O tempo do direito: patrimonialismo e modernidade na ordem jurídica e política brasileira

AutorCelso Rodrigues
CargoDoutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do RS
Páginas91-101

Celso Rodrigues1

Page 91

"A verdade não se acha nos extremos"

Bernardo Pereira de Vasconcelos

1 Introdução

Em crônica publicada no Diário de Notícias2 , Machado de Assis relata a história de um ilustre membro de nossa aristocracia rural que decide antecipar-se à Lei Áurea, alforriando seu escravo Pancrácio. Para tanto, concede um jantar e, em meio aos discursos dos convivas, o benévoloPage 92 anfitrião não apenas contempla o jovem de dezoito anos com a liberdade como contrata-o por um ordenado de seis mil-réis. Jactando-se do seu gesto, comenta o abolicionista, agora convertido em legislador, que:

[...] os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos não são os que obedecem à lei, mas o que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Consumada a alforria, pelas mãos daquele que se auto-intitulou legislador, novas relações sociais se esboçam no espaço doméstico. Mas deixemos, ainda, que fale o escritor fluminense:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor, eram dois estados naturais, quase divinos [...] daí para cá tenho lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, quando lhe não chamo filho do diabo, cousas todas que ele recebe humildemente e, (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O relato literário se disfarça em testemunho histórico3 para narrar um pouco da complexidade brasileira no século XIX, "período antes sociológico que cronológico", nas palavras de Gilberto Freyre, e que conheceu à formação e consolidação do Estado Nacional brasileiro. No bojo desse processo, uma sociedade alicerçada em relações patrimoniais, patriarcais e escravistas transitava por novos sulcos de diferenciação que a transição para o trabalho livre e a expansão cafeeira acentuariam. Transformações sociais e políticas, idéias e novos comportamentos introduziam, na paisagem social, novas nuances numa sociedade marcada tradicionalmente pelo exercício do poderio do patriarcado rural.

Entretanto, como veremos, esse processo não correspondeu a uma ruptura abrupta com a tradição e a implantação do modelo civilizatório moderno4 . A modernidade brasileira não se realizou pela eliminação das formas sociais e políticas típicas do patriarcalismo e do patrimonialismo e sua substituição por relações "modernas" consubstanciadas na racionalidade jurídico-política5 . A ficção se disfarça em história para, no relato do escravo (ou liberto?) Pancrácio, ilustrar esse processo histórico.

2 Patriarcalismo e Patrimonialismo

A fina ironia da pena machadiana nos estimula a um campo de reflexões em torno das relações entre tradição e modernidade na dinâmica sócio-cultural presente na construção do Estado Nacional brasileiro. Num primeiro movimento, temos o proprietário escravocrata alçado à condição de legislador, "apesar do Estado", vibrando cordas juridificantes a partir de sua condição natural de proprietário. É a ótica privatista da lei enquanto vontade daqueles que "não são os que obedecem a lei", mas se antecipam à temporalidade lenta dos legisladores, aliás, referida pelo ilustre benfeitor.

Num segundo movimento encontramos as manifestações do poder patriarcal reelaborando as relações de dominação, não obstante a liberdade concedida à luz da igualdade moderna. O patriarcalismo consistiu na expressão de uma formação social marcada pelo latifúndio, pela monocultura e pelo escravismo sobre a qual pairava soberano o poder do pater-familias, guardião de um poder privado absoluto6 . Os valores inerentes às relações patriarcais se estenderam, como veremos, à esfera pública, assumindo formas tipicamente patrimoniais de ação política7 . Conforme Freyre8 : "O domínio do pai sobre o filho menor - e mesmo maior-fora no Brasil patriarcal aos seus limites ortodoxos: ao direito de matar [...] e mandar matar, não só os negros como os meninos e as moças brancas, seus filhos". O pátrio-poder não era o exercício de um poder individual, mas a expressão máxima do complexo familiar que se reafirmava não apenas entre os membros da família, mas se desdobrava em múltiplas relações clientelísticas.

Nesses termos, o patriarcalismo correspondeu a uma das grandes forças atuantes de nossa história, funcionando como uma estrutura que dialogava com as diversas conjunturas históricas e seus agentes sociais. Centro irradiador de estabilidade na sociedade de parentes, o poder do complexo patriarcal, tutelador e privatista e a constante familista condicionavam o processo civilizador brasileiro.

