"O parecer de Kelsen sobre a Constituinte brasileira de 1933-1934"/"The Kelsen's work about Brazilian Constituent 1933-1934".

AutorSiqueira, Gustavo Silveira

Introducao

Este nao e o primeiro artigo que trata do parecer que Hans Kelsen fez sobre o decreto no 22.621 de 05 de Abril de 1933 (1), o regulamento da Assembleia Nacional Constituinte e a propria Assembleia brasileira de 1933/193 4 (2). Outros autores ja escreveram sobre o tema. Nenhum artigo, contudo, problematizou historicamente o texto da revista "Politica: revista de direito publico, legislacao social e economia" publicado em Janeiro de 1934, mas apenas o parecer de Kelsen recuperado posteriormente. Desta forma, a inovacao do artigo e uma reconstrucao nao apenas do parecer de Kelsen--ja conhecido no Brasil--mas tambem um resgate da revista, do contexto historico e juridico, do convite feito ao autor austriaco. Esses elementos ficam mais claros na analise do unico volume publicado pela revista e consultado diretamente a partir da versao localizada na Biblioteca Nacional na cidade do Rio de Janeiro, RJ.

Utilizando de fontes ainda nao exploradas no Brasil, inclusive da publicacao de 1934 encontrada na Biblioteca Nacional (3), procuro reconstruir o sistema legal que antecedeu e deu base ao parecer de Kelsen. Os trabalhos publicados anteriormente sobre o parecer, tambem nao problematizaram as respostas as mesmas perguntas que tambem foram dadas por Eusebio de Queiroz Lima. O debate sobre a Competencia da ANC era um debate que estava nas capas dos jornais da epoca e talvez fosse a grande discussao juridica do momento. Dai a elaboracao de uma revista que discutia a ANC e o convite a professores de renome nacional e internacional na epoca. Pretende-se, ao contextualizar o periodo em que o jurista austriaco escreveu, auxiliar na compreensao do parecer de Kelsen em um momento especifico da historia brasileira. Assim, sera tambem possivel analisar como este pode contribuir para projetos e discussoes sobre o constitucionalismo brasileiro nos dias de hoje. Da mesma forma o artigo ajuda a problematizar, nao apenas a recepcao da obra de Hans Kelsen na decada de 30, mas a importancia o autor ja tinha no Brasil neste periodo no pais.

  1. A discussao sobre a construcao legal da Constituinte

    Em um governo composto por diversos grupos sociais, muitas vezes contraditorios, Getulio Vargas sofreu pressoes internas para convocar uma constituinte (4). Ao mesmo tempo, em que sofria tambem pressoes para declarar uma ditadura e nao positivar nenhuma constituicao (5). Getulio Vargas tentava equilibrar-se na tensao que existia dentro do governo e dentre os seus ministros. (6) Entretanto, atendendo a uma parte destas pressoes politico-sociais, no dia 14 de Maio de 1932, Getulio Vargas, ainda como presidente provisorio, publicou o decreto no 21.402, "criando uma comissao para elaborar o anteprojeto de Constituicao e marcando as eleicoes da Assembleia Nacional Constituinte para 03 de Maio de 1933." (7)

    Cerca de dois meses apos o decreto que convocou a Comissao e marcou as eleicoes, em Julho de 1932, explode no Estado de Sao Paulo um movimento armado de insatisfacao com o Governo Vargas. O movimento que tambem refletia o grande descontentamento com o governo e com os interventores nomeados para Sao Paulo usa como bandeira a "Constitucionalizacao do Pais." Sem o apoio de outros estados, contudo, os paulistas se renderam em Outubro de 1932 e o movimento, apesar da derrota, ficou conhecido como "Revolucao Constitucionalista".

    Um mes apos a rendicao, o governo provisorio publicou o Decreto no 22.040, que regulamentava as atividades da comissao que elaboraria o anteprojeto de constituicao e que seria presidida pelo Ministro da Justica. (8)

    O movimento paulista nao alterou a data das eleicoes previstas por Vargas antes do levante. No dia 26 de Abril de 1933, o decreto no 22.671 declarou feriado nacional o dia 03 de Maio de 1933, data em que aconteceram as eleicoes para a Assembleia Nacional constituinte, justamente como previsto pelo decreto no 21.402 de Maio de 1932.

    Em 05 de abril de 1933 o governo publicou o decreto no 22.621 que dispoe sobre a convocacao da Assembleia Nacional Constituinte e aprova seu regimento.

    No preambulo do decreto ha uma exposicao de motivos:

    "Prosseguindo na acao preparatoria da volta do pais ao regime constitucional, o Governo sente-se no dever de determinar varias providencias, referentes: a convocacao da Assembleia Nacional Constituinte; ao numero de deputados que devem compo-la; as garantias e as imunidades dos mesmos" (9) Ao usar o verbo "prosseguir", o governo tenta dar a impressao de que a constitucionalizacao do pais sempre foi a intencao do movimento de 1930. Pelo contrario, a possibilidade de constitucionalizar o pais nao era um desejo claro do governo provisorio. Existiam grupos no governo que preferiam outros projetos para o Brasil: ditadura, retorno da Constituicao de 1891, etc.. (10)

    O decreto (11) regulou os trabalhos da ANC e criou o seu regimento. O regimento, publicado posteriormente, estabelecia os procedimentos da ANC e prescrevia que a mesma deveria eleger o presidente da Republica e encerrar seus trabalhos apos a conclusao da Constituicao. (12)

    O regimento tambem previa a elaboracao de uma constituicao federal, as formas e os procedimentos de votacao, as comissoes internas, as inviolabilidades dos deputados, o poder de convocar ministros, os horarios de funcionamento, as sessoes secretas--que podiam existir--e proibia a comissao de discutir novas leis. A ANC deveria elaborar uma constituicao, eleger o presidente e aprovar os atos do governo provisorio.

