Tempo, direito e narrativa: outra abordagem do processo jurisdicional e do conflito social

AutorFabiana Marion Spengler
Páginas56-64

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Introdução

Tempo e Direito relacionam-se com a sociedade, pois não existe tempo fora da história, uma vez que esses três elementos não podem ser isolados, tratando-se de uma instituição imaginária, na qual o tempo constrói e é construído, institui e é instituído. 1Sendo o Direito uma instituição temporal, torna-se importante que a norma jurídica implemente um tempo próprio, carregado de sentido instituinte. O tempo do processo poderá dar uma boa aproximação disso, uma vez que se encontra separado da vida real e ligado a prescrições rituais, o que permite que o julgamento desenvolva os seus efeitos jurídicos e sociais.

Por outro lado, observa-se que o tempo instituído socialmente apresenta uma série de características, dentre elas a possibilidade de demarcar espaços de poder, muitas vezes pouco democráticos (como aqueles espaços de poder/sujeição determinados pela máquina no mundo do trabalho), nos quais os conflitos acontecem e são submetidos ao Estado que, para administrálos, lança mão de regras cuja temporalidade se encontra ultrapassada. Conseqüentemente, adaptar o texto às circunstâncias variáveis, submetê-lo regularmente à avaliação, enriquecê-lo com previsões jurisprudenciais e doutrinais, todas essas formas de "requestionamento" são perfeitamente legítimas. Nesse contexto, vislumbra-se a falta de certeza de que a mutabilidade legal contemporânea derive sempre desse desejo de afinar as promessas, na maioria dos casos ela explica a ação desinstituinte dos interesses particulares e pela difi culdade de decidir em regimes destroçados pelas forças centrífugas dos lobbies. As conseqüências se multiplicam: "observa-se uma aceleração caótica da produção normativa e constata-se que certas legislações adotadas não encontram consenso na sua comunidade." (OST, 1999, p. 319-320).

Observa-se, então, a constituição de dois paradoxos: por um lado, se a instituição do Direito positivado e de todo o seu conjunto de rituais tem por objetivo a segurança e a certeza jurídicas, por outro lado, toda a temporalidade que se absolutiza é virtualmente desinstituinte. Conseqüentemente, nossas representações mundanas são atingidas pela relatividade e as certezas são abaladas. O caos se torna a regra.

O desafio que novas mediações político-científi cas precisam enfrentar é o de que, longe de se apoiar em previsões futuras, em conhecimentos garantidos, valores estáveis, elas devem "decidir em situações de indecidibilidade e orientando um contexto de incerteza, preparando o futuro num mundo de falibilidade agora reconhecido". Assim, inclusive no campo da cooperação social, a indecidibilidade das intenções de uns e outros não impede que as declarações em forma de promessa se revelem necessárias para relançar incessantemente comunicações e convenções. Nestes termos, com a chegada da democracia, o "indecidível entra no campo do político da mesma forma que o requestionamento se instala no centro de todos os dispositivos do poder." (OST, 1999, p. 331-332).

Neste artigo, o que se pretende é discutir o tempo a partir de uma concepção que o determine como algo que seja "a sucessão contínua de instantes nos quais se desenvolvem eventos e variações das coisas." (ROCHA, 2005, p. 800). Utilizar-se-á como fi o condutor da discussão (ainda que não o único) a obra de François Ost, especialmente "O tempo do direito", além de outros autores cuja discussão permeia tais textos ou partilham dos mesmos posicionamentos.

Desse modo, primeiramente serão abordadas as questões inerentes ao tempo do processo e seus rituais como tempos contínuos, porém não ordinários, que muitas vezes se traduzem na expressão "morosidade". Nesse sentido, a Emenda Constitucional brasileira nº 45/2004 (EC/45) será abordada, especialmente no que tange à discussão quanto ao tempo processual, uma vez que prevê a razoável duração do processo, seja no âmbito administrativo ou judicial, como meio de alcançar uma justiça mais célere. A discussão permeia a prestação jurisdicional, observando que a aceleração quantitativa nem sempre significa a melhoria qualitativa2.

Então, passado, presente e futuro, sociedade e processo serão temporalidades/categorias revisitadas nesse contexto, uma vez que se identificam com a substância originária do Direito e com a substância íntima do homem. Levando em consideração que "sem a temporalidade, o direito careceria de significado" (CARNELLI, 1952, p.188), esse é, pois, o artigo que agora se apresenta. Page 57

2 Processo e rito: uma temporalidade recriada

Para discutir as relações entre o tempo e o processo, é necessário recordar que o tempo do processo não é um tempo ordinário. Da mesma forma que o espaço judiciário reconstrói, por oposição ao abandono da sociedade, um interior que encarna a ordem absoluta, o tempo do processo interrompe o escoamento linear do tempo cotidiano. "O primeiro insinua-se neste como uma ação temporária que, dada a sua ordem e a sua regularidade, compensa as lacunas do tempo profano que se ritualiza para tornar-se processual." (GARAPON, 1997, p. 53).

