Perspectivas Regulatórias Sistêmicas sobre o uso Agrícola de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) no Brasil

AutorAdamir de Amorim Fiel
CargoProcurador do Distrito Federal, Advogado, MBA em Agronegócios pela ESALQ/USP
Páginas1-17
Perspectivas Regulatórias Sistêmicas sobre o uso Agrícola de OGMs no Brasil (p. 1-18) 1
FIEL, Adamir de Amorim.
Perspectivas Regu latórias Sistêmicas sob re o uso Agrícola de Organismos Gene ticamente
Modificados - OGMs no Bras il
.
Revista de Direito Setorial e Regulatório
, Brasília, v. 4, n. 2, p. 1-18,
outubro 2018.
Perspectivas Regulatórias Sistêmicas sobre o uso Agrícola de
Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) no Brasil
Systemic Regulatory Perspectives on the Agricultural Use of Genetically
Modified Organisms (GMO) in Brazil
Submetid o(
submitted
): 09/12/20 17
Adamir de Amorim Fiel*
Parecer(
revised
): 08/01/ 2018
Aceito(
accepted
): 01/02/2 018
Resumo
Propósito
O ambiente regulatór io do uso de OGMs no Brasil está inser ido numa miríade
de co mpetências admini strativas, submet endo-se a regras jurídicas cujo conteúd o é
informado e dominado po r linguagem técnic a especializada. Em razão disso, faz-se
necessária uma aborda gem jurídica que, para além de valer-se de um direito merame nte
formal (muitas vezes ape nas instrumental izado por outro sistema) e pa ra além de
simplesmente mater ial (final isticamente pensado a partir de re ferenciais pol íticos),
perceba-se reflexiv amente, de modo a preservar sua autorreferibilida de, a ar ticular os
demais sistemas en volvidos e garantir uma maior integração social n o que toca à
participação dem ocrática e às expectativas quanto à regulaç ão em casos como esses.
Propõe-se abordar pers pectivas regulatóri as sistêmicas para os processos regulatórios do
uso de organis mo geneticamente modific ados no Brasil.
Metodologia/abor dagem/design
Utilizou-se do conceit o de Est ado R egulador e de
direito regulatório sob a ótica das ideias desenvolvidas, respectivamente, em perspecti va
sistêmica, por Jürgen Habermas e por Gunther Teubner.
Resultados
A regulação do uso de OGMs no Brasil demanda uma maior integração
social, o que pod e ser alcançado por meio da uti lização do direito reflexivo n o contexto de
um Estado Re gulador.
Originalidade/rel evância do texto
O artigo preenche lacuna no estudo do direit o
regulatório ao apr esentar reflexão jurídica sobr e o processo de aprovação do u so de
organismos geneticament e modifi cados (OG M) no Brasil, apresentado proposta teórica
centrada no di reito enquanto sistema ref lexivo de um Estado Reg ulador.
Palavras-chav e: regulação, sistema, Estado Regulador, direito r eflexivo, OGM.
Abstract
Purpose
The regulatory environment for the use of GMOs in Brazil is embedded in a
myriad of admini strative competences, sub mitting to legal rules whose conte nt is informed
and domin ated by specialized technical language. For this reason, i t is necessary to have
a legal ap proach that, in addition to havi ng a purely formal right (ofte n only used by
another s ystem) and bey ond mere materi al (finalistically thought from po litical
references), realizes in order to arti culate the other systems involv ed and ensure greater
*
Procurador do Distr ito Federal, Advogado, MB A em Agronegócios pela ESALQ/ USP. E-
mail: adamirfiel@gmail.com.
2
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social inte gration with regar d to democratic participation and expectations of regu lation
in cases such as these. This article addresses systemic regulatory perspectives for the
regulatory pro cesses of the use of genet ically modified organism s in Brazil.
Methodology/a pproach/design
The concept of Regulatory State and r egulatory law was
used from the perspective of Jür gen Habermas and Gunther Te ubner's ideas developed
respectively in a systemic perspective.
Findings
The regulation o f the use of GMOs in Brazil dem ands a greater social
integration, whic h can be achieved using reflexive law in the context of a Regulat ory State.
