Olhar soberano na fotografia de José Domingo Laso/Sovereign view in José Domingo Laso's photography.

AutorSimioni, Rafael Lazzarotto

1 Introdução

Quito a la vista é uma série de imagens do fotógrafo equatoriano José Domingo Laso Acosta, publicada em 1911, na forma de um fotolivro. São imagens da cidade de Quito que se inscrevem, à primeira vista, no gênero da fotografia documental. Fotografias com foco preciso, nítidas, com controle de exposição equilibrado. Não há qualquer intenção de estabelecer uma comunicação abstrata, simbolista ou surrealista. Pelo contrário, as imagens apresentam limites iconográficos bem definidos, claros e objetivos. Não há ambiguidades, ambivalências ou elementos que designem intenções simbolistas. São fotografias que apresentam uma intenção documental e dialogam com a linguagem da verdade e da representação.

Todavia há fantasmas nessa série fotográfica. Rastros de sentidos apagados. Palimpsestos iconográficos que sinalizam presenças cuidadosamente excluídas. Ausências construídas. Presenças calculadas. Os índios foram, literalmente, apagados das paisagens da cidade de Quito.

Discriminação visual? Retoque fotográfico moral? Cartões-postais da imagemdesejo das elites da época? A fotografia não é apenas registro ou ilustração de um passado que aconteceu, mas também um dispositivo de poder. Um dispositivo que constrói sentido e que, desse modo, permite ver desejos. Ao observar uma fotografia não vemos apenas uma ilustração do "isso foi" (BARTHES, 2015: 68), mas sobretudo uma ilustração do sistema de desejos da época e das formas de construção da realidade projetadas por esse sistema de desejos. Laso entregou para a elite quitenha a imagem de Quito que ela desejava ver e viver.

A obra de Laso constitui um monumento da relação entre arte, política e direito na América Latina. Ela revela a sutil irrelação entre cena, cenário e encenação. Laso fotografava a cidade sem índios e, no estúdio, fotografava os índios sem cidade. Em Quito a la vista, um cenário sem índios. Nos retratos indígenas, entretanto, índios sem cenários. Na relação entre cena e cenário, a encenação de uma vida colonizada.

A assimetria entre cena e cenário revela, precisamente, o lugar da vida nua. Segundo a noção de Agamben (1995: 11; 2014: 43), vida nua é o limiar da indiferenciação entre uma vida política qualificada e uma vida animal descartável. Na série de Laso, a imagem do índio apagado simboliza a vida nua. Uma vida que não é nem qualificada como a dos colonizadores, mas que também não é simplesmente descartável como a dos animais. É a vida situada exatamente no campo da exceção dos direitos, em algum lugar entre a vida qualificada e a descartável. O índio retirado do cenário não é apenas a simbolização das relações coloniais de exploração e dominação dos corpos, mas também a forma pictórica da segregação (LASO, 2016: 126). O lugar onde cena, cenário e encenação se tornam indistintos. Índios sem cenários e cenas sem índios, para a encenação de uma vida teatralizada.

Neste artigo, queremos observar aquilo que não está presente na imagem. Os rastros de elementos cuidadosamente excluídos da composição fotográfica. Genuínos fantasmas que, paradoxalmente, existem e não existem ao mesmo tempo. Giorgio Agamben (1995: 94) os chama de homines sacri: aqueles indivíduos que vivem uma vida no limiar da indiferença entre vida politicamente qualificada e vida animal sacrificável. Didi-Hubermann (2013: 43 e 174), dialogando com a problemática da Nachleben der Antike de Aby Warburg, fala de "imagem sobrevivente": uma estranha relação entre sobrevivência e supervivência das imagens. Fantasmas rebeldes que, mesmo reprimidos ou mortos, "supervivem" em nossa cultura.

Nessa perspectiva, este artigo objetiva estabelecer uma conexão entre a impresença indígena no cenário da cidade e a impresença do cenário na cena indígena. Essa assimetria na estética indigenista da época permite propor uma releitura jurídica das fotografais de Laso não a partir do que elas mostram, mas a partir dos rastros que elas encobrem e que sobrevivem em uma reabertura histórica.

