O pensamento juridico sobre o indigena em periodos de modernizacao/The legal tought on indigenous populations under modernization cycles.

AutorHansen, Thiago Freitas
CargoReport

Introducao

Em 1965, Roberto Cardoso de Oliveira, um dos principais nomes da Antropologia brasileira do seculo XX, escreveu um artigo intitulado "O indio na consciencia nacional (1)", importante texto que buscava analisar as diversas narrativas sobre os povos indigenas do Brasil. Apesar da distancia temporal da publicacao do artigo, muitas das ideias ali presentes parecem ainda ser atuais e uteis para se problematizar, na literatura juridica da primeira metade do seculo XX, as imagens mentais construidas sobre a posicao dos indigenas na sociedade brasileira e sua valorizacao positiva ou negativa.

A primeira evidencia investigada pelo antropologo diz respeito a relacao existente entre proximidade espacial e territorial com indigenas e a formacao da imagem mental que se constroi a partir desta relacao:

A proximidade competitiva e muitas vezes conflitual, do homem regional frente as populacoes indigenas, anima sua atitude negativista, agressiva e comumente impiedosa, responsavel por quantos massacres e destruicoes de aldeias inteiras, que foram registrados pela historia das relacoes entre indios e brancos no Brasil. Em contrapartida, as distancias, geralmente enormes, que guarda o metropolitano das areas assoladas pelo que chamamos de 'friccao interetnica', geram um desconhecimento quase tao grande quanto o demonstrado pelos regionais, variando apenas a enfase--que do lado 'mal' do humano e posta no lado 'bom'. A crosta de preconceitos que envolve a consciencia de ambos e, no entanto, da mesma natureza (2). Tanto a romantizacao do bom selvagem por parte dos habitantes das metropoles quanto o propagandeamento da imagem de agressivo e rustico por parte dos habitantes dos sertoes revelam que a definicao mental de um indio esta sempre recheada de categorias de imaginacao espacial. Roberto Cardoso de Oliveira busca demonstrar que, do ponto de vista do Estado, nao haveria ate entao a formacao de uma identidade por parte dos proprios indios, mas esta sempre seria circundada por nocoes pre-concebidas e impostas, seja para valoriza-lo, seja para desqualifica-lo. Acusa ainda a imagem dos dois Brasis, o do sertao e do litoral, parte de uma imaginacao que extravasa o territorio e contribui na criacao de narrativas sobre as populacoes e do que se deve fazer com tais populacoes. Para Cardoso de Oliveira, essa construcao mental dificultaria a formacao de um "indigenismo racional", impedindo politicas publicas que coloquem os povos indigenas como agentes ativos de um dialogo sobre seu futuro e sobre seus desejos. Em seguida, o autor apresenta o que ele denomina de quatro "mentalidades" que estariam por tras dessa dificuldade: a mentalidade estatistica, a mentalidade romantica, a mentalidade burocratica e por fim a mentalidade empresarial.

A mentalidade estatistica e romantica estariam presentes na populacao e nos agentes publicos mais distantes das tomadas de decisao efetivas de politicas indigenistas, e seriam marcadas por uma descrenca no peso populacional e portanto politico dos indigenas (mentalidade estatistica), ja que seriam uma minoria infima perante a massa demografica brasileira nao resultando de necessaria preocupacao ou acao especifica estatal. Ja a mentalidade romantica, influenciada por narrativas literarias de fins do seculo XIX seria marcada por um olhar pouco sofisticado da situacao indigena, reportando a eles "uma ideia generosa a respeito do indio" que acaba por desumaniza-lo "a ponto de ampliar desmesuradamente suas 'faltas' quando delas toma conhecimento atraves da imprensa (3)", vendo-os sempre como ingenuos, miseraveis e coitados.

Na outra ponta, proximo do poder de decisao, da Administracao Publica e das cupulas, encontram-se as duas ultimas mentalidades, a burocratica e a empresarial. As duas sao pautadas ora por um olhar administrativista, com vistas a pureza e ao respeito pelas etapas burocraticas da administracao, rotinizando e desumanizando as acoes indigenistas sob o manto da legalidade e da logica dos escritorios e reparticoes publicas. Em outros momentos, sao marcadas por uma logica desenvolvimentista, vinculadas a ideia de que o indigenismo deve levar a cabo o desenvolvimento dos Postos Indigenas como verdadeiras empresas agricolas, buscando lucro, progresso e a civilizacao dos indigenas por meio da implementacao das regras da divisao do trabalho e da valorizacao da etica do trabalhismo.

Em qualquer uma dessas visoes predominam estereotipos rigidos que desqualificam o indigena como sujeito de sua propria historia e agente de vontades proprias. O indigena acaba por ser visto sempre como alguem que aguarda a salvacao vinda do Estado ou do Litoral. As doutrinas juridicas do inicio do seculo XX parecem confirmar essa analise de Cardoso de Oliveira, associando os deveres do Estado de Direito republicano a uma imagem fixa do que e o indio, pecando por simplificar a paisagem etnica brasileira. A seguir, o objetivo sera analisar o pensamento juridico sobre os povos indigenas durante os processos de modernizacao do Estado brasileiro no inicio do seculo XX.

  1. Analise da literatura juridica sobre o indigena na primeira metade do seculo XX

    A questao indigena sempre esteve presente no Direito brasileiro. Ainda que de maneira marginal, a Republica tratou da regulamentacao juridica dos indigenas como parte de um projeto mais amplo, que desembocaria com maior vigor na Era Vargas, consubstanciado em um processo de modernizacao e uma modificacao dos direitos e deveres do Estado de Direito.

    Uma nota sempre presente em todos os textos sobre direitos indigenas e politica indigenista do inicio do seculo XX (mas com continuidades hoje) e o resgate historico da legislacao sobre os indigenas e as formas de tratamento desses povos pelo Direito. A historia do direito nessas reflexoes nao faz parte apenas de uma amostra de bacharelismo ou um tipo de erudicao. Ao contrario, a narrativa historica nesses textos cumpre uma tarefa fundamental no proprio seio da argumentacao juridica: a de apresentar de maneira critica o desrespeito e selvageria existente nas acoes do passado entre Estado e povos indigenas e narrar a paulatina evolucao da qualidade moral das instituicoes. Dentro da narrativa de ordem e progresso estabelecida com o advento do regime republicano, o debate sobre os povos indigenas, ainda que nao fosse central como a questao do federalismo, era exemplar por revelar a sensibilidade do imaginario estatal sobre as populacoes que o Estado efetivamente nao podia nem conseguia controlar. Os projetos que viriam dessa questao exigiam, a partir de entao, uma recapitulacao dos erros do passado para uma correcao do presente, exorcizando os elementos irracionais anteriores e instalando um regime de sabedoria e ciencia. Nesse sentido, a narrativa historica presente nos textos juridicos sobre os indigenas e unanime em demonstrar aquilo que poderia se denominar, como o fez Rodrigo Otavio, de "Miseria Indiana", ou seja, esclarecer a violencia e irracionalidade praticada em quatrocentos anos de politica indigenista infrutifera e assassina, politica que corrompia em absoluto os valores da "Humanidade" previstos no postulado positivista.

    Retornando ao longinquo seculo XVI e construindo uma linha que desemboca no seculo XIX, os juristas que trataram da questao indigena narravam em unissono as violencias e atrocidades com que a Coroa Portuguesa e o Imperio conduziram o contato e as relacoes com os povos indigenas. Assim, Oliveira Sobrinho publica em 1929 artigo que afirma: "Taes e tamanhas foram as violencias, as atrocidades, as selvagerias...

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