  2. Kelsen e os pareceres sobre a Constituinte de 1933-1934

    Em 1932 o nome de Kelsen ja era citado no Brasil como um dos elaboradores da Constituicao da Austria (13) e um dos teoricos sobre o Estado de Direito. (14) Gustavo Capanema, por exemplo, advogado e importante politico do momento, Presidente do Estado de Minas Gerais em 1933, Ministro da Educacao em 1934, cita, em 1932, Kelsen em varios artigos publicados em Jornais. (15)

    No inicio de 1933, nos debates da comissao que elaboracao o anteprojeto da Constituinte, Kelsen chegou a ser citado como "o maior constitucionalista contemporaneo." (16)

    Seu nome e suas ideias foram citados em varios momentos na propria Assembleia Constituinte de 1933/34. (17) Alem de ter seu parecer, objeto do presente artigo, lido nos debates, seu nome aparece nas discussoes sobre a criacao de uma corte constitucional (18), sobre o presidencialismo (19) e nos debates sobre o monismo juridico, (20) o autor e referencia de alguns dos constituintes brasileiros. O que mostra que a recepcao de Kelsen no Brasil ja vinha ocorrendo muito antes da expansao mais evidente dos anos 70. Na decada de 1930, Hans Kelsen ja era uma grande referencia dos debates juridicos nacionais.

    No ano de 1933, apos o decreto no 22.621, a revista "Politica: revista de direito publico, legislacao social e economia" publicada no Rio de Janeiro e que teria seu unico volume lancado em Janeiro de 1934, convida Hans Kelsen para escrever um artigo sobre o tema. Acredito que, pela apresentacao feita do autor pela revista, o convite tenha sido feito apenas pela sua projecao internacional e nao por outros motivos. Kelsen, mantinha relacoes academicas e troca de correspondencias com Roman Poznanski, secretario geral do Instituto brasileiro de Direito publico e editor da revista. Provavelmente foi ele, via Instituto, que fez o convite ao professor austriaco. (21)

    Nao foi possivel encontrar, ademais, nenhuma prova de que Kelsen tenha sido contratado pelo Governo Provisorio ou que tenha recebido pelo parecer. O debate sobre a Constituinte de 1933/34 era um dos principais temas nos jornais brasileiros naquele periodo e a publicacao de uma revista com tal tema, seria de importancia para o debate juridico. A consulta de uma personalidade internacional e ja referencia no Brasil, com certeza, daria uma grande relevancia a revista, que acabara de nascer e convidava varios especialistas para debaterem textos conexos a constitucionalizacao do pais. (22) Por outro lado, tambem nao foi possivel descobrir por quais motivos da Revista foi publicada apenas uma vez. (23) Os editores tiveram carreiras de sucesso, mas nao foi possivel descobrir, pelo material pesquisa, o motivo da revista encerrar-se no seu primeiro volume. (24)

    A revista, dirigida por Flavio da Silveira (25) e Roman Poznanski (26), dois advogados de renome nacional que sempre manifestavam-se nos jornais em questoes juridicas, enviou os quesitos que foram respondidos pelo professor, que nesta epoca, estava em Genebra.

    A apresentacao do autor, na capa do artigo, informa:

    "Hans Kelsen--antigo professor da Universidade de Viena, era catedratico da de Colonia, quando se viu obrigado a deixar a Alemanha em virtude dos ultimos acontecimentos politicos desenrolados nesse pais. Ocupando atualmente a catedra de Direito das Gentes no Instituto Universitario de Altos Estudos Internacionais em Genebra, resolvemos ouvir o ilustre cientista, e eis a resposta que, com rapidez, enviou aos quesitos por nos formulados." (27) (nosso destaque) O parecer de Kelsen foi datado de 14 de Outubro de 1933 e em Novembro de 1933, o parecer ja era citado nos debates da ANC. (28) Ou seja, mesmo antes da publicacao, o parecer ja circulava nos meios juridicos nacionais e foi mais uma das obras de Kelsen citada nos debates da Constituinte. (29)

    Em Dezembro de 1933 e o sumario da revista foi publicado em uma noticia do jornal "A Batalha". (30) O informe da publicacao, nao assinado, dizia que a revista era "de grande interesse para os estudiosos do direito, nao so por tratar de assuntos constitucionais, que ora ocupam a atencao dos brasileiros, como tambem por nela colaborarem as maiores mentalidades juridicas nacionais e estrangeiras." (31) O jornal "A Batalha", no periodo, tinha um perfil, de certa forma, liberal (32) e fazia uma certa exaltacao ao movimento de 1930, apesar de, em alguns momentos, ser critico do processo constituinte que estava em andamento. (33)

    A revista tambem convidou Eusebio de Queiroz Lima para responder os...

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