Otaviano Augusto. O imperium populi. O império do Brasil

AutorRonaldo Rebello de Britto Poletti
CargoDiretor do Centro de Estudos de Direito Romano da Faculdade de Direito da Univesidade de Brasília
Páginas60-72

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1. O termo imperium não se identifica com regnum. Há uma nítida diferença em Roma entre monarquia, república e Império, não obstante os imperadores continuassem a referir-se, como o fez Justiniano, à coisa pública e à origem popular do poder.

O rei se sustentava1 na força do exército, que era o povo da cidade em guerra permanente. O cidadão desde sempre era um soldado. O poder tinha sua origem no povo. O rei e depois os magistrados recebiam o seu poder da lei e esta era votada pelo povo nas cúrias (Lex curiata de imperio). Era atribuição dos comícios por centúrias eleger os magistrados maiores. Os comícios por tribos elegiam os magistrados menores.

Com as repúblicas patrícia e patrícia-plebéia, o Império se distribuiu pelas magistraturas mais importantes e pelas instituições da cidade da plebe, posteriormente pelo povo romano.

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O fato desse poder imperial ser exercido pelas magistraturas e, mais tarde, pelo Príncipe, não retira o caráter popular do Império, considerando que as magistraturas eram, tecnicamente, a expressão do poder do povo.

O imperium somente sofria restrições se postas pelo próprio povo. Uma delas era a provocatio ad populum, como um recurso utilizado pelos cives contra os poderes coercitivos das magistraturas. De igual maneira, o ius intercessionis, a intercessio dos poderes negativos, possível tanto nas magistraturas patrícias (veto de um magistrado superior contra o ato de um collega minor ou de igual nível) como por força das instituições plebéias (o poder negativo do tribuno da plebe).

2. A idéia de imperium populi não é aceita por Mommsen, o qual rejeita o argumento de que aquele poder pertence ao povo para que este o transfira aos magistrados (D. 1.4.1. pr. Ulpiano. Quod principi placuit, legis habet vigorem: utpote quum lege Regia, quae de imperio eius lata est, populus ei et in eum omne suum imperium et potestatem conferat). Para Mommsen não se trata de um discurso técnico mas de uma especulação política. 2

Esse posicionamento de Mommsen – o de atribuir a expressão imperium populi, usada por Varro no De Língua Latina 5, 87 e por Augusto (Res Gestae): Aegyptum imperio populi Romani adjeci, no sentido localizado e restrito, talvez explique a sua teoria de não distinguir império de reino ou monarquia. Verifica-se que ele atribui a Júlio César não somente a ditadura temporária como uma nova monarquia. Quando César recebe o titulo de Imperator, já seria um rei, que vai derrotar os chefes republicanos: “O novo nome de Imperador, por outro lado, aparece, sob todos os ângulos, a expressão verdadeira que convém a esta nova monarquia.” 3

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Mommsen faz restrições à idéia do imperium populi e, sempre, usa a palavra Estado para designar a realidade política de Roma. Vê César como um ditador e seu sucessor como uma continuação que vai desaguar em um novo regime, ao qual não empresta a idéia de um principado decorrente do exercício das magistraturas republicanas.

Mommsen propicia uma teoria diferente do imperium populi. A origem do Império, a partir do principado, estaria mais na tradição monárquica. Não obstante, credita ao Império, difereciando-o do “imperio republicano”, a extensão a todos os territórios fora da Itália (imperium infinitum), a superioridade em relação a qualquer outro poder em face de uma colisão (imperium maius).

A teoria de Mommsen a respeito do principado consiste em reduzi-lo a uma diarquia: o poder dividido entre o príncipe e o senado, tal como na partilha das províncias.

3. Colocada a posição de Mommsen, resta dicutir o problema da ascensão de Otaviano Augusto e de seu significado, bem como da natureza da nova constituição, para verificar a existência de um liame entre o imperium, Otaviano Augusto, o novo regime e o povo. Sem, naturalmente, pretender refutar o grande historiador e romanista alemão, algumas obervações – penso – podem ser colocadas ao lado da sua rejeição do imperium populi.

