A literatura sobre a paternidade do direito internacional

AutorPaulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
Páginas84-89

Page 84

1 Introdução

A disciplina de direito internacional foi batizada, em 1780, pelo fi lósofo Jeremias Bentham, em seu livro An Introduction to the Principles of Moral and Legislation.1 Na tradução para o francês feita pelo suíço Étienne Dumont, em 1802, a expressão international law tornou-se droit international, e a nova denominação encontrou acolhida imediata entre a maioria dos doutrinadores e dos programas ofi ciais de ensino. Dumont também inseriu o adjetivo "público" ao final.2

A tradução, de fato, revela-se imperfeita. Nation, em francês, provém de naissance, nascimento; enquanto, em inglês, conserva a polissemia de nação, país ou Estado. A ênfase de Bentham, no entanto, incidia sobre o prefixo "inter". O pensador desejava enfatizar a idéia de que este ramo do Direito aplicava-se entre os povos; noção que, segundo Bentham, o primeiro nome da disciplina, "direito das gentes", mantinha ambigüidade.

O filósofo estava correto. A ambigüidade permeia toda a história do conceito de jus gentium, desde a sua origem com os romanos até o seu ocaso no último quartel do século XVIII. De direito aplicado aos estrangeiros em Roma a direito positivo inter-estatal, a variação entre os significados foi tamanha - direito natural, direito comum imperial, direito comum europeu e direito positivo entre os povos -, que se pode indagar se os dois termos, direito das gentes e direito internacional, designam uma mesma realidade. Só poderia haver três formas de relação entre as duas noções: ou o divórcio total entre as denominações; ou a expressão "direito das gentes" seria mais ampla e representaria o gênero, do qual direito internacional seria uma espécie; ou, ainda, uma identidade perfeita, e os nomes distintos se devem a uma sucessão cronológica.

Contudo, mostra-se possível esboçar algumas diferenças entre direito das gentes e direito internacional, e elas não se resumem a simples critérios cronológicos. Ainda assim, em função da polissemia já aludida, torna-se impossível, por sua vez, determinar, com precisão, todas as distinções. Haverá sempre, conforme a preferência do autor, um conceito mais ou menos abrangente que deverá merecer destaque.

A primeira questão que se deve propor, entretanto, é outra: se existem tantas diferenças, por que os dois ramos se confundem? A distinção apresenta-se como um problema sem sentido, caso a confusão entre ambos não seja antes explicada. Trata-se de investigar por que se acredita haver uma linha de continuidade entre o direito das gentes e o direito internacional. A resposta para esta pergunta desvela uma aparente simplicidade: porque haveria um só pai fundador.

2 O mito de Hugo Grócio

Poucos estudiosos receberam tantos elogios como Hugo Grócio. Numa das traduções mais consagradas do De Jure Belli ac Pacis para o francês, o tradutor Jean Barbeyrac redige um prefácio repleto de lisonjas.3 Vico o proclamou "o jurisconsulto do gênero humano". John Locke o incluiu entre os principais escritores para ser lido por homens civilizados.4 Entre, nós, Miguel Reale não esconde a sua admiração: "antes dele não se poderia falar em filosofia do direito em sentido próprio, pois é com o seu livro De Jure Belliac Pacis que se apresenta o primeiro tratado de direito natural, ou para melhor dizer, o primeiro tratado autônomo de filosofia do direito."5

Mais do que um homem, Hugo Grócio se tornou um mito: a encarnação do Tratado de Vestfália de 1648. Ele teria sido o primeiro a sair das trevas do Medievo e reacender a luz da razão. Primeiro autor moderno, o jurista holandês expressaria a noção de uma sociedade internacional; os Estados relacionam-se não mais conforme a religião, mas de acordo com seus próprios interesses, e estes se encontram limitados por regras de direito. Grócio se tornou um símbolo porque também encontrou Page 85 uma Europa bastante receptiva às suas idéias: entre outras, a interdependência dos povos; a falta de autoridade do papa sobre rotas de navegação; o direito dos príncipes em empregar a força sob a égide de um direito consentido; a validade dos tratados, mesmo com potências não-cristãs.

O mito de Grócio é bastante divulgado; ele se encontra mais presente nas Relações Internacionais do que no próprio Direito. Numa obra já considerada um clássico daquela disciplina, International Theory: the three traditions, Martin Wight, cansado do reducionismo intelectual da dicotomia entre realismo e idealismo, propõe uma divisão tripartite das tradições das Relações Internacionais: os realistas ou maquiavelianos, os revolucionários ou kantianos e os racionalistas ou grocianos. Com isso, o autor procurava resolver dois problemas: superar a "camisa-de-força" intelectual em que os estudos se encontravam e buscar ampliar a "tradição" de uma ciência recente ao recorrer à autoridade e ao passado de uma personalidade como o de Hugo Grócio.

