Pandemias, Direito e Judicializa

AutorVentura, Deisy de Freitas Lima

A pandemia de Covid-19 ensejou, e continua ensejando, uma extraordinária profusão de normas ao redor do mundo, tanto no âmbito nacional, como no regional e local--dos estados, das cidades e distritos, e até de condomínios e escolas. São milhares de novos instrumentos normativos, promulgados especialmente em resposta à pandemia, como a Lei 13.979/2020 do Brasil, ou o Coronavirus Act 2020 do Reino Unido, e de alterações de instrumentos já existentes, como a reforma do Public Health Ordinance 1940 em Israel, com relatórios extensos sobre as normas adotadas em quase 60 países (1). Tais normas conferiram a instituições e agentes públicos, e também privados, largos poderes de interferência na vida da população em geral, de grupos específicos e de indivíduos, não apenas impactando significativamente seu bem-estar, mas também limitando direitos fundamentais como as liberdades de ir e vir, de reunião, de protesto, entre outros, em numerosos Estados.

Não surpreende que uma alteração da ordem normativa tão abrupta e de tal magnitude tenha gerado tantos dissensos, além de conflitos sociais e políticos, e que parte deles tenha chegado ao judiciário, dando mais combustível ao fenómeno da judicialização, que já era crescente em várias partes do mundo (2), e especialmente no Brasil.

Em agosto de 2021, o painel de ações relacionadas à Covid-19 do Supremo Tribunal Federal (STF) conta mais de 9 mil processos recebidos e cerca de 12 mil decisões emanadas da Suprema Corte. Nas demais esferas jurisdicionais, estimase a existência de dezenas de milhares de ações.

Desde a época em que recebemos o honroso convite da equipe editorial da Revista Direito e Práxis para a organização deste dossiê, acompanhamos com perplexidade a formação de uma jurisprudência vasta, fragmentada e complexa sobre a Covid-19 nos tribunais brasileiros, o que explica este título: Pandemia, Direito e Judicialização. Trata-se de um tema caro a esta excelente revista, que sobre ele já editou três dossiês temáticos: 10 Anos da Reforma do Sistema de Justiça no Brasil (2015), A judicialização dos conflitos urbano-ambientais na América Latina (2016) e Supremo Tribunal e questões de gênero e sexualidade (2020).

A chamada de artigos para este dossiê, que circulou em julho de 2020, estimulava abordagens críticas capazes de favorecer a compreensão do papel do Direito na resposta estatal e social às pandemias, e igualmente o impacto das pandemias sobre o Direito em setores, populações ou espaços específicos.

Em setembro de 2020, recebemos propostas instigantes cuja transformação em artigos tivemos o prazer de acompanhar, interagindo com os autores por meio de reuniões, mensagens e sugestões em diferentes versões.

Um ano depois, oferecemos ao público os resultados de pesquisas inéditas, inclusive frutos de pesquisas empíricas, bem como reflexões e contribuições originais à área de conhecimento, que avançam no sentido de avaliar o impacto da pandemia sobre as liberdades civis, os direitos econômicos e sociais, as desigualdades e a democracia.

Em sua contribuição para esse volume ("Uma conjuntura crítica perdida: a COVID-19 nas prisões brasileiras"), Maíra Machado e Natália Vasconcelos utilizam a chave de análise das "conjunturas críticas" desenvolvida pela corrente do neoinstitucionalismo histórico para analisar o comportamento do judiciário brasileiro em relação aos direitos dos presos durante a pandemia. As autoras tomam a pandemia como um exemplo de "condição permissiva", isto é, uma janela de oportunidade apresentada por um evento exógeno para uma mudança de atitude em direção ao maior respeito aos direitos humanos dos presos, historicamente negligenciados no Brasil. Apoiando-se em estudo empírico realizado com 6.771 habeas corpus decididos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo nos dois primeiros meses de pandemia, concluem que a oportunidade não foi aproveitada, a despeito dos sinais iniciais positivos representados pela Recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aconselhando medidas de desencarceramento da população com maior risco de adquirir Covid-19 nas precárias e superlotadas prisões brasileiras.

Na hipótese das autoras, isso se deve a obstáculos arraigados de natureza cultural de nosso sistema jurídico penal, muito afeito à teoria da "racionalidade penal moderna", que vê a prisão como sanção por excelência e deixa de enxergar, seja o preso enquanto pessoa, seja as condições reais do encarceramento ("a prisão a viver" e a "prisão vivida"), que costumam ser muito piores do que a pena abstratamente considerada. Nem mesmo a grave crise sanitária ("condição permissiva") conseguiu se materializar em "conjuntura crítica". Para tanto, seria também necessário, segundo as autoras, a existência de "condições produtivas" (Soifer, 2012), isto é, uma mudança cultural mais profunda no modo de enxergar o direito penal, o que parece ainda distante apesar de movimentos importantes nesse sentido e de iniciativas pontuais como a Resolução 62 do CNJ.

Outra oportunidade perdida pelo judiciário brasileiro é vista no campo da proteção social, em particular das relações de trabalho. As restrições de circulação de pessoas ocorridas durante a pandemia aumentaram vertiginosamente o recurso às plataformas de entrega de alimentos e outros produtos, a ponto dos entregadores e das plataformas constituírem elementos icónicos deste período. Os vultosos lucros das empresas detentoras dos aplicativos e a consciência social dos enormes riscos inerentes à atividade de entrega durante uma crise sanitária, não impediu que, à luz do direito, estas relações de trabalho continuassem travestidas de "empreendedorismo". Graças ao artigo "Os trabalhadores das plataformas de entregas: essencialidade em tempos de Covid-19 e desproteção legislativa e judicial" - de Jonnas Esmeraldo Marques de Vasconcelos, Lawrence Estivalet de Mello e Murilo Carvalho Sampaio Oliveira - descobrimos que os tribunais superiores brasileiros ceifaram o correto entendimento das instâncias iniciais da justiça do trabalho, que reconheceram os entregadores como trabalhadores, e as empresas detentoras dos aplicativos como responsáveis pela centralização e organização da "conexão" entre trabalhadores e restaurantes, capazes de ditar os modos de funcionamento do trabalho de entregas e por isto devem responder pela proteção sanitária das pessoas envolvidas, sendo muito mais do que um canal de comunicação ou um mediador de negócios como pretendem ser.

Não obstante, as decisões dos tribunais superiores, como demonstram os autores, somam-se à atuação normativa do Poder Executivo (por exemplo, a exclusão dos entregadores, por veto presidencial, do rol de benefíciários do auxílio emergencial durante a pandemia) para conformar contratualidades espoliativas, fazer avançar a financeirização do trabalho e colaborar na implementação da agenda do genocídio da população negra, eis que a maior parte dos entregadores é constituída de pardos e pretos. Daí resulta que esses trabalhadores classificados como "essenciais" são expostos ao sacrifício de si mesmos e de suas famílias...

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