O paternalismo penal estatal no brasil e as incompatibilidades na busca de proteção dos direitos e garantias fundamentais ? as casas de prostituição como forma de opressão punitiva de gênero

AutorMarli Marlene Morais da Costa - Felipe da Veiga Dias
CargoPós-Doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa Capes. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina ? UFSC - Especialista em Direitos Fundamentais e Constitucionalização do Direito ? PUC/RS
Páginas260-280

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Introdução

O presente estudo debruça-se sobre a temática do paternalismo estatal e sua conexão com os aspectos constitucionais-penais, ou

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seja, como se dão as intervenções do Estado na esfera individual do cidadão, visando o seu próprio resguardo, e qual a visão proporcionada pelos mandamentos constitucionais acerca de algumas dessas "invasões". Esse é um assunto brasileiro contemporâneo, mas ao mesmo tempo detém fortes raízes históricas no seu entendimento, haja vista que neste contexto amplo tentar-se-á abordar um enfoque ainda mais específico, precisamente a opressão de gênero contida na concepção das casas de prostituição como prática criminosa.

A proposta em tela visa responder o questionamento das duas afirmações seguintes: 1) Os fundamentos constitucionais coadunam (ou não) com intervenções paternalistas através do direito penal; e 2) A manutenção do crime de casa de prostituição pode ser considerada uma ação paternalista (moral), para com isso resultar em uma opressão de gênero.

Diante das indagações que sustentam esta pesquisa faz-se imperiosa a construção a partir das bases constitucionais-penais, para discorrer resposta plausível sobre o assunto, tendo também como suporte fundamentos históricos (sociais), jurisprudenciais e especialmente com aprofundamento teórico dos núcleos desta problemática (mandamentos constitucionais e paternalismo estatal). Ademais, a preocupação com os debates de gênero é recente no país, merecendo atenção, bem como a reconstrução interpretativa nessas questões é imperiosa à formação de um pensamento constitucionalmente orientado na busca pela redução das desigualdades na realidade nacional.

1. O estado: breve histórico evolutivo e apontamentos quanto a debates de gênero

A inauguração da nova fase do Estado constitucional no Brasil, com o advento do Estado Democrático de Direito, trouxe consigo um suporte ético e jurídico renovado e capaz de gerar efeitos nas mais diversas searas do universo jurídico-social. Desta forma, a afetação da esfera penal pelos ditames constitucionais é inestimável para concretiza-

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ção do modelo democrático social, bem como para alcançar a materialidade pretendida por esta pedra angular do direito pátrio.

Entretanto, a apreciação de alguns parâmetros históricos é capaz de sustentar críticas posteriores; sendo assim, comentar-se-ão as principais fases do Estado constitucional até a chegada do já aludido modelo democrático que modificou o panorama jurídico brasileiro. Iniciando pelo modelo cuja abordagem normalmente inaugura as análises dessa espécie, tem-se o chamado Estado Liberal, que vem como reação ao absolutismo e seus poderes ilimitados, os quais serviam como baliza às mais diversas atrocidades.

O rompimento com o viés monárquico absoluto opressor de direitos levou à implementação de um Estado Liberal que ansiava pelo afastamento do ente público das relações privadas (defesa da liberdade), além de restringir os poderes estatais (teoria da tripartição dos poderes), visando impedir o uso abusivo de poderes coercitivos, aprisionando o Leviatã e seus tentáculos. Neste período frisa-se que apesar do enriquecimento social com a adoção de direitos fundamentais, a noção de igualdade defendida era somente em sentido formal, estando as mulheres a ocupar um papel desprestigiado em relação aos homens.

A este desempenho menos relevante oriundo de motivações ancestrais, como as repressões medievais (as mulheres vistas como bruxas - aliadas de satã, o primeiro inimigo da humanidade)1 ou algumas ideologias religiosas (judaico-cristã) (DIAS, 2004, p. 89 e PIAZZETA, 2001, p. 110-113), pode-se apontar que até mesmo a difusão das ideias iluministas que influenciaram os movimentos revolucionários em prol do Estado liberal, utilizando-se de sociedades maçônicas2,

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as quais não admitiam a inserção feminina em seus escalões, deixando-as à parte das influências ideológicas da época.

