A desconsideração da personalidade jurídica no direito ambiental: uma análise crítica de sua aplicação no Brasil e na Argentina

AutorDaniel Tempski Ferreira da Costa
Páginas396-411

Page 396

1 Apresentação

O tema ora investigado, "A desconsideração da personalidade jurídica no Direito Ambiental: uma análise crítica de sua aplicação no Brasil e na Argentina" relaciona-se às áreas do Direito Público e Privado em face da diversidade de previsões na legislação brasileira, como veremos, em destaque o Direito Empresarial, Civil e do Consumidor. 12

Enfatizo, ademais, que em razão do objeto de estudo escolhido - a teoria da desconsideração da pessoa jurídica não objetiva anular sua personalidade jurídica, mas afastá-la em situação concreta limite pela autoridade competente3 -, será imprescindível a análise legal e comparativa quanto à aplicabilidade dessa teoria sob um ângulo do direito processual, principalmente: a) quanto à prova da fraude à lei ou ao abuso do direito, com destaque à teoria da carga probatória dinâmica e da inversão do ônus da prova no sistema adotado no Código de Defesa do Consumidor brasileiro (CDC); b) se o credor pode demandar contra o sócio diretamente e de quê este pode se defender.

Este artigo seguirá o método analítico, porquanto nele se fará a análise da legislação brasileira quanto a essa importante teoria da desconsideração da personalidade jurídica, comparando-a, sempre que necessário, ao ordenamento jurídico da Argentina (método comparativo).

Metodologicamente, por primeiro será demonstrada a evolução histórica da legislação, doutrina e jurisprudência brasileira acerca do tema principal explorado. Page 397 Além disso, no Brasil, há uma "divergência" de direito material na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, gerando consequências discrepantes na sua aplicação processual, as chamadas Teoria "Maior" e "Menor", aqui em destaque na seara Ambiental; a primeira como regra geral, a segunda aplicável somente nos casos legais especificamente previstos, em destaque, o do art. 28, § 5º, da Lei n.º 8.078/90 (CDC), em relações de consumo, e do Direito Ambiental (art. 4º da Lei n.º 9.605/98).

Assim, como existe essa aplicação "Menor" da teoria, ausente no direito argentino, opta-se por utilizar como parâmetro comparativo base a sistemática brasileira, efetuando comentários à lei argentina num segundo plano, não menos importante, mas por didática. Seguindo essa trajetória, repita-se, sempre que necessário seguirão comentários de doutrinadores argentinos quanto ao tema específico em debate.

Ao final do trabalho, será dada resposta aos principais questionamentos levantados no desenvolvimento do tema, objetivando o aprimoramento das legislações e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais do Brasil e da Argentina, tais como: a) quais as principais contribuições e diferenças entre os dois países e se, a discordância legislativa encontrada num ou noutro país, pode contribuir a uma melhor aplicação no outro; b) quais lições, quanto à aplicabilidade processual da desconsideração da pessoa jurídica, cada país tem de interessante a oferecer, a fim de tentar copiá-las e adequá-las ao ordenamento legal respectivo.

Com isso, crê-se que partes do tema ora pesquisado restarão aprofundados, delineados e esclarecidos, sempre na certeza de que, opiniões contrárias a este autor são muito bem vindas a fim de que se evolua tecnicamente.

A relevância profissional, científica e social deste trabalho é notória, mormente em razão do Mercosul, da existência de empresas binacionais (Brasil-Argentina), inclusive em nosso estado do Paraná, o que pode fortalecer a relação comercial entre nossos países com uma unificação de entendimentos quanto à correta aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, até mesmo, quem sabe, perante um juízo arbitral. Ressalto, também, a importância do estudo comparado para que haja o aprimoramento da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito interno de um e de outro país.

2 A desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
2. 1 Surgimento doutrinário, jurisprudencial e legal

Por primeiro, passo a esclarecer a disciplina básica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, seu surgimento doutrinário e jurisprudencial, até seu presente e confuso estágio legal. Com essa metodologia já se observam relevantes diferenças entre a aplicabilidade dessa teoria no Brasil e na Argentina as quais, quando pertinentes, serão observadas no corpo do texto ou em nota de rodapé. Page 398

Pois bem! No Brasil, segundo a professora Maria Luiza Póvoa Cruz4, as

"primeiras manifestações doutrinárias a respeito da teoria em comento foram marcadas, pelas críticas tecidas à legislação brasileira, que não contemplava a possibilidade de se desconsiderar a pessoa jurídica. Em face da ausência de textos legais que a acolhessem, os doutrinadores entendiam a princípio que, embora o sistema jurídico pátrio fosse compatível com a sua adoção, não seria possível aplicar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica aos casos concretos, enquanto o legislador não a fizesse inserir no direito positivo".