Otaviano não aceita o título de rei, nem de ditador, mas pouco e pouco, vai assumindo as magistraturas e honras, acumulando-as: tribunicia potestas no ano 36 a. C., confirmada em 30 a. C., ano em que um plebiscito lhe reconhece o direito de administrar a justiça, e renovada em 23 a. C.; em 29, o Senado lhe confirma o título de imperator; princeps senatus (28), Augusto (27), imperium proconsulare (23), ius edicendi e o cura legum et morum (19), Sumo Pontífice (12), Pai da Pátria (2).

O tribuno exercia a intercessio que lhe dava poderes iguais ou superiores aos dos magistrados, mas tinha apenas caráter negativo, uma espécie de veto. Não podia, portanto, ficar sujeito à autoridade dos magistrados, cujos atos ele podia vetar. Daí a sua inviolabilidade sacrosancta. Tal circunstância reforça, ainda, a teoria da origem popular do poder.

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A potestas tribunicia tornou-se em Roma o poder mais elevado, pois não se inclinava diante de outro poder e todos os outros poderes se inclinavam diante dela. A potestas tribunicia de Otaviano não tinha os limites temporais e espaciais dos tribunos da plebe. Rousseau lembra, referindo-se ao tribuno da plebe, que ele nada podia fazer, mas tudo podia impedir pela intercessio e que, sem distinguir-se pela toga patrícia ou outra qualquer vestimenta, era reverenciado pelos patrícios. Mais sagrado e mais reverenciado, como defensor das leis, do que o príncipe que as executa e o soberano que as dá. Foi o que se viu em Roma, quando aqueles patrícios orgulhosos, que sempre desprezaram todo o povo, se sentiram forçados a curvar-se diante de um mero funcionário do povo que não tinha nem auspícios nem jurisdição. 4

A questão, no fundo, é saber se houve um Império do Príncipe ou, na verdade, um imperium populi.

Em 13 de janeiro, Otaviano, em sessão solene do Senado, declara a sua intenção de renunciar aos poderes de que fora investido como triúviro e como cônsul. Ele devolve ao Senado e ao povo aqueles poderes, alegando haver restaurado a República. Na verdade, ele pretende credenciar-se mais, no fundo como tribuno. Ele aceita o título de Augusto (27 a. C.) e em 23 a. C., o poder imperial vai coincidir com a renovação final dos poderes tribunícios.

Res publica ex sua potestate in arbitrium senatus populuque Romani.

Nesse momento, posterior à renúncia, da qual ele sai fortalecido, Otaviano inaugura institucionalmente o novo regime: o principado. Regime autocrático, a que se chegou por intermédio das instituições republicanas. A superação dessas, com a influência de todos os aspectos da vida romana, não deve afastar a origem popular da nova Constituição. Afinal, Otaviano Augusto tinha sido triúnviro republicano, cônsul, tribuno do povo, Imperador por ovação do povo armado, a ele se aplica, por todos osPage 64motivos o texto do Digesto: por que o povo transferiu ao príncipe todo o seu poder e magestade, aquilo que agradar a ele tem força de lei.

O principado não parece justificar qualquer alteração na explicação sobre o poder e a autoridade em Roma. Nas palavras de Cícero, a autoridade estava no Senado e o poder no povo. Cum potestas in populo auctoritas in Senatus sit. Ao Senado incumbia zelar pela continuidade da fundação de Roma. Otaviano Augusto buscou o poder no povo e a autoridade no Senado, onde era o primeiro. A rima é evidente entre Otaviano, o novo fundador, o novo Rômulo, e Virgílio, o poeta da história de Roma, da sua fundação e destino. No âmbito da política romana está a convicção do caráter sagrado da fundação, obrigatória para todas as gerações futuras. A política significava preservar a fundação da cidade de Roma.” 5

A palavra e conceito de autoridade fazem sentido nesse contexto. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, ‘aumentar’, e aquilo que a autoridade ou os da...

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