Originality/valu e
The article fills a gap in the study of the r egulatory right when
presenting legal reflection on the approval process of the use of ge netically modified
organisms (GM Os) in Brazil, presented theoretical propo sal focusing on law as a reflexive
system of a R egulatory State.
Keywords: r egulation, system, Regulat ory State, reflexive law, GMO.
Introdução
O uso agrícola de organismos geneticamente modificados OGM,
também conhecidos como transgênicos, tem suscitado muitas controvérsias pelo
mundo. Mesmo no domínio dito técnico-científico parece haver um impasse.
Pesquisas científicas têm respaldado ambos os lados do debate: tanto a
proibição ou ao menos severa restrição ao uso de OGM (supostamente danoso à
saúde humana e ao meio-ambiente) quanto a permissão (ou até mesmo
imprescindibilidade de seu cultivo para efeito de garantir a segurança alimentar
da população mundial). Se, de um lado, tem-se carta aberta assinada por 815
cientistas de 82 países recomendando a suspensão do uso de transgênicos em todo
o mundo em razão dos perigos que gerariam para a biodiversidade, segurança
alimentar e saúde humana e animal
1
, por outro lado, também tem-se estudo
publicado pela Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos
Estados Unidos, que contou com a participação de 50 pesquisadores, revisou mais
de 900 estudos sobre alimentos transgênicos e concluiu pela segurança dos
transgênicos para humanos, animais e meio-ambiente
2
.
No Brasil não tem sido diferente. Encontra m-se desde posição contrária
manifestada com veemência pelo Greenpeace
3
e p ela Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (que destaca os prejuízos decorrentes do uso de agrotóxicos - ou
1
Carta aberta de cientistas pedindo a suspensão do uso de t ransgênicos. Disponível em:
. Acesso em: 09. Dez. 2017.
2
National Academi es of Sciences, Engineering, and Medicin e. Genetically Enginee red
Crops: Experienc es and Prospects. Washington, DC: The Natio nal Academies Press, 2016.
Disponível e m:. Acesso e m: 09. Dez. 2017.
3
Disponível em:
alimentacaoB >. Acesso em: 09. dez. 20 17.
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defensivos agrícolas - normalmente associado ao cultivo de OGM)
4
até posição
favorável e entusiasta à biotecnologia manifestada pela Embrapa
5
, detentora
inclusive de algumas patentes transgênicas.
Desde a entrada em vigor da Lei de Biossegurança, muito se tem discutido
a respeito, inclusive quanto às idas e vindas na aplicação da legislação pertinente,
sobretudo no que toca às normas regulatórias do procedimento para aprovação de
cultivo e comercialização de OGM no Brasil.
O tema, em li nhas gerais, coloca luzes sobre questões humanas
fundamentais, tais co mo, segurança alimentar, saúde humana, preservação do
meio-ambiente. Sem falar em questões eco nômicas não menos importantes:
proteção da ordem econômica constitucional, espec ialmente em relação à
formação de oligopólios e oligopsônios, assim como preservação da livre
iniciativa no que toca particularmente à garantia de mercados agrícolas para
pequenos produtores rurais. Não obstante a relevância do tema, a produção
jurídica a respeito da regulação sobre OGM ainda é bastante escassa.
Nesse contexto, utilizou -se como problema de pesquisa a seguinte
indagação: apó s a edição da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), quais
seriam as aberturas semânticas, funcionalmente orientadas à integração social,
disponíveis no sistema jurídico regulatório do uso agrícola de organismos
geneticamente modificados OGM no Brasil?
Na trilha para encontrar resp ostas, procedeu-se ao levanta mento de dados
empíricos do ambiente regulado, assim como procedeu-se à identificação das
estruturas administrativo-burocráticas responsáveis pelos procedimentos
regulatórios adotados em casos que tais.
