A paradoxal face "hipermoderna" do processo constitucional

AutorJânia Maria Lopes Saldanha; Cristiano Becker Isaia
Páginas5-26

"Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além".

Paulo Leminski

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Introdução

No momento em que este artigo é escrito, encontra-se em curso no Brasil o projeto de criação de um novo Código de Processo Civil. 1 2Parte dos homens ainda deposita valor no Direito e na sua codificação para reger a vida em sociedade e para assim minimamente "socializar" a insociável sociabilidade humana de que já falara Kant. Entretanto, não se trata mais de pensar o Direito apenas como expressão da vontade soberana dos Estados Nacionais. O mundo mudou. Page 6

Marcado por inumeráveis avatares, especialmente pelas duas grandes guerras, o cenário internacional a partir da segunda metade do Século XX foi paulatinamente ganhando cores múltiplas como expressão de abertura ao diálogo e no âmbito dos Estados a vinculação entre Constituições que assegurassem direitos fundamentais e democracia foi inexorável. Dentre eles, o acesso à Justiça que aqui deve ser compreendido como todo aquele que garante o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a fundamentação das decisões. Assim, a vigilância permanente e efetiva desse princípio transcende às jurisdições dos Estados e ganha fóruns internacionais a exigir uma mudança paradigmática do jurista para reconhecer no processo um direito constitucional fundamental que deve estar alinhado ao direito internacional. A relatividade histórica dos conceitos, como já lembrara Calamandrei, implica a necessária refundação da concepção de processo e jurisdição, dois pilares importantes do direito processual.

Entretanto, a maioria dos códigos de direito processual de países de tradição civil como a do Brasil foi elaborada sobre as bases do direito romano canónico e num tempo de menor complexidade das relações jurídicas, da troca de comunicação e de informação. Assim, a tão falada crise do processo e da jurisdição não nasceu no vazio, mas sim em um contexto histórico em que novos direitos foram surgindo em decorrência de fatores culturais, económicos, políticos e sociais que, somados, produziram novas categorias de demandas para as quais as estruturas processuais não podiam dar resposta satisfatória.

A emergência e o descumprimento dos direitos humanos de segunda, terceira e quarta gerações que surgiram no contexto do Estado Social e do Estado Democrático de Direito, forjaram paulatinamente uma reforma funcional dos sistemas processuais. Às novas categorias de direito material, agora para além das esferas privadas e individuais das pessoas, era necessário corresponder, no plano das demandas em Justiça, processo com procedimento adequado à sua satisfação do ponto de vista da hermenêutica constitucional do acesso à Justiça. Mas há de perquirir-se se essas experiências de reforma funcional foram acompanhadas de uma reforma estrutural relativa ao "ser" do processo e da jurisdição, uma vez não poderem mais ser lidos senão com as lentes do neoconstitucionalismo.

Nesse diapasão, neste texto pretende-se realizar uma abordagem reflexiva sobre o direito processual civil e a jurisdição no que diz respeito à possibilidade de que ambos estejam tomando feições aqui denominadas de "pós-modernas."

Como se sabe, o sentido que é atribuído a essa expressão é múltiplo. Tal multiplicidade existe na razão direta do olhar lançado sobre a contemporaneidade por aquele que tenta definir a expressão, já que o faz do lugar que ocupa. Assim, qualquer pretensão à uniformidade é vã. Economistas, filósofos, juristas, politólogos e sociólogos, entre outros, o que têm em comum ao tratar do tema é pensar a contemporaneidade não como algo dado, como uma totalidade, mas algo em construção, em cujo contexto, o cenário cultural, económico, filosófico, jurídico, político e social, dá mostras de fortalecer elementos que são modernos, por um lado e, por outro, romper com os mesmos, a partir da criação de novas formas de civilidade.

A pretensão de esgotar o tema segura e mimeticamente repetiria o mito de Sísifo. Sendo assim, escolhe-se tratar da pós-modernidade - e ligar essa reflexão ao campo do direito processual -, tomando-se como fonte de inspiração a obra de Jacques Chevallier. Mas nesse momento, a partir de apenas um olhar, isto é, de uma pós-modernidade que se faz hipermoderna e então retroalimenta elementos que nasceram com a modernidade e sofreram processo de lapidação ao longo de quase quatro séculos.

