O núcleo indisponível do direito fundamental da proibição da prova ilícita no Brasil

AutorJosé Laurindo de Souza Netto
Páginas33-56

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1. Introdução

O processo penal sempre esteve preso na tensão entre o controle do crime e o devido processo legal, ou seja, na escolha entre a necessidade de lutar contra certas formas de delinquência e o respeito aos direitos e liberdades fundamentais.

Historicamente os direitos fundamentais nasceram como proteção contra os excessos potenciais do Estado, configurando-se como instrumento de contração do âmbito da atuação repressiva estatal.

No Iluminismo, por exemplo, a intervenção penal era limitada sob o ponto de vista normativo, sancionador e processual, assumindo

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assim uma “função de escudo”, ou seja, uma espécie de barreira frente ao ímpeto criminalizador do Estado. Entretanto, os avanços de um Estado penal e sua perspectiva de segurança pública acabaram por fazer da repressão não mais um meio em busca de um fim (supostamente bom), mas um fim em si mesmo.

A preocupação da sociedade contra as ameaças reais, imaginárias e potenciais da criminalidade realçou a dimensão de segurança dos direitos fundamentais, privilegiando sua função de “braço armado”, no dizer de Mirrelle Delmas Marty (2007). Nesse sentido, destaca-se então função inversa, que transforma os direitos fundamentais em “espada” da repressão, contribuindo para a legitimação da via penal como único meio de prevenir condutas indesejadas e tutelar direitos.

Amplia-se assim a doutrina da dupla natureza e dimensão dos direitos fundamentais, ideia de Niklas Luhmann (2003), segundo a qual os direitos fundamentais emergem também como valores ou fins do moderno estado de direito, a serem tutelados pelo recurso processual/penal. Como bens jurídicos, aparece de um lado o interesse de perseguição encabeçado pela comunidade ofendida pela infração criminal e de outro a ideia de estado de direito e o imperativo de um processo conforme as exigências da Constituição.

As proibições da prova ilícita surgem neste contexto, como instrumento de defesa de direitos fundamentais contra a atividade de perseguição criminal.

No Brasil o tema da prova ilícita encontra-se potencializado em relação aos outros países, em virtude de estar inserido na Constituição como direito fundamental (art. 5º, LVI) e como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, da CF). tal previsão constitucional envigora o sistema brasileiro de proteção de direitos fundamentais em relação ao direito comparado. O estabelecimento desse direito fundamental como princípio e não como regra tem, entretanto, conduzido a uma arbitrária discricionariedade judicial, lastreada em possíveis sopesamentos e manejada por uma hermenêutica depuradora da ilicitude da prova.

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A problemática desse estudo, diante do contexto exposto, consiste em se perguntar se esta relação ambivalente de direito processual/penal e direitos fundamentais legitima a jurisdição para admitir aquilo que a Constituição Federal veda, no que diz respeito ao direito fundamental da inadmissibilidade da prova ilícita, (art. 5º, inc. LVI).

Tendo em vista a natureza paradoxal nas relações entre direito penal processual e direitos fundamentais, a questão que se coloca é o alcance do sopesamento de valores no que concerne à análise do direito a uma prova ilícita. Existe ou não uma obrigação constitucional capaz de levar a uma relativização da norma do art. 5º, inciso LVI, uma restrição de direito fundamental, tendo em vista uma maior eficácia do Estado no combate movido contra a criminalidade grave?

O objetivo do artigo é reafirmar a legalidade constitucional, sua normatividade e a vinculação da jurisdição aos comandos inerentes ao estado de direito.

Neste percurso será necessário analisar seis aspectos: I. Natureza paradoxal da relação entre direitos fundamentais e direito processual/penal; II. Inadmissibilidade da prova ilícita no Brasil e no direito comparado; III. A natureza de regra da norma que garante a proibição da prova ilícita no Brasil (art. 5º, inc. LVI, CF); IV. A vinculação da jurisdição com a filosofia da linguagem e a hermenêutica fenomenológica; V. Hermenêutica depuradora da ilicitude; VI. A ponderação principiológica.

2. A natureza paradoxal da relação entre direitos fundamentais e direito processual/penal

Com a passagem do estado liberal para o social democrático e o emergir da constitucionalização dos direitos, transparece o paradoxo da relação entre direitos fundamentais e direito processual/penal, pois aqueles, antes encarados como direitos de caráter negativo, ou seja, contra o Estado, passam a ter uma concepção positiva, con-

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siderando a intervenção penal como meio mais importante para a defesa e a tutela preventiva.

