, a lei promulgada e publicada tem aplicação imediata, vale dizer: a sua vigência determina a incidência sobre todos os atos que se vão praticar, ou se estão praticando2 . E isso é assim porque toda norma processual obedece ao princípio geral do efeito imediato, princípio que muitos confundem com a chamada retroatividade.

Note-se que a norma processual não tem efeito retroativo, mas sim aplicação imediata. E a aplicação imediata decorre do princípio, válido para toda lei, de que, na ausência de disposição em contrário, não se aplica a fatos passados, quer para anular os efeitos que já produziram, quer para tirar, total ou parcialmente, a eficácia de efeitos ulteriores derivados desses fatos pretéritos.

Atos processuais realizados sob a égide da lei revogada, salvo situações expressas e excepcionais, mantêm plena eficácia debaixo da lei nova, embora esta dite normas jurídica de conteúdo diferente3. Promulgada uma lei de processo, claro está que não pode atingir a relação jurídico- material em que se consubstancia o direito substantivo, visto que seu objeto é diverso.

Como a norma processual provê apenas para o futuro, ela atinge apenas os procedimentos e atos processuais ainda não realizados no momento em que entra em vigor. Assim, questões processuais da Lei n. 10.931/04 sujeitam os processos em curso às suas regras, respeitados os atos processuais já praticados e o direito processual adquirido.

Em suma, relativamente às leis substantivas, de acordo com o princípio tempus regit actus, a lei rege, em geral, o que foi praticado durante a sua vigência. Não pode, via de regra, alcançar fatos ocorridos em período anterior ao início de sua vigência nem ser aplicada àqueles ocorridos após a sua revogação. Entretanto, por disposição expressa do próprio diploma legal, é possível a ocorrência da retroatividade e da ultratividade da lei.

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De sua vez, situações de direito material só atingem os contratos novos, firmados sob a égide do novo Diploma Congressual, entre as quais pode-se mencionar a consolidação liminar da propriedade, a mora, o registro como necessário à validade do negócio, e a posse em regra deferida sem desmembramento ao credor fiduciário, até porque os instrumentos contratuais devem ser adaptados à nova legislação, inclusive no que concerne ao registro como elemento essencial à constituição do contrato de fidúcia.

Nem se alegue a indiscutível independência do direito processual como óbice a aceitar, por exemplo, a irretroatividade e impossibilidade de aplicação aos contratos em curso ao facultar consolidação liminar da propriedade. Explicando melhor: poderia ser sustentado que a consolidação da propriedade se dá no quinqüídio posterior à execução da liminar, portanto liminarmente. E esta decisão liminar é instituto do direito processual. Ora, é acautelatório, sim, mas da preservação da indenidade do direito material, sua razão de existir. É, ainda, instrumento jurídico para satisfação do direito material. Afinal, a autonomia do processo não significa seu isolamento das realidades da vida a que se refere, inclusive porque a garantia constitucional do controle jurisdicional constitui uma cobertura de todo o sistema de direitos.

Nesse passo, observadas quando e como as novas regras legais podem ser aplicadas, resta ver o que há de novidade para desafiar a inteligência dos exegetas.

3. As inovações processuais

De feito, o artigo 67 da Lei n. 10.931/04 revogou os artigos 66 e 66-A da Lei n. 4.728/65. E o fez expressamente. Como o artigo 66, da Lei 4.728/65 dispunha sobre alienação fiduciária de bens móveis por força da alteração havida com o artigo 1º, do Decreto-Lei n. 911/69, força-se concluir que houve revogação expressa deste artigo 1º, do Decreto-Lei n. 911/69.

Da mesma forma, resta-nos evidente a revogação de questões processuais, na medida em que a nova lei tratou inteiramente do assunto, disciplinando com nova roupagem o que era tratado pelos artigos 2º e 3º (menos o caput) do Decreto-Lei n. 911/69.

Mas as novas regras processuais, insculpidas no artigo 56, da Lei n. 10.931/04, além de críticas, desafiam decreto de inconstitucionalidade. Este dispositivo deu nova redação aos parágrafos do artigo 3º, do Decreto-Lei n. 911/69. Manteve em vigor, porém, o caput do artigo 3º desse Diploma Congressual, que trata da ação de busca e apreensão aforada pelo credor, a qual será concedida liminarmente se houver comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor.

Doravante, após cinco dias da execução da liminar, consolidar-se-á a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor. Aqui se vê a primeira incongruência: se o credor tem a posse direta e indireta, nada resta para consolidar, apenas reconhecer e declarar. Nem muito menos para se buscar e apreender! Mas tudo bem, imaginemos que o banco conferiu a posse direta ao devedor, pois só assim o processo (e, antes dele, o próprio contrato) terá razão de existir.

No prazo de cinco dias do cumprimento da liminar de busca e apreensão, poderá o devedor pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, não se compreendendo aqui os juros correspondentes ao tempo ainda não decorrido, i. é., as prestações vincendas cuja exigibilidade se antecipa em razão do não-pagamento pontual das parcelas vencidas (CC, art. 1.246 c/c art. 1.425, III).

Na sistemática anterior, o Réu poderia purgar a mora. Pela nova ordem, o pagamento tem de ser da integralidade da dívida pendente. A dúvida que a princípio assola o intérprete é saber sobre o que se deve entender por esta expressão. Seriam as parcelas vencidas, as da mora; ou seriam todas as prestações, inclusive as vincendas, cuja exigibilidade se antecipa em razão do inadimplemento contratual e da incidência da cláusula resolutória expressa?

A resposta, ao que parece, é expressada pela parte final do novo § 2º, do artigo 3º, do Decreto-Lei n. 911/69, ao prever que na hipótese de pagamento da dívida integral, o bem será restituído ao devedor livre do ônus. Se fosse pagamento apenas das parcelas atrasadas, o contrato continuaria em vigor, mantida a oneração. Como será devolvido o bem ao devedor, livre do ônus, conclui-se que o contrato foi extinto.

Portanto, a...

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