O direito à orientação sexual como decorrência do direito ao livre desenvolvimento da personalidade

AutorJoyceane Bezerra de Menezes; Cecília Barroso de Oliveira
CargoDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
Páginas106-125

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Introdução

A cada três dias o Brasil registra um homicídio por razões homofóbicas.12 Em 2007, segundo o Relatório Anual realizado pelo Grupo "Gay" da Bahia (GGB), entidade de utilidade pública municipal e estadual, 122 homossexuais e travestis foram assassinados no país em razão de sua orientação sexual, 30% (trinta por cento) a mais que ano anterior. A estatística dá ao país o lugar de campeão mundial neste tipo de crime, seguido pelo México, com 35 (trinta e cinco) homicídios por ano, e Estados Unidos com 25 (vinte e cinco).

Uma pesquisa institucional promovida pela Associação da Parada do Orgulho Gay GLBT, Universidade Estadual de Campinas, Universidade de São Paulo, Universidade Cândido Mendes e Universidade Estadual do Rio de Janeiro evidenciou que 65,7% dos entrevistados já tinham sido alvo de agressões e discriminações em virtude de sua orientação sexual (CARRARA, 2006, p. 39).

Por outro lado, o Brasil sedia anualmente a maior manifestação de orgulho gay do mundo - a Parada gay -, segundo maior evento de atração de turistas à cidade de São Paulo, ficando atrás apenas do Grande Prêmio de Fórmula 1.

Se esta é uma realidade sociológica paradoxal e difícil de ser compreendida, o mesmo se verifica no tratamento dado pelo Estado aos homossexuais, pois ao mesmo tempo em que este institui programas como o "Brasil sem homofobia", deixa de conferir direitos a pessoas tão somente em razão da sua orientação sexual.

Poder-se-ia argumentar que, se inexiste lei impedindo as pessoas de serem Page 107 homossexuais e que sendo o Brasil um país igualitário, democrático e pluralista, não há que se falar em discriminação. Essa afirmativa deveria mesmo ser verdadeira, entretanto, não é exatamente isso que se observa.

É certo que o Estado não impede explicitamente que as pessoas tenham a identidade sexual que desejem e que sigam a orientação sexual que quiserem, no entanto o faz implicitamente ao deixar de reconhecer direitos decorrentes das relações homossexuais, tais como: alimentos, sucessão, adoção conjunta, partilha de bens, concessão de visto permanente a companheiro estrangeiro, concessão de benefícios decorrentes do reconhecimento de dependência em plano de saúde ou no Imposto de Renda, entre outros.

Face ao exposto, este trabalho pretende analisar as seguintes indagações: o ordenamento jurídico brasileiro concede à pessoa o direito à liberdade de orientação sexual? Existe liberdade de identidade sexual sem liberdade de orientação sexual? O fato de não existir regra expressa prevendo o direito à identidade sexual e o direito à liberdade de orientação sexual como direitos de personalidade impede as pessoas de serem assim caracterizados? No caso de uma resposta positiva à pergunta anterior, qual seria a vantagem de tal enquadramento?

1 Direitos de personalidade ou cláusula geral de tutela da pessoa?

A personalidade é uma estrutura complexa que comporta um sentido polissêmico, especialmente se consideradas as perspectivas de diferentes áreas do conhecimento. Para Freud, a personalidade é composta de três grandes sistemas: o id, o ego e o super ego. O id é o sistema original, nele encontram-se os instintos e tudo o que foi herdado psicologicamente; o ego busca o equilíbrio, decide quais os instintos que devem ser satisfeitos, quais ações devem ser realizadas e quais direções devem ser tomadas; por fim, o super ego é o representante interno dos valores sociais, que age segundo um sistema de recompensas e castigos, estabelecido por parâmetros morais da sociedade (SOUSA, 1995, p. 110).

Em uma acepção comum, a personalidade é a maneira de ser da pessoa. "A organização mais ou menos estável, que a pessoa imprime à multiplicidade de Page 108 relações que a constituem" (GROENINGA, 2006, p. 446). Segundo a autora, a personalidade é construída pela combinação de fatores hereditários e constitucionais e ainda pelas experiências passadas e presentes que, no desenlace contínuo, assumem uma dimensão dinâmica do ser e do vir a ser.

A personalidade assume, portanto, um caráter dinâmico. O homem é capaz de mudar, aperfeiçoar e adaptar constantemente traços de sua personalidade e é exatamente nessa possibilidade de autodeterminação, fruto do exercício de sua autonomia, que ele se afirma como ser individualizado e singular. Os homens são iguais por serem membros da mesma espécie, mas também se tornam únicos pelos caracteres individuais que possuem e que adquirem. O mapa genético, aliado à soma de seus valores e experiências individuais, torna cada homem irrepetível, porém jamais estático. A realidade circundante do indivíduo lhe ressignifica e contribui reestruturação de sua personalidade.

