Penal rationality and criminological semantics in the Maria da Penha Law: the case of the procedure sursis/Racionalidade penal e semanticas criminologicas na Lei Maria da Penha: o caso do sursis processual.

AutorMachado, Bruno Amaral

Introducao

As transformacoes sociais e os novos desafios enfrentados pela sociedade contemporanea conformam o cenario para observacao da faticidade dos novos ambitos de regulacao juridica e, particularmente, de intervencao penal. A crescente complexidade das questoes positivadas demanda a construcao de argumentos heterorreferentes pelo sistema juridico (1), o que supoe observar as comunicacoes produzidas pelos subsistemas cientificos. Inspirado pela proposta epistemologica de uma sociologia do direito "com o direito", nosso objetivo e apresentar e descrever novas possibilidades de abertura cognitiva do sistema juridico aos saberes das ciencias sociais. Neste estudo, particularmente os saberes criminologicos de tradicao sociologica (GARCIA, 2014; LUHMANN, 1985 e 2005; PIRES, 2004b).

Este artigo fundamenta-se em material empirico produzido em pesquisa sobre as representacoes sociais de servidores publicos, magistrados e promotores de justica sobre a suspensao condicional do processo na Lei Maria da Penha no Distrito Federal. Na analise, consideramos as impressoes obtidas durante o trabalho de campo, a partir das entrevistas exploratorias com academicos e profissionais do direito (servidores do Judiciario, advogados, promotores de justica e magistrados), bem como pela observacao da forma como comunicam as organizacoes que participam da divisao do trabalho juridico-penal (MACHADO, 2014, p. 49-51) (2). Notamos, nos ultimos anos, intensa discussao sobre a validade juridica da aplicacao do sursis processual em casos de violencia contra a mulher. A experiencia negativa advinda da pratica das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/1995, como a conciliacao e a transacao penal, foi relevante na idealizacao do projeto que originou a Lei Maria da Penha.

A vedacao expressa a aplicacao dos institutos da Lei 9.099/1995 gerou, contudo, debates sobre a incidencia dos institutos e, em especial, do sursis processual. Os argumentos contrarios identificam nao apenas afronta expressa ao texto legal, mas prejuizos aos interesses das vitimas. De outro lado, argumentamse a ineficacia da solucao punitiva e a necessidade de flexibilizar o comando legal a fim de contemplar os interesses de todos os atores envolvidos no ciclo da violencia, e de inserir solucoes criativas para afrontar o problema desde o inicio da intervencao processual.

Apesar dos precedentes do STF e do STJ que vedam a aplicacao dos institutos previstos na Lei 9.099/1995, a medida e aplicada em algumas das varas especializadas na violencia contra a mulher. Qual o significado da pratica judicial divergente da orientacao dos tribunais superiores e que impacto ela produz para pensarmos a comunicacao juridico-penal, bem como as estruturas organizacionais instituidas para a politica publica idealizada a fim de enfrentar a violencia contra a mulher? Ao conhecer as representacoes sociais dos sujeitos da pesquisa e as comunicacoes (decisoes) das organizacoes envolvidas, discutimos possiveis irritacoes (3) para o sistema juridico e os subsistemas criminologicos de tradicao sociologica.

  1. Pesquisa empirica e a sociologia do direito "com o direito"

    Este artigo inspira-se em debate epistemologico sobre a pesquisa sociojuridica. As pesquisas empiricas podem nao apenas suscitar questoes relevantes sobre a eficacia normativa e mapear cartografias para uma analise externa do direito, mas tambem podem ser pertinentes para o debate teorico e para a atuacao dos atores inseridos em distintas instituicoes juridicas (GARCIA, 2014; PIRES, 2004b, NELKEN, 1996; TEUBNER, PATERSON, 1998).

    O foco orienta-se a partir da distincao proposta por Luhmann entre uma sociologia do direito "sem o direito" e outra sociologia "com o direito". A primeira notabiliza-se pela analise do funcionamento do sistema juridico e negligencia as categorias e abordagens teoricas do direito. A ultima, diferentemente, contempla o repertorio de conceitos e argumentos por meio do qual o sistema juridico se descreve e se observa. A evolucao das tradicoes juridicas, dos institutos e das ideias sao uteis, pois conformam a linguagem do direito. Constituem-se no arsenal semantico que permite observar a comunicacao juridica (LUHMANN, 1985). Em monografia sobre o direito na sociedade, Luhmann adverte que a analise externa do direito pode partir de perspectivas incongruentes. Uma teoria sociologica do direito deve descreve-lo da forma como entendem os juristas. Trata-se de um objeto que se observa e descreve a si mesmo (LUHMANN, 2005, p. 69-70).

