Participação do atingido por desastres na formação de teses jurídicas via Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas/Participation of the "affected person" in the formation of legal thesis via the Incident of Resolution of Repeated Demands.

AutorBergamaschi, André Luís

Introdução

"Logo no início, a Renova/Samarco começaram a falar de masterplan, dam break, stakeholders. Parecia que a gente falava com extraterrestre, porque não entendia "patavinas". A gente também não sabia o que significava impactado. E, depois do esclarecimento do promotor Guilherme [Meneghin, Promotor], decidimos não aceitar esse termo, porque nós fomos atingidos até a alma". (grifos no original) (1) Ao lado da precisão conceitual almejada pelo direito convive a importância simbólica de certos termos, que geralmente demoram ou custam a ser absorvidos pelos discursos jurídicos. Os significados socialmente atribuídos, por outro lado, são apropriados com veemência por diferentes sujeitos e grupos, que se encarregam de escancarar as disputas conceituais. Diferentes sentidos e interpretações reverberam na ampliação ou restrição de direitos; daí porque o direito não consegue se esvair desse importante debate terminológico.

É o que se verifica, no contexto de desastres socioambientais, com relação ao uso do termo "atingido/a" ou pessoa atingida, utilizado por movimentos sociais relacionados a barragens e já estudado no contexto de impactos e danos ambientais pré e pós-desastres. Sem pretender qualquer esgotamento do significado desse conceito, é certo que sua compreensão está relacionada com o reconhecimento da centralidade daqueles que sofreram as consequências de atos de empresas e/ou do Estado, que devem não só ser escutados, mas efetivamente protagonizar qualquer medida preventiva ou reparatória relacionada a esses atos.

A despeito da clara relação entre a noção de pessoa atingida e os processos de solução de conflitos instaurados no contexto de desastres socioambientais, é nítido que o processo civil ainda está alheio a esse conceito, ao trabalhar essencialmente com categorias jurídicas calcadas nas noções de legitimidade processual e interesse jurídico, muito próprias da perspectiva individualista processual. Mesmo no âmbito do processo coletivo, vige o paradigma da substituição processual e da legitimação extraordinária, com pouca ou quase nenhuma abertura para a participação direta de sujeitos atingidos pelo evento ou desastre objeto da ação judicial. Ainda que haja uma tendência pela ampliação do conceito de contraditório e participação, as vias previstas na lei processual continuam restritas e não se mostram coerentes com a complexidade dos conflitos e desastres socioambientais.

O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), ao invés de fortalecer vias participativas, assumiu uma tendência já verificada na Reforma do Judiciário de se enfatizar instrumentos de julgamento por amostragem ou de consolidação de teses jurídicas em casos considerados repetitivos, ou seja, que veiculem as mesmas questões de direito e que se mostrem volumosos no acervo do Judiciário. Mantendo a lógica já introduzida em 2008 para julgamento de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) (2), o CPC/2015 regulamentou também o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), pelo qual os tribunais poderão firmar teses jurídicas a serem aplicadas a todos os processos individuais ou coletivos pendentes e futuros que versem sobre a mesma matéria (3).

Verifica-se que o IRDR, por tratar de casos considerados repetitivos, acaba por ser aplicável em casos de desastres socioeconômicos nos quais os/as atingidos/as venham a ajuizar ações individuais similares, que podem, afinal, questionar as mesmas questões de direito. É preciso questionar, portanto, se esse mecanismo processual tem capacidade para, de forma adequada, viabilizar a participação e o protagonismo dos/as atingidos/as, na medida em que a tese jurídica a ser firmada possa influir nas soluções a serem atribuídas individual ou coletivamente aos danos por estes sofridos. É preciso investigar também como essas vias processuais são utilizadas e quais as possibilidades e limites existentes para a participação dos atingidos protagonizarem e/ou influírem na consolidação de teses jurídicas.

A esse respeito, a hipótese aqui traçada é que o IRDR é um instrumento inadequado para julgamento de questões relacionadas a desastres socioambientais, dado que não permite a participação efetiva dos atingidos em seu procedimento decisório e possui vias participativas demasiadamente restritas e incompatíveis com a complexidade desses casos.

A metodologia adotada para investigação da pergunta e hipótese de pesquisa foi o estudo de caso, que se centrará nos IRDRs instaurados no contexto do desastre do Rio Doce no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e no Tribunal de Justiça do

Estado do Espírito Santo. Foram estudados documentos dos processos, em especial as decisões de admissibilidade da instauração e, quando houve, de julgamento do mérito dos incidentes, bem como informações atinentes ao andamento processual, a fim de se verificar como se deu a participação de atingidos e de seus representantes nos procedimentos. Considerando a importância da legitimação social dos mecanismos decisórios, serão estudados também relatos extraídos da mídia acerca da repercussão dessas decisões, privilegiando-se veículos permeáveis às manifestações de atingidos. Em suma, a análise será essencialmente documental e toda calcada em documentos de acesso público.