Sob o aspecto jurídico, a personalidade não pode ser enquadrada em modelos previamente fixados, do contrário se ignoraria a irremediável ligação entre o direito e a vida, feita de sentimentos, fatos, circunstâncias e realidades outras que vão sempre existir, mesmo à revelia da lei. E mais que isso, desconheceria a individualidade, a autonomia do homem e a sua capacidade de criar e viver situações que fogem aos desígnios estanques da legalidade.

Nesse sentido, oportunas as palavras de Capelo de Sousa (1995, p. 18):

Cada homem tem sua específica individualidade e autonomia, auto- propõe-se a objetivos pessoais, valora as situações em função de critérios próprios, adapta-se a si próprio e ao mundo e age e estrutura a sua personalidade com bases em complexas, diversificadas e muitas vezes antinômicas estruturas de ser e dever ser, como a sua herança biogenética, a educação recebida,as circunstancias sócio econômicas, os seus instintos, a sua afectividade, o seu temperamento, a sua racionalidade, a sua ética, o sue caráter as suas aspirações , os seus interesses. Finalmente, porque sociedade moderna, embora se revele indispensável na formação e realização da personalidade humana em domínios particularmente sensíveis, introduz-lhe também limitações, inibições, modelos modas e mitos, num óbvio processo de normalização... Todavia, o homem, real e concreto embora tenha em maior ou menor medida de assumir a sua máscara social, mantém pela sua liberdade e pelo seu espírito, a capacidade de abrir válvulas de escape no tecido social e aí expandir clareiras de autonomia e criatividade Page 109 individuais correspondentes a um território próprio e a uma personalidade humana singular.

Na realidade, o desafio que aqui se impõe está na tentativa de delimitação do conceito de personalidade para o efeito de analisar os direitos da personalidade e a sua extensão. Isto a fim de perscrutar se o direito à identidade sexual pode ser classificado como direito de personalidade e sobre as possíveis vantagens dessa eventual classificação.

Em curtas palavras, Pedro Vasconcelos (2006, p. 47) define a personalidade como "a qualidade de ser pessoa" e ressalta que é a pessoa, em sua singularidade, o "fundamento ontológico do direito".

A pessoa constitui o cerne e a finalidade de todo o ordenamento jurídico, pois de nada adiantaria a proteção estatal do patrimônio - ao "ter" - se não houvesse o amparo ao "ser" - à própria pessoa individualmente considerada. É exatamente a necessidade de proteção da pessoa, como ser autônomo, singular e irrepetível, que justifica a existência dos direitos de personalidade.

Verdadeiras projeções dos direitos humanos na esfera privada, os direitos de personalidade representavam, inicialmente, apenas um dever geral de abstenção, por meio do qual todos os demais sujeitos estavam impedidos de lesionar bens jurídicos pertinentes à esfera da personalidade do respectivo titular (SARMENTO, 2004, p. 123).

A classificação dos chamados "direitos da personalidade" surgiu no final do século XIX e foi alvo de severas críticas, cujo argumento nuclear era a impossibilidade lógica da personalidade ser, a um só tempo, titular e objeto do direito. Para os adeptos da teoria que limita os direitos de personalidade aos previstos na lei, o objeto dos referidos direitos seria os diversos bens da personalidade e não a pessoa, em sentido contrário, os que concebem a existência de uma cláusula geral de tutela da personalidade e defendem que o bem da personalidade poderá ser resguardado ainda que não seja necessariamente configurado como uma realidade extrínseca à pessoa, pois "o bem da personalidade delimita a vantagem que é atribuída, sem que isso implique que precise ser configurado com uma realidade exterior ao sujeito." (VASCONCELOS, 2006, p. 43)

Defende Tepedino (2004, p. 27) que a personalidade deve ser encarada sob dois prismas distintos: como capacidade e, nesse sentido, ela é titular das relações Page 110 jurídicas, e como "conjunto de atributos inerentes e indispensáveis à condição humana", quando então os bens jurídicos em si mesmos serão objeto da tutela jurídica.

Convém partir da discussão doutrinária acerca da unicidade ou pluralidade dos direitos de personalidade, bem como de sua tipicidade ou atipicidade, pois se considerados apenas os direitos de personalidade típicos, não há que se albergar o referido direito à identidade sexual.

Sobre o tema divergem autores pluralistas e monistas. Os pluralistas consideram a existência de diversos direitos de personalidade e dividem-se entre aqueles que os entendem restritos ou não aos tipificados pelo ordenamento jurídico. Os monistas, por sua vez, defendem um "direito geral de personalidade", que inclui todos os bens e interesses jurídicos integrantes da personalidade, ainda que não expressamente previstos pelo legislador.

Para De Cupis (2008, p. 26), a pluralidade dos direitos de personalidade traduz-se nos seus vários interesses distintos - vida, integridade física, identidade...

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