Opera

AutorBello, Enzo
  1. Introdução

    Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil em um momento que entendemos como parte de um contexto de crise. Há muito essa palavra "crise" se tornou parte do léxico explicativo dos problemas sociais, ora referenciando uma suposta crise institucional, ora tratando de perturbações econômicas. Quando falamos em crise, estamos nos referindo mais especificamente, conforme explicado adiante, a uma "crise geral", tanto da formação social brasileira como--porque indissociável desta--do regime de acumulação atual no modo de produção capitalista (CHESNAIS, 2017).

    É nesses termos que sustentamos que a Operação Lava Jato não só contribuiu para a crise no Brasil, mas é também fruto dela e uma tentativa de resolvê-la, ou de dar uma solução ao acúmulo das contradições (POULANTZAS, 2008: 296) que contribuiu, ao fim, para a eleição de Jair Bolsonaro. Não entendemos que o encontro entre o processo de ascensão da Lava Jato e a eleição de Bolsonaro--ou até o Bolsonarismo--ocorreu ou ocorre de maneira "consciente". Não pressupomos que houve um acordo formal ou conspiratório entre pessoas ou grupos para se atingir este ou qualquer outro fim. Isso não significa, de modo algum, que esses acordos não existam (LENIN, 1987: 194), ou que não possam se desenvolver ao longo do processo histórico. Para nós, por exemplo, é evidente, sobretudo após as revelações do Intercept Brasil, que havia intenção, por partes dos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e de Moro, de impedir a candidatura de Lula e, por conseguinte, uma preferência por Bolsonaro.

    Porém, para nossa análise, tais intenções e eventuais acordos não são o fundamental. Mesmo sem acordo, sem qualquer intento colaborativo, ou conspiração, processos e pessoas se encontram e produzem resultados. Não porque exista uma lógica única e determinante, nem porque há um extraordinário princípio organizativo que atrai todas as forças a um mesmo deslinde, mas porque resultados, no nosso entender, são fruto de contingências e encontros que unem elementos, ao mesmo tempo que mantêm outros em tensão. Esta é a natureza, propomos, do encontro entre a Lava Jato e Bolsonaro (1).

    Queremos fugir da lógica da "consciência", que, tal como o empiricismo, supõe que a existência de algo, ou a validade de um argumento, está ligada somente ao que é explícito, àquilo que está imediatamente dado no agora- em suma, ao puro "conteúdo", no sentido de Lefebvre (2011: 91). Esse tipo de análise tende a supor que agentes atuam e produzem efeitos porque assim o querem, assim desejam, assim pensaram e elaboraram antes de agir. Há razoabilidade e possível veracidade em tal perspectiva, mas entendemos que existem efeitos que são produzidos apesar de intenções, independentemente de acordos, a despeito dos desejos manifestos. Entendemos, pois, que existem efeitos produzidos na reunião de intenções contraditórias ou, inclusive, na ausência de qualquer intenção.

    Aliás, isso é o que ocorre na própria sociedade capitalista, produzida e determinada por inúmeros processos contraditórios e não correspondentes que se vinculam em uma reprodução que precisa constantemente ser refeita, atualizada, renovada. Nesse sentido, para nós há mais a ser apurado (inclusive empiricamente (2)) nos espaços, nas conexões, nas ligações - seja entre palavras, coisas presentes, ou relações sociais -, do que no imediato, no imediatamente presente, no dado. Até porque, aqui seguindo Hegel (2015: 122), o imediato é sempre fruto de outras, múltiplas, mediações (3).

    Entendemos a Lava Jato como um processo e, simultaneamente, como engendrada por outros, diversos, processos sociais. Por sua vez, ela própria, em seu funcionamento, articula e produz divergentes processos. Para identificarmos as ligações, as relações e a própria constituição de novos espaços-problemas--todos frutos de processos múltiplos -, analisamos a relação entre forma, ideologia e ficção na Operação. E o fazemos por meio função da narrativa, ou narratividade, conforme entendido por Fredric Jameson (1982). Explicamos como, no caso específico da Operação Lava Jato, a relação estrutural entre o judiciário e a imprensa funcionou através de narratividade e seus elementos, explicitando a "ideologia da forma" (JAMESON, 1982). Forma, aqui, deve ser entendida tanto em seu aspecto social (4) (HIRSCH, 2007) como em seu viés epistemológico (LEFEBVRE, 2011). Se pelo lado social--na forma social--há a cristalização de processos e práticas que se objetificam e, assim, orientam/rotinizam modos de socialização; pelo lado epistemológico, a forma é o que dá acesso a conteúdos e os organiza em suas especificidades. Em ambos os aspectos há uma regulação, uma conferência de estrutura, que está intimamente ligada à ficção (LEFEBVRE, 2011: 90). A forma, em si, em seu modo "puro", é uma ficção que existe e produz efeitos práticos.