A hipótese defe ndida no presente trabalho é a de que a regulação do uso
agrícola de OGM no Brasil deve incorporar valores que vão além dos puramente
econômicos. Deve prestigiar valores incorporados à Constituição Federal de 1988,
conectando-se ao pacto democrático, superando a simples legitimidade
procedimental e favorecendo não somente o exercício da cidadania, mas também
e principal mente a fruição e mpírica d e direitos f undamentais. Nesse sentido, a
regulação sob um prisma mais substantivo afigura-se como importante alternativa
à (re)significação de sistemas normativos autopoiéticos. Para tanto, utilizer-se-á
dos referenciais teóricos trazidos por Jürgen Habermas e por Gunther Teubner
para o conceito de Estado Regulador e direito reflexivo, respectivamente.
4
Dados da ABRASEM (Asso ciação Bra sileira de Sement es e Mudas). Disponí vel
em: . Acess o em: 09. Dez. 2017.
5
Disponível em: . Acesso em:
09. Dez. 2017.
4
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O s istema jurídico brasileiro referente ao uso agrícola de OGM: uma
miríade de competências administrativas
No cenário internacional, existem basicamente duas vertentes relativas à
regulação de OGMs: (i) a americana e (ii) a europeia. A (i) americana possui uma
das legislações mais complexa do mundo, pois envolve a participação de várias
agências e órgãos estatais nos procedimentos atinentes aos transgênicos. Porém,
as tarefas administrativas divididas entre as agências e órgãos são apenas duas:
deliberação e fiscalização. Afora isso, a política americana para transgênicos
mantém-se predominantemente liberal e verificação é sempre a posteriori,
responsabilizando a empresa desenvolvedora da biotecnologia por eventuais
danos causados a terceiros. Além disso, utiliza o princípio da equivalência
substancial nos processos sobre OGMs: baseia-se na comparação entre alimentos
convencionais e alimentos geneticamente modificados . É justamente a utilização
desse princípio que faz com que não seja m exigidas a segregação e a rotulagem
de alimentos transgênicos nos E stados Unidos. Por outro lado, a (ii) europeia
fundamenta-se no princípio da precaução, reclamando Estudo Prévio de Impacto
Ambiental (EIA) p ara aprovação do cultivo de OGMs. A União Europeia
reconhece não apenas a necessidade de proteger o meio ambiente, bem como o
acesso à informação e à participação dos interessados no processo de tomada
decisão. O processo de autorização de um novo OGM na Europa precisa passar
por três fases: submissão do projeto, análise da segurança e decisão final para fins
de registro. Projeto submetido para apreciação já deve conter a identificação do
organismo genet icamente modificado, com seus componentes e características,
estudos de impacto ambiental, avaliação da equivalência com produto
convencional, sugestões para rotulagem e proposta de monitoramento para
período de pós-liberação comercial (MARICONI, 2014, p. 118-119).
O ordenamento jurídico brasileiro adotou o princípio da precaução. Já em
nível constitucional a preocupação do Constituinte Originário com o meio
ambiente ocupou capítulo próprio. O tratamento normativo-constitucional do uso
e da comercialização de OGMs no Brasil veio expresso nos seguintes dispositivos:
TÍTULO VIII
Da Ordem Social
CAPÍTULO VI
DO MEIO AMBIE NTE
Art. 225. Todos têm direito ao me io ambiente ecologicame nte
equilibrado, bem de uso c omum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, i mpondo-se ao Poder Público e à colet ividade o dever de
4
efende-lo e preserv á-lo para as presentes e futuras geraçõe s.
§ 1º Para assegurar a efe tividade desse direito, i ncumbe ao Poder
Público: (...)
II preservar a di versidade e a integridade do pa trimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
material genético; (...)
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IV exigir, n a forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significat iva degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambi ental, a que se dará
publicidade;
V controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vi da, a qualidade
de vida e o meio ambi ente;
Em nível infraconstitucional, a primeira iniciativa legislativa a respeito dos
OGMs surgiu com a Lei nº 8.974/1995 (antiga Lei de Biossegurança). Em seu
artigo 1º, a lei enunciava estabelecer normas de segurança e mecanismos de
fiscalização no uso das técnicas de engen haria genética para construção,
cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e
descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a
vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio
ambiente. A referida lei, mediante alterações incluídas pela Medida provisória
nº 2.191, de 23 de agosto de 2001, também previra a criação da Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instância colegiada
multidisciplinar vinculada ao Ministéri o da Ciência e Tecnologia, atribuindo-
lhe a finalidade de prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao
Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política
Nacional de Biossegurança relativa a OGM, bem como no estabelecimento de
normas técnicas de segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à
proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente. Em nível
infralegal, a CTNBio fora instituída pelo Decreto nº 1.752/1995.