O Capítulo 1 discute os principais fatos do caso Rio Doce para contextualizar os incidentes e sua importância para os/as atingidos/as. No Capítulo 2, é discutida a participação e o contraditório no processo civil para, então, examinar as vias participativas previstas no âmbito do IRDR. Em seguida, o Capítulo 3, trata do conceito de atingido/a e procura relacioná-lo com a noção de interesse jurídico, examinando possibilidades de participação no âmbito do IRDR e suas limitações. O Capítulo 4 descreve os IRDRs analisados e as principais questões extraídas de sua tramitação e julgamento no tocante à participação e capacidade dos/as atingidos/as de influir no julgamento, bem como as repercussões das decisões proferidas para os procedimentos reparatórios. A conclusão, ao final, sintetiza os principais pontos traçados e oferece respostas à pergunta proposta.

  1. Contextualização: Sobre o caso Rio Doce

    1.1. Panorama do desastre e dos acordos para reparação

    Em 05.11.2015, no subdistrito de Bento Rodrigues, da cidade de Mariana/MG, duas barragens de armazenamento dos rejeitos da produção de minério de ferro pela empresa Samarco Mineração se romperam, causando o derramamento de rejeitos no leito do Rio Doce, atingindo mais de 45 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo. Já considerado o maior desastre tecnológico do Brasil, o derramamento dos rejeitos da mineradora deixou dezenove vítimas fatais e mais de 200 famílias desalojadas, que se viram forçadas a desocupar suas casas em busca de abrigo em cidades vizinhas. Houve, ainda, interrupção no fornecimento de água potável para inúmeras pessoas, além dos sérios e complexos impactos ambientais, econômicos e sociais aos municípios da região e ao Rio Doce.

    Diversas foram e vêm sendo as tratativas de composição extrajudicial entre o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, União, Estados e Municípios envolvidos. Há, ainda, múltiplas demandas individuais e coletivas ajuizadas pleiteando medidas reparatórias pelos danos sofridos, cuja extensão, causas e quantificação ainda são objeto de pesquisas e intensos debates.

    Em 30.11.2015, a União, conjuntamente com os estados de Minas Gerais e Espírito Santo e respectivos órgãos ambientais, ajuizou ação civil pública contra a Samarco, a Vale do Rio Doce e a BHP Billiton, estas últimas acionistas controladoras da primeira, pleiteando (i) a apresentação de um plano, pelas rés, de recuperação socioambiental e de recuperação socioeconômica; e (ii) provisão de capital para integral cumprimento dessas medidas (Processo n. 6975861.2015.4.01.3400, 12 Vara Federal de Belo Horizonte).

    Neste processo, foi celebrado acordo para cumprimento de plano de reparação a ser executado por fundação privada, por meio da adoção de programas socioambientais e socioeconômicos, incluindo-se infraestrutura, recuperação ambiental e providências relacionadas com a saúde, educação, cultura e lazer. Referido acordo, denominado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) foi submetido à homologação perante o Núcleo de Conciliação do Tribunal Regional Federal da 1a Região.

    Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, em procedimento de Reclamação instaurado pelo Ministério Público Federal (Reclamação no 31.935), suspendeu liminarmente a homologação, entendendo que ela desrespeitaria liminar de Conflito de Competência no 144.922, que determinava a suspensão de todos os processos até a decisão sobre o juízo competente. Nessa decisão, a Ministra Relatora Diva Malerbi também ressalta a problemática da falta de participação dos municípios atingidos, das instituições do sistema de justiça e, especialmente, dos próprios atingidos na transação, o que seria fundamental dada à complexidade do desastre (4) :

    (...) diante da extensão dos danos decorrentes do desastre ocorrido em Mariana/MG, seria rigorosamente recomendável o mais amplo debate para a solução negociada da controvérsia, por meio da realização de audiências públicas, com a participação dos cidadãos, da sociedade civil organizada, da comunidade científica e dos representantes dos interesses locais envolvidos, a exemplo das autoridades municipais (5). Vale destacar que, quando da prolação da decisão da Relatora, o STJ já havia definido, em acórdão, o juízo da 12 Vara Federal de Belo Horizonte como competente para tratativas, excetuadas aquelas que:

    envolvam aspectos estritamente humanos e econômicos da tragédia (tais como o ressarcimento patrimonial e moral de vítimas e familiares, combate a abuso de preços etc.) ou mesmo abastecimento de água potável que exija soluções peculiares ou locais, as quais poderão ser objeto de ações individuais ou coletivas (6). Paralelamente, o Ministério Público Federal...

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