Antes mesmo de existirem leis, juízes e palácios de justiça, havia um ritual. Esse ritual poderia ser religioso ou pagão, mas era consenso entre seus praticantes e seguidores3. Nestes termos, o que é um processo? "Ele é, inicialmente, um ritual e justamente por isso carrega consigo um repertório de palavras, gestos, fórmulas, discursos, de tempos e locais consagrados, destinados justamente a acolher o conflito". Primitivamente, a autoridade não era necessariamente um juiz, poderia ser o sacerdote ou o líder de um povo, mas de uma coisa não se abria mão: era necessário um código, uma fórmula (escrita ou não) de tratar o conflito, consensuada entre todos os integrantes do grupo, ou seja, institucionalizada (GARAPON, 1997, p. 25).

Essa forma era o ritual, o código. Não é por acaso que ainda usamos a palavra rito para definir o procedimento judicial (rito ordinário, sumário...). O uso do termo rito não é um mero acaso, uma vez que se trata de uma prática social que serve para governar o sentido da complexidade das coisas. O rito é a resposta para a incerteza4, condimento da angústia do não previsível, é controle, é tanta coisa, mas é sobretudo prática social5. Assim, o processo é construído em torno da lógica ritual, não substituível por nenhuma outra linguagem, exclusivamente em função de uma coação a decidir6. Assim, não todas as provas, mas também aquelas tecnologicamente mais relevantes poderiam ser admitidas, e nem todos os tempos seriam consentidos, senão dentro do código lingüístico regulado pelo Direito (RESTA, 2005).

Integrado nessas marcas rituais do tempo, o processo desenrola-se de uma assentada: representa-se até ao fim. Durante o período em que se desenvolve, apresenta avanços e recuos, peripécias, uma alternância de esperança e de pessimismo e, quando o fim se aproxima, a tensão. O processo é uma revolução completa. É por isso que se pode afirmar que a temporalidade processual não encontra possibilidade de reprodução. Tudo isso se deve, efetivamente, ao princípio da autoridade da coisa julgada que proíbe que a mesma jurisdição volte a ocupar-se de um mesmo caso previamente julgado por ela. Não reprodutível, o tempo do processo é, pois, e de igual modo, um tempo único (GARAPON, 1997).

É possível afirmar que o tempo do processo não resulta, entretanto, unicamente das regras processuais, pois o processo deve regular um litígio. Assim, a matéria litigiosa impõe o ritmo dos procedimentos. Seu estudo mostrou que o tempo é evolutivo e não se reduz ao momento da demanda na justiça. A matéria litigiosa é uma matéria viva que não pode se solidifi car no início do processo. O procedimento deve, assim, integrar as evoluções do litígio que resultam da atividade das partes, do juiz ou, ainda, de uma mudança de legislação7.

Portanto, o processo do qual tanto se fala e sobre o qual tanto se litiga não pode ser considerado outra coisa senão um lugar, único, onde se realizam duas exigências diferentes: a primeira é a busca pela verdade em uma história que uma lei prevê como delito/ilícito; a segunda é a garantia que o acusado/requerido possa se defender da acusação que lhe é feita. Ambas existem uma em função da outra, e não uma contra a outra e, juntas, entre elas, constitui-se o critério fundamental de legitimação da jurisdição (RESTA, 2006).

Por fim, o tempo do processo é um tempo contínuo, possuindo um começo e um fi m8. Vivese até o fim. Além disso, avista-se a temporalidade processual como um procedimento ordenado de modo que cada um possui o seu lugar e cada coisa acontece a seu tempo: é essa a ordem do ritual judiciário. Todo juiz dá uma certa liberdade para adequar essa ordem às especificidades do processo9, prerrogativa que não é atribuída às partes, por exemplo. Ainda, observa-se que o tempo é muito mais "longo" para as partes (especialmente o acusado) do que para os profissionais da justiça. Muitas vezes, ele (o acusado) esperou longamente para que o tempo "passasse" (GARAPON, 1997, p. 61-62). Page 58

À exceção dos casos flagrantes, o processo não decorre em tempo real, nele o tempo é recriado10. A vida social não pode ser reparada aos bocados, ela pede para ser regenerada: é esse o sentido do tempo judiciário. Essa recriação da ordem social não consiste numa simples representação e, nesse contexto, o ritual permite também que a sociedade participe nessa criação. Aquilo que se representa é um drama, ou seja, uma ação, algo que se está para fazer, algo que se faz, algo sobre o qual é possível agir. Observa-se que o tempo da ritualidade judiciária evoca o tempo do Direito. Assim como o tempo judiciário, o Direito, ao assimilar textos...

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