Esse caráter dicotômico dos direitos fundamentais foi apontado por Alessandro Baratta (1999) quando definiu o garantismo “no solamente en sentido negativo como límite del sistema punitivo, o sea, como expresión de los derechos de protección respecto del Estado, sino como garantismo positivo. La respuesta a las necesidades de seguridad de todos los derechos, también de los de prestación por parte del Estado (derechos económicos, sociales y culturales) y non sólo de aquella parte de ellos, que podríamos denominar derechos de prestación de protección, en particular contra a agresores provenientes de comportamientos delictivos de determinadas personas.”

É como bem jurídico que a Constituição Federal reconhece e protege os direitos fundamentais, como a integridade física e moral, a liberdade, a privacidade, a honra e a imagem, a inviolabili-dade do domicilio e de correspondência e sobretudo a proibição da utilização da prova ilícita. É também como bem jurídico que a Constituição tutela a eficácia funcional do sistema penal.

A eficácia funcional do sistema penal surge então como um bem jurídico de dignidade constitucional. Os delitos que devem ser penalizados (com maior rigor) são exatamente aqueles que de uma maneira ou outra obstacularizam a concretização dos objetivos do estado social democrático. Cabe então, ao direito penal uma função de proteção dos bens fundamentais na comunidade, das condições sociais básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada um e cuja violação constitui crime (DIAS, 1999).

Neste paradoxo, a inflição de uma pena constitui uma espada de dois gumes, tutelando bens jurídicos mediante lesão aos mesmos (LISZt, 2003). Desse modo o bem jurídico implica uma dupla proteção, como ensina Roxin, “através do direito penal e ante o direito penal, cuja utilização exacerbada provoca precisamente a situação que se pretende combater” (1998, p. 28).

O paradoxo dos direitos fundamentais reside na possibilidade de um bem (a promoção de direitos fundamentais) gerar um mal (repressão) quando deste mal possa surgir um bem superior. Assim

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os fins (bons) justificam os meios contestáveis os quais deixam de possuir este caráter quando operem em favor de uma causa incontestável.

Essa relação ambivalente entre direito penal e direitos fundamentais é descrita por autores franceses como “escudo ou espada”. Reconhece-se além da função humanista dos direitos fundamentais uma função inversa deles, que os transformam em espada, como instrumento da repressão criminal, contribuindo assim para a legitimação dos direitos penais como uma verdadeira penalização dos direitos fundamentais (OSt, 2002).

O caráter reversível se estabelece na medida em que o direito penal pode ser considerado não só como escudo dos direitos fundamentais, mas também como seu braço armado (OSt, 2007). Yves Cartuyvels considera os direitos fundamentais como “freio e amplificador” da criminalização. Fr. tulkens e M. van Kerchove (2007) evocam os direitos fundamentais como boa ou má consciência do direito penal. Mireille Delmas-Marty também fala em braço armado do direito penal (2007).

3. Inadmissibilidade da prova ilícita no Brasil

A proibição de prova ilícita configura uma das áreas da experiência jurídica onde mais se conflitam os interesses que estão em jogo no processo penal. Para o cidadão as proibições de prova em geral aparecem como instrumento de defesa de direitos individuais contra a atividade de perseguição criminal do Estado.

No ordenamento brasileiro, a inadmissibilidade penal de provas obtidas de forma ilícita origina-se diretamente da Constituição. Assim o sistema brasileiro se une àqueles de outros países em que se optou em buscar uma tutela reforçada.

O artigo 5º, inciso LVI, da CF estabelece peremptoriamente como cláusula pétrea que “são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos”. Não foi sem razão a sua inserção no capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do título

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II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Com o dispositivo o legislador albergou a corrente que sustentava não ser possível ao juiz fundamentar uma decisão numa prova obtida ilicitamente.

Assim são inadmissíveis no processo penal e civil tanto as provas ilegítimas, proibidas pelas normas de direito processual, quanto as ilícitas, obtidas com a violação de correspondência, de transmissão telegráfica e de dados, com a captação não autorizada judicialmente das conversações telefônicas (art. 5º, inc. XII, da CF), com violação de domicílio, exceto nas hipóteses de flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou mediante determinação judicial (art. 5º, inc. XI, da CF), com violação da intimidade, de fitas gravadas de contatos em encontros de caráter privado e sigiloso (art. 5º, inc. X, da CF), com abuso de poder, como a...

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