Como refere Nicola Picardi 2A, há uma vocação do tempo presente para a jurisdição, o que se expressa em âmbito mais global, uma vez serem os juízes os agentes mais ativos da chamada mundialização. 3 Houve, como é sabido, uma inversão das tendências. De uma posição secundária, a jurisdição passou à protagonista e o processo passou a ser o modo comum de resolução de setores inteiros como a família, os direitos sociais e a constitucionalidade das leis a demonstrar os desafios entre o ideal de querer viver em conjunto e as dificuldades da ação política. 4 A judicialização da política internalizou essa complexidade e pode ser considerada resultado de dois fatores importantes: primeiro, da fragilidade dos sistemas políticos e, segundo, do quadro de declínio da reação dos governos às demandas da cidadania, como refere Rosanvallon. 5

Entretanto, o fenómeno mais significativo produzido pela exacerbação do número de demandas é o descompasso entre o direito processual e a) a natureza das demandas; b) a internacionalização das relações jurídicas e do Direito e; c) a cultura da urgência, cujo traço marcante é a dinâmica permanente Page 7 de mudança e que demarca a dominação sobre extensas esferas da vida social, tudo somado a reivindicar, no plano internacional, harmonização de regras processuais em reforço às bases da cooperação jurisdicional e, no plano interno dos Estados, a necessidade de reformas processuais.

Por outro lado, a importância jurídico-político-social em analisar-se o processo e a jurisdição sob essa ótica centra-se na própria crise do Estado. A queda na confiança da atuação da jurisdição, como se percebe em pesquisas realizadas, 6 não deixa de ser expressão de uma crise maior que acomete o Estado num cenário rico de multiplicidades e que remete a uma crise mais genérica das instituições e dos valores produzidos no curso da modernidade no Ocidente.

Desse modo, pode-se pensar estar em curso no Brasil o surgimento de um direito processual pós-moderno 7, aqui analisado apenas com relação a apenas uma de suas faces: a hipermoderna. 8Para essa compreensão, analisa-se a relação circular entre pós-modernidade, neoliberalismo e hipermodernidade (Parte 1). Finaliza-se observando-se as reformas que prestigiam a quantidade em detrimento da qualidade em um processo marcadamente neoliberal (Parte 2).

Parte 1 A relação circular entre pós-modernidade, neoliberalismo e hipermodernidade: a propósito de uma jurisdição modelada

Haveria um ponto de coincidência entre a chamada pós-modernidade e o neoliberalismo? E se positiva a resposta, de qual pós-modernidade se está tratando? Poderia ser essa entendida como hipermodernidade? Almeja-se aqui demonstrar ao leitor justamente essa imbricação entre pós-modernidade - neoliberalismo - hipermodernidade.

A expressão pós-modernidade tem sido alvo de várias definições - e divergências - semânticas, como já referido. Árduo é o caminho para chegar à confluência entre as várias perspectivas adotadas. Seria uma superação temporal da modernidade ou sua compreensão transcende espaço e tempo para alojar-se no campo da pura reflexão?

Parece ser possível afirmar que a pós-modernidade não é uma nova era que se instala em oposição à modernidade. Há uma visão da pós-modernidade que se posiciona na lacuna entre ser moderno e algo já diferente, então, uma visão em paralaxe, 9 por permitir vislumbrar, como o fazem Agnes Heller e Ferenc Féher, 10 que a pós-modernidade é parasítica da modernidade, uma vez que vive e alimenta-se de suas conquistas e de seus dilemas. Seu ineditismo estaria apenas presente na capacidade de pensar seu próprio tempo.

Contudo, parece ter sido Lyotard 11, no início da década de 70 do século passado, o primeiro a fazer uso da expressão pós-modernismo, afirmando que a atitude pós-moderna é aquela que desconfia das metanarrativas 12 da modernidade, da busca do absoluto e da totalidade. Mas o embrião desse movimento de crítica à modernidade, sem que se fizesse uso do termo pós-modernidade, já se encontrava na Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, 13 escrita em 1969, ao afirmarem que o "esclarecimento" consiste no cálculo da eficácia e da técnica de profusão e difusão e tudo o que não se reduzisse a números não passaria de uma ilusão, daí a inevitabilidade da destruição dos deuses e das qualidades.

De outra parte, a ideia de modernidade reflexiva, pode-se dizer, a risco de errar, é uma variante da pós-modernidade e que implica a possibilidade de a modernidade olhar para si para si mesma e para seus vícios. Ela pode justamente ser compreendida no contexto sugerido por Adorno e Horkheimer, uma vez que a modernidade, surgida como emancipação da ordem estática pré-moderna, abriu possibilidades para a liberdade de expressão, para a democracia popular e para o desenvolvimento do livre mercado capitalista e acabou por voltar-se contra si mesma e transformou-se numa assombração. 14 Mas um autor como David Harvey 15 afirma que "uma das condições principais da pós-modernidade é o fato de ninguém poder ou dever discuti-la como condição histórico-geográfica", ou seja, o prefixo "pós" está desconectado de um sentido cronológico e implica que "os longos e sérios esforços da modernidade foram enganosos, foram empreendidos sob...

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