O passado no banco dos réus: uma análise das decisões das Cortes Supremas argentina e brasileira sobre a validade das 'leis de impunidade'

AutorCarlos Artur Gallo
CargoDoutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral realizado na Universidade Complutense de Madri. Professor do Departamento de Sociologia e Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Contato: galloadv@gmail.com
Páginas360-395
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2019v18n41p360/
360360 – 395
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O passado no banco dos réus: uma
análise das decisões das Cortes
Supremas argentina e brasileira
sobre a validade das “leis
de impunidade”1
Carlos Artur Gallo2
Resumo
Este trabalho faz uma análise comparada de demandas que questionavam a validade de leis que
garantem e/ou garantiram a impunidade dos setores envolvidos com a repressão política praticada
durante as ditaduras de Segurança Nacional. Foram selecionados dois casos para comparação: o
“Caso Simón”, julgado em junho de 2005 pela Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN)
argentina, e a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, julgada em
abril de 2010 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. São comparadas as decisões e busca-se
identicar o que as explica, vericando sua conexão com as políticas de memória implementadas
em cada contexto.
Palavras-chave: Ditaduras de Segurança Nacional. Poder Judiciário. Políticas de memória.
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na AT14 – Poder Judicial, derechos humanos, política y
justicia, durante o “9º Congresso da Associação Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP)”, realizado
em julho de 2017, em Montevidéu – Uruguai.
2 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio douto-
ral realizado na Universidade Complutense de Madri. Professor do Departamento de Sociologia e Política e
do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Contato:
galloadv@gmail.com
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 18 - Nº 41 - Jan./Abr. de 2019
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Introdução
Entre as décadas de 1960 e 1970, auge da Guerra Fria, países do Cone
Sul (entre os quais o Brasil e a Argentina) passaram por golpes civis-milita-
res que deram início a uma série de ditaduras de Segurança Nacional. Ideo-
logicamente alinhadas à Doutrina de Segurança Nacional (DSN), estas
ditaduras foram responsáveis por um conjunto signicativo de violações
aos direitos humanos, tendo sido perseguidas, presas, torturadas, exiladas,
mortas e desaparecidas milhares de pessoas que foram consideradas inimi-
gas internas pelas Forças de Segurança (PADRÓS, 2008).
Semelhanças, no que tange ao tipo de regime autoritário, à parte, o
modo como as ditaduras de Segurança Nacional chegaram ao m nos paí-
ses mencionados foi marcado por diferenças importantes, fazendo com
que os processos de transição à democracia argentino e brasileiro fossem
classicados, por estudiosos do período, como sendo representantes de
dois modelos distintos3. Na Argentina, analistas classicaram o processo
transicional, ocorrido aproximadamente entre junho de 1982 e dezembro
de 1983, como sendo uma “transição por ruptura”, tendo em vista que
a saída das Forças Armadas das estruturas de poder ocorre de forma ace-
lerada e sem que estas tivessem capacidade de estipular os termos de sua
saída do controle do Poder Executivo, após uma grande crise gerada, entre
outros fatores, pelo fracasso econômico, pelo alcance e profundidade da
violência política e pelo fracasso na Guerra das Malvinas, conforme análi-
ses de: Munck e Le (1997); Novaro e Palermo (2003). No Brasil, ocorreu
uma “transição negociada” ou “pactada”, visto que é a própria coalizão
civil-militar no poder quem inicia e controla o processo transicional, que
se estenderia por quase 11 anos, entre 1974 e 1985, garantindo aos setores
que saíam de cena um conjunto de prerrogativas bastante signicativo,
conforme, entre outros, o estudo de Arturi (2001).
3 Os processos de transição à democracia que se seguiram ao iniciado em 1974, em Portugal, quando a
Revolução dos Cravos deu f‌im à ditadura do Estado Novo português, serviram de base para o estabelecimento
de uma agenda de pesquisas que, conhecida como “transitologia”, mobilizou acadêmicos e acadêmicas de
diversos países entre as décadas de 1970 e 1990. Os estudos mais importantes sobre os diferentes processos
de mudança de regime que ocorreram inicialmente no Sul da Europa e na América Latina e, depois, na África
e no Leste Europeu, foram organizados pelo cientista político argentino Guillermo O’Donnell em parceria
com Philippe Schmitter e Laurence Whitehead (O’DONNELL; SCHMITTER, 1988a; O’DONNELL; SCHMITTER,
WHITEHEAD, 1988b; O’DONNELL; SCHMITTER, WHITEHEAD, 1988c).
O passado no banco dos réus: uma análise das decisões das Cortes Supremas argentina e brasileira sobre a
validade das “leis de impunidade”| Carlos Artur Gallo
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Com o início dos processos de transição à democracia e o m das
ditaduras na região, uma série de demandas relacionadas aos crimes come-
tidos pelo aparato repressivo no período autoritário começaram a ganhar
fôlego nesses países, resultando nas mais diversas formas de enfrentamento
do tema por parte do estado e suas instituições, tais como: a criação de
organismos como uma Comissão da Verdade (algo que, no caso argenti-
no, ocorreu ainda em 1983, quando terminou a ditadura e Raúl Alfonsín
tomou posse como presidente e criou a Comissão Nacional sobre a De-
saparição de Pessoas (CONADEP), a implementação de políticas públi-
cas prevendo a concessão de indenizações às vítimas da repressão e/ou a
seus familiares (algo que, no caso brasileiro, começou a avançar a partir de
1995, com a edição da Lei nº 9.140), a construção de memoriais e espaços
de memória sobre o período, assim como a realização de julgamentos dos
responsáveis pelos crimes cometidos durante a vigência dos regimes de
exceção, entre outras medidas.
Autores alinhados à agenda de estudos transitológicos chegaram a de-
bater, em alguma medida, como os países que estavam saindo de um re-
gime autoritário e construindo as bases de um novo regime democrático
poderiam lidar com o saldo da repressão. O’Donnell e Schmitter (1988a,
por exemplo, nas primeiras conclusões do projeto “Transições do regime
autoritário”, mencionavam que o não enfrentamento do tema poderia ge-
rar problemas em curto, médio e longo prazo, sendo necessário estabelecer
as garantias da não repetição e punir os responsáveis pela repressão para
fortalecer o novo regime. Huntington (1994), por sua vez, reconheceu que
era preciso não se esquecer dos crimes que foram cometidos por agentes
do Estado, embora não defendesse a sua punição como sendo a melhor
estratégia com vistas à consolidação das novas democracias.
Apesar das diferenças de perspectiva sobre a necessidade (e conve-
niência) de punição dos envolvidos com as violações aos direitos humanos
praticadas pelas ditaduras, análises elaboradas a partir dos estudos transito-
lógicos convergiram para o estabelecimento de algumas hipóteses prelimi-
nares. Uma delas que, acredita-se, pode servir como um ponto de partida
para este estudo sugeria que o modo como ocorreu a transição à demo-
cracia em cada contexto poderia repercutir na manutenção de resquícios,
legados do autoritarismo junto à cultura e às instituições, repercutindo na

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