Perspectivas para reflexoes sobre genero no campo juridico: Introducao.

AutorCampos, Ligia Fabris
CargoTexto en portugues

Desde os mais antigos e mais diversos movimentos feministas, o objetivo central tem sido denunciar a condicao social e a realidade da vida das mulheres, com a finalidade de transforma-las. Nessas aspiracoes, que hoje incluem os movimentos LGBT*QI*, o movimento negro, discussoes sobre classe, deficiencia, etnia, entre outros, o direito tem desempenhado um papel fundamental. De um lado, e visto como a forma privilegiada de poder, capaz de criar, legitimar e institucionalizar hierarquias. De outro, se discute se ele poderia ser utilizado para confrontar e superar tais assimetrias e desigualdades.

Se e verdade que o direito ocupa uma posicao chave para as reivindicacoes relativas a igualdade de genero, o mesmo nao se pode dizer a respeito das pesquisas sobre o campo juridico, onde esse debate ainda encontra pouco espaco. Pense-se, por exemplo, na escassa presenca de professores e pesquisadores que se dedicam precipuamente a investigar as relacoes entre direito e genero ou na ausencia de disciplinas que tematizem essas relacoes em faculdades de direito no Brasil. O mesmo se pode dizer a respeito do parco numero de publicacoes especializadas sobre a tematica. Trata-se, portanto, de uma reflexao que, nao obstante sua complexidade e sua importancia social, se encontra ainda muito pouco desenvolvida no campo juridico brasileiro.

Na linha de outras iniciativas que buscam suprir esse quadro, o presente Dossie da Revista Direito & Praxis e dedicado a debater as relacoes entre genero e direito de uma maneira ampla e interdisciplinar. Para tanto, foram convidados especialistas que desafiam o cenario academico descrito e se dedicam a analisar o papel do direito em uma dimensao fundamental na sociedade contemporanea: a das dominacoes de genero, considerando-o em perspectiva interseccional. Esperamos, com isso, oferecer uma contribuicao para o respectivo campo de pesquisa e para o avanco de sua institucionalizacao academica, especialmente no meio juridico.

O Dossie e aberto com o artigo inedito da professora de Direito Constitucional, Sociologia do Direito e Estudos de Genero da Universidade Humboldt de Berlim e juiza do Tribunal Constitucional alemao, Susanne Baer. "Desigualdades que importam", traduzido por mim, e fruto de sua palestra na sessao plenaria do ultimo Congresso da International Society of Public Law (ICONS), em junho de 2016, na mesma HU-Berlin. O texto aborda o estado das desigualdades na Europa hoje, as resistencias as transformacoes estruturais necessarias e aos usos dos instrumentos juridicos pertinentes para responder a essas situacoes. Enfrentando o caso especifico da grave crise migratoria contemporanea, Baer utiliza o julgamento do Tribunal Constitucional alemao relativo a beneficios para candidatos a asilo para mostrar como as questoes de genero, longe de serem diferenciadas, estao imbrincadas nesse contexto e precisam ser levadas a serio. O artigo propoe que os tres direitos fundamentais estabelecidos na Constituicao alema apos a Segunda Guerra Mundial liberdade, igualdade, dignidade--sejam vistos nao de uma perspectiva hierarquica, mas como vertices de um triangulo, em que a interpretacao de um deles--como, por exemplo, a igualdade--deve ser feita a luz do sentido dos outros dois--nesse caso, a partir da liberdade e dignidade. Dessa forma, afirma Baer, podemos identificar e responder adequadamente as desigualdades que importam.

O segundo artigo, de minha autoria, inaugura o bloco de tres contribuicoes sobre questoes de identidades e direitos de pessoas trans. O texto reflete sobre a regulacao dos direitos de pessoas trans no Brasil e na Alemanha. Ao perguntar sobre o que justifica que o Estado, por meio do direito, regule a identidade de genero das pessoas--isto e, o que elas "sao" (se homens ou mulheres) e sob que condicoes podem "vir-a-ser"--, conclui que o direito assume a tarefa de guardiao da heteronormatividade cisgenera. O argumento central do artigo e de que tais regulacoes variam de acordo com a interpretacao da natureza da cirurgia de transgenitalizacao, impulsionada pelo discurso medico: o que era considerado um dano (amputacao, mutilacao), torna-se beneficencia (beneficio terapeutico), e vice-versa. De acordo com tais definicoes, a jurisprudencia proibiu, inicialmente, a cirurgia (dano); depois, a considerou requisito obrigatorio para o reconhecimento juridico da identidade de genero (beneficio terapeutico); depois, voltando a natureza inicial, chega-se a suspensao da cirurgia como requisito obrigatorio (dano, mutilacao). O artigo sustenta que essa dinamica na mudanca interpretativa e observavel nos dois paises, e defende um passo alem: a necessidade de se desvincular do estigma da patologizacao e reconhecer a diversidade das manifestacoes das identidades trans, do direito ao proprio corpo e do livre desenvolvimento da personalidade. Isto e: um rompimento com a heteronormatividade.

O terceiro artigo, de Berenice Bento, e de grande relevancia para os estudos de genero em geral, e para a discussao sobre direitos de pessoas trans, em especial. A autora faz uma importante historia politica da patologizacao das identidades trans a partir da analise das negociacoes em torno da revisao do DSM para o lancamento de sua quinta versao, o DSM-V, manual das doencas psiquiatricas da associacao de psiquiatria dos EUA, que serve de referencia em todo o mundo. A partir do enfoque na categoria patologica "disforia de genero" e da secao "formulacao cultural", a autora indaga qual entendimento sobre genero fundamenta essa categorizacao patologica e, ainda, como um conceito culturalmente forjado (genero) pode vir a ser uma categoria diagnostica. Nesse sentido, para compreender se haveria uma geopolitica especifica na formulacao desses conceitos, que expressaria visoes de mundo tipicas dos paises ocidentais, a autora passa a investigar as/os membros integrantes dos Grupos de Trabalho responsaveis pelo processo de revisao do DSM (do IV para o V): quem sao elas/eles, quais sao seus vinculos institucionais, qual a bibliografia utilizada e citada nos documentos que os grupos de trabalho produziram. Apos essa detalhada analise, o artigo traz conclusoes no minimo...

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