Contudo, a própria jurisprudência passou a determinar aos sócios das pessoas jurídicas a responsabilidade por dívidas sociais, sempre que julgavam terem eles agido, ao dirigir a sociedade, com abuso de poderes ou com violação da lei ou dos estatutos.

Após esse ponta-pé inicial da doutrina e da jurisprudência, adveio, pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico, no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)5, a positivação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Veremos mais adiante que esse texto normativo, mormente o parágrafo quinto deste art. 28 do CDC, é muito criticado pela doutrina6, mas que, por outro lado, é largamente utilizado por nossos tribunais, surgindo, em vista deste preceito legal, a chamada Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica.

Depois do CDC entraram em vigor no Brasil outras leis que disciplinam a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, em destaque o art. 18 da Lei n.º 8.884/947, a qual dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, e o art. 4º da Lei n.º 9.605/988, que disciplina acerca de crimes e infrações administrativas por ações contra o meio ambiente, inclusive a responsabilidade civil e penal da pessoa jurídica9. Page 399

O Código Civil brasileiro de 1916 nunca tratou dessa matéria apesar de, em seu art. 20 prescrever que "as pessoas jurídicas têm existência distinta das dos seus membros", isto é, já existia expressamente o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Vê-se, assim, que somente com a vigência do novo Código Civil brasileiro, em 11 de janeiro de 2003, disciplinou-se de uma forma mais ampla a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, conforme dispõe o seu art. 50:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Quanto a esta nova redação legal de nosso atual Código Civil, cito o seguinte comentário de meu ex-professor, hoje estimado colega, juiz Dr. Pablo Stolze Gagliano:

"A grande virtude, sem sombra de qualquer dúvida, da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 - e todos reconhecem ser esta uma das grandes inovações do CC-02 - é o estabelecimento de uma regra geral de conduta para todas as relações jurídicas travadas na sociedade, o que evita que os operadores do Direito tenham de fazer - como faziam - malabarismos dogmáticos para aplicar a norma - outrora limitada a certos microssistemas jurídicos - em seus correspondentes campos de atuação (civil, trabalhista, comercial etc.)."

Destaco, então, mais uma inafastável observação ao estudo comparativo entre a legislação e a doutrina brasileira e argentina: o art. 50 do Código Civil brasileiro não limita a desconsideração da personalidade jurídica unicamente a pessoa dos sócios, mas, também, aos seus administradores, isto é, a terceiras pessoas não-sócias! Page 400

Tal dispositivo legal, com isso, passa a ser uma poderosa arma nas mãos dos juízes ao possibilitar "a responsabilização dos efetivos "senhores" da empresa, no caso - cada vez mais comum - da interposição de "testas-de-ferro" (vulgarmente conhecidos como "laranjas") nos registros de contratos sociais, quando os titulares reais da pessoa jurídica posam como meros administradores, para efeitos formais, no intuito de fraudar o interesse dos credores."10

Essa é uma valiosa regra acerca da efetividade da prestação jurisdicional que deve ser mantida tanto no Brasil, quanto na Argentina.

Com esse resumo de como está regulada a teoria ora investigada no ordenamento legal brasileiro, destaco que o mais relevante é mostrar a divisão doutrinária que no Brasil se deu, justamente em razão da discrepante disciplina legal: de um lado o art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, o artigo 4º da Lei n.º 9.605/98 e o artigo 18 da Lei 8.884/949, onde se encontra a Teoria Menor da desconsideração e, de outro, o art. 50 do Código Civil e o art. 28, caput, do CDC (Teoria Maior).

Veja-se que o CDC, por exemplo, conforme pacífica doutrina e jurisprudência, regula um micro sistema próprio de relações de consumo, entre fornecedor e consumidor. O seu controvertido art. 28, § 5º, tem a peculiaridade de se exigir, para a retirada do véu da pessoa jurídica em busca dos bens dos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT