Nova Postura Político-Social do Poder Judiciário

AutorOriana Piske
CargoJuíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)
Páginas30-37

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O juiz, como agente social e político (não partidário), deve estar atento às transformações do mundo moderno ao aplicar o direito, valorando os aspectos sociais, políticos e econômicos dos fatos que lhe são submetidos. Cabe ao juiz exercer a atividade recriadora do direito através do processo hermenêutico, bem como a de adaptador das regras jurídicas às novas e constantes condições da realidade social, e, com grande responsabilidade, deve buscar as soluções justas aos conflitos, visando à paz social.

Verifica-se que a politização do juiz deriva do fato de que ele soluciona litígios aplicando normas que são condutoras de valores e expressões de um poder político. Não existe, assim, norma neutra. Logo, se o juiz é um aplicador de normas, não existe juiz neutro. Em verdade, no marco do Estado Constitucional de Direito, a atividade política e a atividade judicial estão estreitamente unidas pelo império do direito.

Um outro aspecto da politização do juiz está no fato de que as constituições modernas, normativas, contemplam normas de conteúdo poroso, a ser completado pelapráxis. E o Poder Legislativo derivado, por sua vez, em muitas situações, não só não se esforça para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma téc-nica da legislação aberta, indeterminada. Incapaz de solucionar alguns conflitos (megaconflitos) modernos, muitas vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de moldar a norma final aplicável.

O Judiciário passou a solucionar não somente os conflitos inter-subjetivos de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, e também implementando o conteúdo promocional do direito, como o contido nas normas constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais.

De qualquer forma, "essa politização do juiz, que é inegável dentro do Estado Constitucional de Direito, concebido como fonte e limite do direito, não pode, no entanto, chegar ao extremo de lhe permitir a substituição da racionalidade jurídica pela racionalidade política. Esse é hoje um problema que ronda a legitimação democrática da jurisdição C-.)"1.

A proibição de "politização partidária" do juiz guarda certa coerência com a tradição brasileira, que nunca admitiu eleição direta (popular) para o cargo de juiz. Com a finalidade de resguardar sua independência, prevê a Constituição a impossibilidade de o juiz dedicar-se a atividade políti-co-partidária (CF, art. 95, parágrafo único, inc. III) ou de pertencer a partidos políticos.

Por outro lado, diante da proibição de politização partidária do juiz, já não se pode discutir que o constituinte pretendeu assegurar para a função jurisdicional outro tipo de legitimação democrática distinta da representativa: trata-se, como já visto, da legitimação legal ou racional ou formal. Ambas as modalidades de legitimação derivam da vontade (soberana) popular. Entre elas não há nenhuma hierarquia. E, dentre as

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múltiplas garantias oferecidas pela legitimação formal, uma delas deve ser destacada neste momento: a que impede que o juiz, no exercício de sua função, utilize para a solução dos conflitos outros critérios que não sejam os emanados do ordenamento jurídico.

Com isso, não só se garante uma certa objetividade na atuação do juiz, senão também se evita sua politização ideológica. Não queremos dizer que o juiz não tenha suas convicções, suas crenças e sua visão própria do mundo. Cada um tem suas preferências ideológicas, políticas, filosóficas etc. Porém, para se alcançar um alto nível de objetividade na função jurisdicional, o que constitui uma garantia para todos, devemos reconhecer que as convicções ou critérios pessoais do juiz só são válidos para a solução dos conflitos na medida em que estejam de acordo com as normas, princípios e valores do ordenamento jurídico.

A seguir serão examinadas as principais características nas quais se embasava a estrutura do Poder Judiciário no contexto do surgimento e da consolidação do Estado moderno. Visamos, deste modo, o melhor entendimento das novas demandas que foram colocadas perante a atuação dos juízes como fruto das mudanças da natureza do Estado, que se tornaram mais visíveis a partir da segunda metade do século XX.

A teoria clássica de separação dos poderes tinha por objetivo fundamentar a existência e a atuação dos órgãos estatais em contraposição ao exercício do poder na época medieval, caracterizado como autoritário e arbitrário. Na base dessa teoria estava contida a ideia de separação entre política e direito, que determinou a neutralização da política no exercício da jurisdição. A finalidade precípua da divisão do poder estatal basicamente em duas funções, da criação e da execução de direito, correspondia à ideia da inibição recíproca dos poderes que impedia, em última instância, o exercício do poder2.

Nesse contexto, o Poder Judiciário tinha que orientar a sua atuação de acordo com o princípio da legalidade, que transformava a aplicação do direito em subsunção racional-formal dos fatos às normas, desvinculada de referências éticas e políticas. Desta maneira o funcionamento do Judiciário era retroativo e retrospectivo, e visava garantir a recomposição das situações de ilegalidade do passado de acordo com o quadro normativo pré-cons-tituído3. No período do Estado liberal se atribuía máxima importância ao princípio da segurança jurídica, cuja aplicação deveria proceder de forma automática de modo que os imperativos nela contidos chegassem sem distorção até seus destinatários. Também nesse período a atuação dos juízes era circunscrita dentro dos limites da li-tigiosidade interindividual, o que correspondia, no plano do direito, ao advento da ideologia do individualismo que marcou o início da era moderna e que objetivava a extinção das hierarquias e dos grupos na sociedade.

A função social dos juízes ao longo do século XIX estava orientada no sentido de legitimar a atuação do legislador, que possuía um lugar de destaque político no contexto da distribuição dos poderes constitucionais. O distanciamento da atuação do juiz do campo da política e da ética visava assegurar a reprodução fiel do direito positivo legislado na resolução dos conflitos individualizados, garantindo os direitos e as liberdades individuais. Em síntese, esse tipo de configuração das funções dos magistrados correspondia ao entendimento de legitimidade e de distribuição do poder político num sistema democrático orientado pelos imperativos do liberalismo.

A partir do final do século XIX, devido às transformações políticas, econômicas e culturais que marcam o desenvolvimento do Estado moderno, começa também a ser modificado o significado sociopolítico das funções dos magistrados. No entanto, segundo Boaventu-ra de Sousa Santos, foi só após a Segunda guerra mundial que, nos países centrais, se consolidou uma nova forma de Estado, o Estado providência. No que diz respeito aos países periféricos e semiperiféricos, o referido autor observa a não adequação dessa cronologia às realidades históricas desses países, nos quais até os direitos de cunho liberal, chamados também de direitos de primeira geração ou direitos clássicos, são constantemente desrespeitados. Na opinião do cientista português, a precariedade dos direitos nos Estados caracterizados pelas drásticas desigualdades sociais é o outro lado da precariedade dos regimes democráticos4.

No Brasil do final do século XX, a questão da implementação plena das bases do Estado de bem-estar social continuou sendo um tema polêmico. Não obstante, a cultura jurídica e as práticas de aplicação do direito apresentam, nas últimas duas décadas, modificações significativas que a aproximam às características do direito social, base de sustentação jurídica e política do Estado provi-dência5.

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Com o aumento da complexidade do Estado e o surgimento dos novos grupos e atores sociais, fruto da atuação acentuada dos movimentos sociais no final da década de 70, é comum no campo da sociologia do direito a observação de que o modelo liberal, no qual se embasava o exercício da magistratura, entrou definitivamente em crise, determinando a erosão da legitimação clássica da atuação dos juizes. Em termos empíricos, essa constatação é comprovada pelo alto índice de resolução de conflitos por vias extrajudiciais, que, de acordo com os dados obtidos por José Eduardo Faria, em 1983 e 1988, foi de 67%6 Também nos anos 90, os sociólogos Maria Tereza Sadek e Rogério Bastos Arantes, em análise dos dados obtidos pelo IBGE, demonstram que esse índice continua o mesmo7. Verifica-se, naquele período, a perda da importância do sistema judicial na resolução dos conflitos e o incremento de mecanismos privados de solução de litígios de caráter antisso-cial, tanto entre as camadas mais pobres da população, com o extermínio de moradores de rua, como entre as mais ricas, que, valendo-se de seu poder econômicos, nem sempre se submetem à normatividade estatal.

Foi consagrado no plano constitucional brasileiro, a partir da Carta de 1988, o elenco de direitos de natureza coletiva (direitos de moradia, educação, saúde e trabalho), cuja po-sitivação repercutiu na mudança do modelo liberal e positivista de produção e aplicação do direito. A natureza diversa dos direitos sociais, em comparação com os direitos individuais, decorre do fato daqueles não serem somente normas como um a priori formal, mas porque possuem um sentido promocional prospectivo que pressupõe a implementação de políticas públicas8.

A caracterização dos direitos sociais como direitos das desigual-dades e das coletividades foi sintetizada no pensamento de José Eduardo Faria, que enfatiza o fato de os direitos sociais serem formulados mais na perspectiva dos grupos e comunidades a que pertencem do que na perspectiva da figura do indivíduo livre e autônomo, visto como sujeito individual de direito. O autor...

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