    Interpretar "forma" desta maneira e, ao mesmo tempo, conferir à Operação Lava Jato a capacidade de produzi-las no modo de narrativas significa, em outras palavras, que narrativas não produzem efeitos ideológicos só pelas histórias que contam (apesar de ideologias contarem histórias), mas sobretudo pelas formas que usam para apresentar, mostrar e formatar modos de entendimento, engajamento e práticas. Isto é: formas atuam, agem, regulam, formatam. E a Lava Jato produziu formas que tiveram efeitos sobre a crise política, social e econômica no Brasil. Em nossa visão, a Operação Lava Jato construiu narrativas sobre a política brasileira, e, ao fazê-lo, tornou-se uma linha de força adicional no processo que levou à crise geral em curso.

    A metodologia que adotamos é influenciada e inspirada na teorização de Louis Althusser (2005: 151) sobre ideologia. Para ele, ideologia deve ser vista como a estrutura que "prepara o palco" ou atua em um dado "teatro da vida" estabelecendo seus limites. Buscamos, então, mostrar a estrutura de narratividade produzida e usada pela Operação Lava Jato, a fim deslocá-la, i.e., demonstrando as conexões tidas como evidentes e problematizando como e por que algo se torna, de fato, e não "falsamente", evidente. Na linha de Althusser (2005: 151), interrogamos a narrativa oficial em termos daquilo que são seus pressupostos estruturais, ou as condições de possibilidade semânticas de sua formação, a fim de ao menos tentar "destruir a imagem imóvel, para pô-la [a narrativa] em movimento". Diferentemente da mídia, porém, nossa análise e, pode-se dizer, nossa estrutura formal está limitada a estruturas e formas do "escrito", algo que deve colocar em evidência, ao mesmo tempo que problematizar, uma era em que imagens se tornaram mais hábeis para nos contar histórias.

    A fim de atingir tais objetivos, o artigo fornece uma contextualização geral da Operação Lava Jato para posicioná-la como parte de processos que consideramos serem os fatores "por trás" das conexões que ela (a Operação) foi capaz de criar, desenvolver e usar em sua narrativa sobre o Brasil. Em seguida, analisamos como a Operação se moveu de uma investigação sobre lavagem de dinheiro para se tornar uma força ideológica--ou, mais precisamente, um processo capaz de angariar e (re)produzir ideologias através da "forma" -, de modo a simultaneamente desorganizar e reorganizar o Estado brasileiro e o bloco hegemônico que o governa. Ao expormos o contexto e a narrativa geral da Operação Lava Jato, apresentamos imagens usadas e produzidas pelo judiciário e pela imprensa, para o entendimento de seus possíveis efeitos ideológicos (5). Porém, antes de adentrarmos nos aspectos da narrativa em si, explicaremos nosso entendimento sobre crise e, em seguida, sobre a relação entre forma, ideologia e narratividade.

    É importante deixar claro que não estamos arguindo que a Lava Jato foi a causa única, ou até causa no sentido comum, da ascensão de Jair Bolsonaro. Entendemos que são múltiplas e divergentes as causas e processos que o levaram até a presidência. Estes são, em última instância, determinados pelas relações de produção capitalistas--aquela última instância cujo momento, segundo Althusser, nunca realmente chega (2005: 113). Para nós, a Operação Lava Jato foi um dos processos mais importantes na conjugação de uma nova hegemonia (6) porque ela não só levou ao encarceramento de Lula, não só auxiliou e impulsionou o processo de impeachment (7), mas produziu novos terrenos que foram devidamente explorados e investidos ideologicamente. Conforme aponta Lenin (1987: 250), a socialização capitalista requer treino, ou habituação, e esta é uma das funções precípuas dos processos ideológicos.

  2. Crise geral: Lava Jato e a solução Bolsonaro

    A palavra "crise" nem sempre carrega o valor heurístico que se deseja, especialmente dados a proliferação e o uso extensivo do termo (POULANTZAS, 2008: 294). Essa proliferação tem relação, é claro, com o próprio modo de produção capitalista, cujas bases e desenvolvimento são repletos de contradições e, assim, de "elementos gerais de crise", como explica Poulantzas. A natureza antagônica de um sistema baseado na dominação, exploração e extração contínuas tende a fazer a crise um fator quase constante. Para alguns, a crise é um elemento constitutivo, continuamente presente na socialização capitalista (HIRSCH, 2007).

    Poderíamos dizer que a perspectiva que propõe entendermos o capitalismo, ou as formações sociais capitalistas, como sistemas sociais sempre em crise--ou sempre "a ponto de ruir"--refere-se a algo fundamental e, inclusive, preciso: o modo de produção capitalista, a socialização capitalista, requer constante reprodução no sentido de fazer de novo, rearticular seu funcionamento, em razão de seu caráter contraditório. Crises, portanto, fazem parte desse fazer-se "antagónico". Há no vínculo entre elementos que buscam, ao mesmo tempo, integração e fragmentação, desenvolvimento e destruição do sistema, um processo de permanente interação que demanda, porque pressupõe, conflitos. Tanto o Estado quanto o mercado são, porque precisam ser sempre...

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