No seguimento histórico do Estado constitucional a face assumida posteriormente foi a da espécie social; esta teve contribuição de fatores como: a) falência do Estado liberal, pelo crescimento de desigualdades proporcionado por ele; b) a ocorrência de duas guerras mundiais que desolaram grandes nações; c) crises econômicas (crise de 1929 nos Estados Unidos - Grande depressão); e ainda d) crise do positivismo jurídico. Ante o quadro de abalo nos mais variados sentidos (econômicos, éticos, jurídicos), ascende o Estado social, com o incremento no processo interventivo (STRECK; BOLZAN, 2001, p. 69), a fim de reduzir as mazelas sofridas pelos cidadãos, bem como afastar o perfil individualista, pregando concepções mais humanas. Não bastava mais a simples igualdade formal, desejava-se concretização, uma conjunção entre desenvolvimento individual e social beneficiando toda a sociedade (MIRANDA, 2005, p. 53).

Aqui cabe a referência ao movimento feminista, o qual ganhou força ao final do século XIX e início do século XX, defendendo a paridade sobre diversos direitos fundamentais já garantidos aos homens, porém alijados das mulheres, tais como a autonomia, propriedade, integridade do corpo, dentre outros (COSTA, 2011, p. 197). Ademais, o citado movimento ofertou enfoque crítico à própria estruturação da sociedade, de cunho patriarcal (PIAZZETA, 2001, p. 110), mantido durante muito tempo e ainda demonstrando seus resquícios ao restringir a posição da mulher no acesso aos meios de produção, a direitos fundamentais ou até mesmo entendendo que estas ainda teriam como função mais importante a reprodução e não a participação igualitária na sociedade.

Nesse sentido, mesmo estando a concentração desta parte da pesquisa no desenvolvimento do Estado e na participação feminina neste processo, cabe um adendo na conotação histórica da codificação criminal ainda hoje utilizada, já que o seu enquadramento social se dá neste período (ZAFFARONI, 2007, p. 102 e JAKOBS, 2010); em outras palavras, na década de 40 o suporte que sustentou uma série de delitos,

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vedando muito a liberdade de homens e especialmente de mulheres, vinha do fascismo italiano e de concepções eugênicas (segregação de minorias)3. Embora pareça desprezível essa alegação diante de uma sustentação hermenêutica, uma reanálise conforme os ditames constitucionais revela marcas do passado que ainda são aplicadas, no entanto, mascarando-se os argumentos para relegitimaro abuso estatal.

Retomando-se o pensamento anterior, os movimentos sociais, como o feminista, contribuíram em grande monta para o crescimento humano-social na modernidade; mostra disso foram as colaborações ofertadas pelo feminismo durante o processo de redemocratização do país, o qual convergiu juntamente com a etapa subsequente no desenvolvimento estatal, qual seja, o Estado Democrático de Direito. Com o advento da carta constituinte de 1988, alinhavou-se um novo suporte axiológico para a sociedade brasileira, detentor de força modificativa e materializadora de direitos, recrudescido em comparação com o modelo estatal social, visando fundar fortes alicerces éticos, democráticos e jurídicos para refutar claramente o recente período de exceção (BONAVIDES, 2004, p. 324) e enaltecer a importância da Constituição como matriz social.

Com a finalidade de reconstruir os marcos jurídicos, sociais e os próprios rumos do país, o texto constitucional veio impor a sua supremacia, reascendendo a chama do Direito como ciência interpretativa aberta, capaz de irradiar os efeitos constitucionais para toda a legislação vigente e a ser construída (SILVA, 2005, p. 41-43). Não obstante a modificação da postura do Estado, o poder advindo do texto constitucional possibilitou uma nova direção a ser tomada (exemplo disso são as normas programáticas), cuja pretensão é construir uma realidade diferenci-

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ada, sem espaço para o simples crescimento econômico, dissociado de um upgrade social.

Em síntese, a Constituição de 1988 marca a chegada do modelo democrático de direito ao Brasil, com a soma contributiva de movimentos sociais (como o feminista) na sua elaboração, resguardando uma série de direitos e garantias fundamentais a todos os cidadãos, sejam eles homens ou mulheres. Objetivando a efetivação de tais desideratos, o texto constitucional traz relevante aporte valorativo, do qual se fará uso na interpretação da problemática proposta, bem como se abordarão, na sequência deste estudo, os mais relevantes princípios constitucionais a contribuir com o raciocínio proposto.

2. Os princípios constitucionais-penais no pensamento jurídico contemporâneo

A base nuclear do...

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