Wight caracteriza os racionalistas como os que "acreditam no valor do elemento de intercurso internacional numa condição, predominantemente, de anarquia internacional. Eles crêem que o homem, embora manifestamente uma criatura pecadora e sanguinária, é também racional"6. Este elemento racional, por vezes, permitiria ao ser humano fugir do fado de viver como bestas e ascender a uma existência menos belicosa. Desse modo, a tradição grociana consistiria numa espécie de meio-termo entre a realista e a idealista. Os grocianos, como os realistas, formulariam teorias descritivas, e não prescritivas, das relações internacionais, mas acreditariam no valor do Direito e da diplomacia, não apenas nas relações de força entre os Estados, para conformar a política internacional. A raison d'état ainda permaneceria incontornável, porém não se menosprezaria a força normalizadora do Direito.

Além de destilar do pensamento grociano uma essência um tanto duvidosa, Wight chega a retratá-la, em sua origem, de forma caricata:

Os autores mais antigos de direito internacional eram divididos em naturalistas, positivistas e grocianos. Naturalistas afirmam que o único direito entre os países está no direito natural, isto é, nos primeiros princípios, e que costumes e tratados não conseguem criar direito; positivistas defendem o inverso, que a única lei entre os Estados é aquela encontrada em costumes e tratados, e o direito natural ou é não-jurídico ou não existe. Os grocianos combinam os dois e argúem que ambas as formas são necessárias para o direito das gentes.7

Neste trecho, o autor procura representar os "grocianos de direito internacional" como uma escola intermediária entre positivistas e jusnaturalistas. Eles aceitariam a existência de normas internacionais de natureza ética, além daquelas cuja produção depende da vontade dos Estados. Bastante cedo, os exageros dessa interpretação levaram Hedley Bull, discípulo de Martin Wight e um grociano assumido, a afirmar, num texto de 1966 intitulado The Grotian Conception of International Society8, que as relações entre os neogrocianos e o próprio Grócio são por demais tênues.

A leitura mitificadora de Grócio guarda uma grande distância do intento original do escritor, pois é feita por homens de hoje, com preocupações contemporâneas que acreditam que o jurista holandês estava abordando institutos atuais. À época de Grócio, o Estado nacional apresentava-se como uma realidade em construção; os únicos consolidados resumiam-se aos da Península Ibérica. Não parece apropriado, portanto, ler o direito das gentes grociano como sinônimo de um direito interestatal. Além disso, nesse período, a idéia de unidade entre os povos desvanecia-se: as grandes navegações haviam mostrado aos europeus uma diversidade muito maior de hábitos e costumes do que os das culturas não-européias (de forma predominante a muçulmana) já conhecidas, e a Reforma havia destruído o poder de ingerência do Sumo Pontífice, a única autoridade supranacional desde a queda do Império Romano sobre os príncipes cristãos.

O jurista holandês surge em tempos de transição. De um lado, as forças do novo, que já concebiam a política em termos de unidades nacionais, representadas pela pessoa do Cardeal Richelieu; de outro, as forças do velho, escritores papalistas e imperiais que pregavam a restauração das decadentes instituições centrais da cristandade latina. Neste contexto, o êxito dos escritos de Grócio foi imediato. Gustavus Adolphus, quando cavalgou pela Germânia durante a Guerra dos Trinta Anos, teria carregado uma cópia do De Jure Belli ac Pacis. E sabe-se que, mais tarde, os ingleses usaram os argumentos sobre a livre navegação contra os monopólios holandeses.

O sucesso do jurista holandês foi tão retumbante que engendrou o mito. Em 1661, na Universidade de Heidelberg, Samuel Pufendorf criava a cadeira "direito da natureza e das gentes", para lecionar o direito público moderno e seus institutos: o contrato social, os direitos naturais inerentes ao homem Page 86 e o direito das gentes. Como livro texto, utilizava o tratado do Direito da Guerra e da Paz. Durante o século seguinte, entre os membros da Escola do Direito da Natureza e das Gentes, formou-se a lenda de um fundador único da disciplina. Importa ressaltar que, em oposição aos elogios tecidos a Grócio, aos escolásticos se reservavam expressões como "obscurantismo" e "passado medieval".9

3 A redescoberta da escolástica espanhola

Nos primeiros trezentos anos que se passaram desde o seu nascimento, Hugo Grócio foi considerado sozinho o pai de todo um ramo do Direito, o direito internacional público, bem como o pai da filosofia do direito moderno e da noção de direito subjetivo. A sua influência fazia-se sentir em outras paragens também, como o direito internacional privado. Sua obra era revolucionária e pioneira em todos os campos que adentrasse. Em 1874, contudo, sir Thomas Erksine Holland...

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