O pensamento hierócratico de egídio romano contexto histórico e contribuições para a modernidade

AutorKarine Salgado, Gabriel Afonso Campos
CargoUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Páginas177-196
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
O PENSAMENTO HIERÓCRATICO DE EGÍDIO ROMANO:
CONTEXTO HISTÓRICO E CONTRIBUIÇÕES PARA A
MODERNIDADE
THE HIEROCRATIC THOUGHT OF GILES OF ROME: HISTORICAL CONTEXT
AND CONTRIBUTIONS TO MODERNITY
Karine SalgadoI
Gabriel Afonso CamposII
Resumo: O trabalho pretende avaliar a obra Sobre o poder
eclesiástico, de Egídio Romano, a partir do seu contexto
histórico. Para tal, reconstrói alguns elementos essenciais das
disputas entre poderes seculares e a Igreja na baixa Idade Média
e sua relação com a formação do pensamento hierocrático
medieval, e, de modo especial, com o pensamento político
de Egídio Romano. A análise possibilitou a identificação de
elementos inovadores em relação à tradição do pensamento
político medieval que se aproximam das teorias absolutistas
desenvolvidas pelo pensamento político moderno, em que
pese o uso de pressupostos distintos.
Palavras-chave: Idade Média; Hierocracia; Egídio Romano.
Abstract: is article intends to analyse the book On
ecclesiastical power, by Gilles of Rome, through his own
historical context. By doing so, it reviews some concepts
developed during the dispute between secular power and the
Church in the late Middle Ages, and its connection with the
political theory of Gilles of Rome. e article identifies some
innovative elements in Gilles’ theory that can be linked to
modern absolutism, in spite of their distinct assumptions.
Keywords: Middle Ages; Hierocracy; Gilles of Rome.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v17i43.1013
Recebido em: 22.09.2022
Aceito em: 29.11.2022
I Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutora
em Direito. E-mail: gabriel.afns1@gmail.
com
II Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Doutorando em Direito. E-mail: gabriel.
afns1@gmail.com
178 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 17 | n. 43 | p. 177-196 | set./dez. 2022
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v17i43.1013
1 Introdução
A história política da Europa tem, nos últimos séculos do Medievo, um momento único,
não apenas por suas peculiaridades, mas também – e muito especialmente – pela diversidade de
possibilidades políticas e pela riqueza de experiências vivenciadas num mesmo período1. Nele
são gestadas – e, eventualmente, experimentadas - muitas alternativas de organização política,
refletindo os acirrados debates e o complexo emaranhado das redes de poder que ali se estabelecem
e que impõem, mesmo aos estudiosos mais experientes, um grande desafio interpretativo.
Relações políticas são sempre mais complexas do que parecem e não se explicam por
um simples organograma que traça conexões e hierarquias. Antes, ocultam uma miríade de
variantes, ligações e contradições que exigem enorme esforço e representam grande risco para
aqueles que desejam desvendá-las. Não diferente é o Medievo e, de modo especial, seus últimos
três séculos, não apenas pela esperada complexidade da organização e das relações de poder, mas
também pela estranheza própria do distanciamento temporal e pela desconfortável semelhança
que se pode identificar entre ideias ali aventadas e as experiências modernas.
A arquitetura política medieval vai muito além da leitura das relações senhoriais que se
alçaram à memória eterna do período. Igreja, Império, poderes locais e Cidades, estas últimas,
fenômenos que ganham destaque nos últimos dois séculos do Medievo, se conectam por
relações instáveis, repletas de intermediários, num pano de fundo orquestrado pela ideia de
universalidade – para recordar Le Goff - que tencionará constantemente com o local. É desta
tensão que surgiram os novos modelos e experiências que darão uma alma nova, paradoxalmente
nova, à realidade política moderna.
A pretensão de universalidade, simbolizada nas figuras do Império e da Igreja, não
se concretizou, a despeito do êxito relativo desta última. Aliás, como nota Paolo Grossi, é
justamente da sonora ausência de um poder único e forte que floresce a pluralidade jurídica da
Idade Média, tão própria daquele tempo e espontânea (GROSSI, 2014, p. 273). Outros atores
progressivamente destacam-se e, assim, a Igreja, mais forte candidata à sucessão fática da figura
do imperador romano, vê-se obrigada a lidar com poderes locais, cujas histórias são marcadas por
atritos recorrentes com ela. Tais poderes ganham agora mais expressividade para assumirem um
posto na disputa, concorrendo, para tanto, uma série de fatores históricos e elementos teóricos.
Ao longo de toda a Idade Média, um dualismo se fará presente na teoria política cristã-
medieval, a saber: o da oposição/cooperação/subordinação do poder religioso - encarnado pela
Igreja - e do poder secular - representado pelo Império Romano e por tantos outros que desejaram
suceder-lhe (SALGADO, 2017, p. 106). Nesse sentido, desde o estabelecimento da Igreja como
instituição religiosa e política, houve uma convicção geral sobre a qual se assentou um relativo
padrão das relações políticas medievais: a divisão de poderes teorizada inicialmente pelo papa
Gelásio I (410-496). É ele quem, em carta dirigida ao imperador Anastácio I (c. 430-518),
1 É no século XIII, por exemplo, que assistimos a quatro “êxitos” históricos que se refletirão na Modernidade: 1) o
crescimento urbano; 2) a renovação das atividades comerciais; 3) a ampliação das instituições de ensino – escolas
urbanas de ensino que poderíamos chamar primárias e secundárias e as universidades – que tornaram possíveis os
grandes sistemas escolásticos; e 4) o surgimento das ordens mendicantes compostas por frades que residiam nas
cidades. É nesse contexto que o pensamento hierocrático de Egídio Romano - professor, dominicano e conselheiro
papal - será desenvolvido. Para contextualização do período, ver LE GOFF, 2007, p. 143 e ss.

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