    A pertinencia do enfoque aparece em recente analise de Garcia (2014). Segundo a autora, o potencial nao se limita a capacidade de despertar o interesse de juristas teoricos para as analises externas do direito, mas especialmente porque problematiza a relacao entre direito e ciencias sociais. Garcia propoe tres estrategicas epistemologicas, uteis aos nossos objetivos, para o itinerario de sua analise centrada nas representacoes sociais sobre os direitos humanos do sistema penal: a. O processo de descentralizar o foco de analise do sujeito enseja capturar o distanciamento entre as representacoes sociais dos atores e a comunicacao do sistema pertinente aos sujeitos da pesquisa; b. A entrevista qualitativa e concebida como mecanismo reflexivo com o sistema (4), e a comunicacao juridica apresenta-se como categoria para observar as manifestacoes empiricas do sistema juridico. c. A analise deve distanciar-se das categorias juridicas naturalizadas dentro do sistema juridico, a fim de possibilitar a observacao externa do direito e as implicacoes tanto para a pesquisa multidisciplinar quanto para a teoria juridica (GARCIA, 2014, p. 185-186). Sugerimos um passo a mais na proposta. A analise ganha em densidade se contempla nao apenas o sistema juridico (no caso o direito penal), mas tambem os sistemas organizacionais que participam da divisao do trabalho juridico-penal (Policias, Ministerios Publicos e Judiciarios). Se considerarmos que as organizacoes comunicam por meio de decisoes, o estudo das premissas decisorias (condicionais, finalisticas, cultura organizacional) remete a um campo relevante para observar as formas de interpenetracao entre o sistema juridico, as organizacoes e os sistemas psiquicos (via linguagens) (MACHADO, 2014, p. 36-47). Nem todas as decisoes orientam-se pela comunicacao juridica. Conhecer a cultura organizacional permite identificar rotinas cognitivas que conduzem os processos decisorios. Nesse sentido, propomos: d. Entrevistar o sistema supoe contemplar como parte do objeto de estudo as constricoes impostas tambem pelas estruturas organizacionais, presentes nas falas dos sujeitos da pesquisa (MACHADO, 2014, p. 39-44).

    A analise de Garcia deixa algumas pistas relevantes para os nossos argumentos. Se a semantica dos direitos humanos, aponta Garcia, pode ser observada como "recurso cognitivo e normativo potente, suscetivel de fazer evoluir as estruturas e as ideias que circundam o direito de punir", o que explica o bloqueio de interpretacoes inovadoras sobre as formas de intervencao penal? Ou ainda: como observar a formulacao de direitos que defendem alguns das ofensas de outros e movimentos de defesa dos direitos humanos que demandam penas geradoras de exclusao social? A hipotese anunciada, e que pretendemos explorar no nosso texto: a insercao dos discursos dos direitos humanos no direito penal orienta o sistema penal em direcoes contrapostas, oscilando entre a "normatividade critica" e a "razao punitiva" (GARCIA, 2014, p. 188-189).

  2. Racionalidade penal moderna e semanticas criminologicas concorrentes

    Entre as diversas abordagens sobre a evolucao do direito penal, interessa-nos, neste texto, a proposta de Pires (2004a), descrita como racionalidade penal moderna. Ao resgatar a historia das ideias penais, o autor sistematiza as diferentes teorias das penas (retributivas, preventivas, reintegradoras, inocuizadoras) e sugere que todas apresentam um ponto em comum: a pena como poder-dever de punir do Estado. O consenso sobre penas aflitivas e sobre o carater impositivo do poder punitivo conforma o que Pires descreve como retrato identitario do direito penal moderno. Nesse cenario, bastante simplificado devemos admitir, estabilizase a pena privativa de liberdade como forma por excelencia do castigo institucionalizado (PIRES, 2004a, p. 39-48).

    No objeto proposto por Pires, a historia das ideias em um dado sistema constitui-se na metodologia mais adequada. No sistema penal, as filosofias penais, as doutrinas juridico-penais, os discursos das comissoes de juristas para a reforma legal, manuais de direito e decisoes dos tribunais de justica constituem-se nas fontes documentais para a investigacao (PIRES, 2004b, p. 22). O autor explicita sua tese: a partir da teoria sistemica e da categoria sistema de pensamento (Foucault), argumenta que determinadas organizacoes e subsistemas sociais que observam a si mesmos e a seus respectivos entornos, possuem um sistema de pensamento e uma imagem identitaria propria. Os sistemas de pensamento englobam todos os discursos teoricos selecionados e estabilizados por um sistema social. Os autorretratos identitarios de um dado sistema fazem parte de seu sistema de pensamento (PIRES, 2004b, p. 17-18). A observacao empirica de um sistema complexo como o penal permite identificar ao menos quatro tipos de comunicacao: os discursos hegemonicos, os alternativos (em regra marginalizados ou desvalorizados), os quais tambem remetem a um retrato identitario, os discursos regressivos e aqueles que nao se ajustam a nenhum dos anteriores. Pires adverte que, com o tempo e conforme as decisoes internas do sistema, o discurso alternativo pode assumir um papel significativo, o que se constitui em questao empirica a ser investigada. Podem, tambem, ocorrer situacoes paradoxais, como a presenca de um duplo discurso identitario. A existencia de tensao interna entre as teorias confere plasticidade ao sistema, bifurcacoes e germes de mutacao (PIRES, 2004b, p...

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