Assim sendo, o que Machado de Assis nos mostra é a complexidade dialógica das relações entre tradição e modernidade que delineavam-se naquela conjuntura histórica. Sem dúvida, poder-se-ia argumentar sobre certo cinismo que acompanha o proselitismo, um tanto quanto tênue, dos senhoresPage 93 de escravos em sua adesão às novas crenças modernas. Entretanto, a questão deve ser situada justamente nas possibilidades de releitura de um ideário europeizado que, não obstante ser extremamente valorizado, foi submetido à flexibilização numa topografia social distinta9 . Essa adesão, entendida por muitos autores como "atrasada" ou "superficial" se explica não apenas pela autonomia de seus autores, mas por uma dinâmica sócio-cultural marcada por deslizamentos e ambigüidades, aliás, características do universo patriarcal. Além disso, o patriarcalismo se exercita para além da figura do patriarca e do mero exercício da repressão violenta, deslocando-se num amplo espectro de relações que assumem dimensões patrimoniais no espaço público. Nesse conjunto, constituiu-se uma configuração de relações sociais que compõem o que poderíamos chamar uma "economia sentimental" impregnada de valores, práticas, tradições e compromissos eivadas de ambigüidades10 .

Outro aspecto relevante diz respeito ao fato de que, não obstante a primeira metade do século XIX ter sido marcada pela construção de um amplo arcabouço jurídico-político inspirado no pensamento político moderno, o exercício pleno de seus ditames tornava-se extremamente complexo diante de um corpo social heterogêneo e multirracial11 . Como observaram diversos autores da cena histórica brasileira do século XIX, a dicotomia senhor/escravo, no universo social brasileiro, expressava o plano geral das relações econômico-jurídicas, existindo no interior desse tecido um amplo espectro de gradações hierárquicas compostas por clientelismos, mediações, compensações e submissões das mais variadas. A incapacidade jurídica, por exemplo, não impedia o escravo de possuir e dispor de bens, inclusive outros escravos. Ainda nesse sentido, lembremos o personagem machadiano de "Pai contra a Mãe", Cândido Neves, caçador de escravos fugidos que, constantemente, detinha negros libertos12 .

A diversidade e a unidade amalgamam-se numa síntese que singulariza nossa formação social, dotando-lhe de uma especificidade impossível de ser apreendida por esquemas teóricos ortodoxos. Estes operam com um modelo homogeneizado do conceito de modernidade, que passa a ser aplicado as mais diversas experiências históricas. Nessa perspectiva metodológica, as relações entre modernidade e tradição são entendidas de forma excludente, uma vez que a primeira somente se consagraria pela destruição da segunda. Não apenas a noção de identidade política - por si só um artefato conceitual moderno - mas as relações entre sociedade e estado e a formulação da cultura jurídica nacional também passam a ser apreendidos dentro da mesma lógica13 .

A plasticidade social brasileira, inerente à sua heterogeneidade, implica, necessariamente, a impossibilidade de circunscrever com precisão os espaços ocupados pelas manifestações da tradição e da modernidade no processo histórico brasileiro. Essa aparente "confusão" pode ser apreendida no exemplo dos escravos de ganho, citado por Gilberto Freyre14 :

Grande parte da riqueza ainda patriarcal e já burguesa do Rio de Janeiro como de Salvador, do Recife ou de São Luís do Maranhão estava, até a predominância do transporte por animal sobre o transporte por negro, nesses escravos de ganho, alugados por seus senhores como se fossem cavalos de carro ou bestas de transporte.

A exploração a que esses estavam submetidos criava uma situação paradoxal aos poderes públicos, pois a escravaria, inúmeras vezes, lançava-se ao crime como forma de atender as exigências de seus senhores, caracterizando um quadro no qual o público e o privado se confundiam. Ainda aqui é Gilberto Freyre quem lembra a paradoxalidade da situação, identificando os negros de ganho, juntamente com os ferreiros, carregadores de fardos, serralheiros e os maquinistas como uma espécie de "aristocracia guerreira da massa cativa", constantemente convergindo ao crime.

Nesse caso, observamos como a ordem privatista, representada no poder patriarcal dos escravocratas, avançava sobre a sociedade, espoliando-a e mobilizando os poderes públicos perante uma situação pela qual é diretamente responsável. Esse "embaralhamento" já pertencia a tempos recuados, podendo ser identificado em 1793, por Luis Antonio de Oliveira Mendes15 :

Eu teria por um grande prêmio do meu trabalho, se a minha voz, ao menos por efeito de eco, pudesse chegar a lugar, donde emanasse uma carta de serviços, que advertisse a semelhantes juízes, que eles formam postos para administrar a justiça, e arrecadar a Real Fazenda, e não para serem executores tremendos das sentenças privadas dos...

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