Para serem alcançados esses resultados, como metodologia, utilizaremos três chaves de leitura, a) a imagem do paraíso exótico reproduzida pelas formas de arte latinoamericanas do século XIX, influenciadas pela narrativa fantástica de Alexander von Humboldt; b) a estética que comandava as formas de composição, organização e enquadramento das fotografias indigenistas daquele tempo; e c) as políticas públicas de estetização e higienização urbana vigentes naquele período. Escolhemos quatro fotografias retocadas com o apagamento da presença indígena da série Quito a la vista e quatro retratos feitos por Laso e outros fotógrafos importantes no início do século XX, que permitem observar a relação, como um quiasma visual, entre a cidade sem índios e os índios sem cidade.

Nossa leitura utiliza a noção de forma de observação de segunda ordem, desenvolvida no âmbito da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos (LUHMANN, 2005: 102), que permite estabelecer relações entre a imagem e aquilo que dela foi apagado, negado ou subtraído. A forma é uma diferença que estabelece a identidade a partir da diferença. Uma diferença entre o que ela indica e o que dela fica distinto como um suposto implícito da própria distinção. Trata-se de uma forma de conhecimento, nem melhor, tampouco pior, apenas diferente e que, por isso, pode oportunizar uma leitura ressignificante da relação que estabelecemos entre arte e direito, entre as imagens da Lei e aquilo que em nome dela fazemos.

Este artigo faz parte do projeto de pesquisa Imagens da Lei, do Grupo de Pesquisa Margens do Direito (PPGD/FDSM), que procura analisar obras de artes visuais a partir da relação com o direito. A série fotográfica de Laso é importante para nosso projeto porque possibilita observar, dentre outras coisas, aspectos da relação entre arte, direito e colonização na cultura latino-americana.

A série de fotografias de José Domingo Laso Acosta constitui uma forma do olhar soberano da época. O olhar da exceção soberana, que segrega a vida cuidável da vida sacrificável e, desse modo, institucionaliza mecanismos de controle dos corpos e das populações. Uma forma de olhar que transforma sujeitos em sombras, pessoas em fantasmas, signos em rastros. Uma mirada que produz a interessante assimetria entre cena, cenário e encenação, diante da qual os índios são colocados no limiar entre uma cena sem cenário, de um lado, e um cenário sem cena, de outro.

Em um sentido documental, as fotografias são de Quito. Mas em um sentido epistêmico, elas são de toda América Latina. A obra de Laso fala das sutilezas do pensamento colonial. Seus retoques fotográficos, ao contrário de esconderem a verdade, revelaram-na. Precisamente ao alterar a superfície visual da imagem, Laso revelou a verdade mais profunda: a negação do espaço para a vida política do índio na cidade de Quito. São retratos da essência das relações de desigualdade que existem em nosso mundo latino-americano. São fotografias do nosso DNA, da nossa herança histórica colonial. Os índios apagados das imagens somos eu, você, somos todos nós.

2 O retoque fotográfico de José Domingo Laso Acosta

José Domingo Laso Acosta foi um importante fotógrafo equatoriano do início do século XX. Em 1911, publicou Quito a la vista, um livro de fotografias de sua autoria sobre aquilo que hoje poderíamos chamar de os principais pontos turísticos da cidade de Quito, capital do Equador. Laso fotografava retratos de família em seu estúdio e imagens para a venda de cartões postais e revistas. Trabalhou também como fotógrafo para o historiador e arqueólogo Jacinto Jijón y Caamaño, em um projeto de fotografia documental da fisionomia ameríndia (LASO CHENUT, 2017: 29).

Entretanto, ao contrário da grande parte dos artistas da época, Laso não seguiu o caminho da romantização da figura ameríndia, tampouco da reprodução do imaginário europeu da "visão do paraíso" (HOLANDA, 2000: 16), que enxergava na América Latina o lugar do exótico, selvagem e da conquista aventureira. Ele possui uma obra imensa de retratos de índios, realizados para vender a revistas e cartões postais. Mas Quito a la vista é um lado diferente da sua obra. Um lado em que os índios são deliberadamente apagados das imagens.

Discriminação visual? Higienização? Um...

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