Apesar de a CTNBio representar instância técnica máxima no contexto
dos OGMs, suas delibera ções pressupõem ou precisam interagir com
manifestações de agências reguladoras, como é o caso, por exemplo, da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e/ou de Ministérios, tais como o
Ministério da Saúde (MS), Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA), Ministério do Meio Ambiente (MMA), os q uais
emitem certificados, autori zações e/ou encaminha m informações para a
CTNBio.
Em 1997, a Lei nº 9.456 (Lei de Proteção aos Cultivares) passa a permitir
que o responsável pelo desenvolvimento de um novo cultivar obtido por meio
de modificação genética registre a variedade e obt enha a respectiva
propriedade intelectual, podendo cobrar
royalties
dos que a cultivarem. Essa
lei complementou a Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), que não
permitia o registro e a cobrança sobre a aplicação de tecnologia sobre seres
vivos.
Em 2002, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) editou a
Resolução nº 305, que dispõe sobre o Licenciamento Ambiental para pesquisa
6
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e comercialização de OGMs, asseverando a necessidade do EIA/RIMA para as
atividades relacionadas com OGMs e seus derivados. Essa resolução alinha-se
às diretrizes da Política Nacional de Meio Ambi ente, trazidas pela Lei nº
6.938/81, dentre as quais destaca-se a necessidade de licenciamento ambiental
para atividades potencial ou efetivamente poluidoras do meio ambiente.
Em 24 de março de 2005, a Lei nº 11.105 (Lei da Biossegurança) vem
regulamentar os incisos II, IV e V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal
de 1988; dispor sob re a Política Nacional de Biossegurança, criando o Conselho
Nacional de Biossegurança CNBS; reestruturar a Comissão T écnica Nacional
de Biossegurança CTNBio; e, principalmente, estabelecer novas normas de
segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados OGM e seus derivados. A lei, ainda, atribui novas
competências ao Ministério da Saúde, ao Minist ério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento e ao Ministério do Meio Ambiente, sem falar na Secretaria
Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República.
O Conselho Nacional de Biossegurança, uma novidade trazida pela Lei nº
11.105/2005, é composto pelos seguintes membros, o que revela a complexidade
interativa que a matéria suscita já no âmbito administrativo: (i) Ministro de Estado
Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que o presidirá; (ii) Ministro de
Estado da Ciência e Tecnologia; (iii) Ministro de Estado do Desenvolvimento
Agrário; (iv) Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; (v)
Ministro de Estado da Justiça; (vi) Ministro de Estado da Saúde; (vii) Ministro de
Estado do Meio Ambiente; (viii) Ministro de Estado do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior; (ix) Ministro de Estado das Relações E xteriores;
(x) Ministro de Estado da Defesa; e (xi) Secretário Especial de Aqüicult ura e
Pesca da Presidência da República.
A CTNBio, por sua vez, sofre alterações marcantes em sua composição.
Composta por titulares e suplentes, designados pelo Ministro de Estado da Ciência
e Tecnologia, é constituída por cidadãos brasileiros de reconhecida competência
técnica, de notória atuação e saber técnicos, com grau acadêmico de doutor e com
atividade profissional nas ár eas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde
humana e animal ou meio ambiente, sendo (i) 12 (doze) especialistas de notório
saber científico e técnico, em efetivo exercício profissional: (a) 3 (três) da área de
saúde humana; (b) 3 (três) da área animal; (c) 3 (três) da área vegetal; (d) 3 (três)
da área de meio ambiente; (i i) um representante de cada um dos seguintes
órgãos, indicados pelos respectivos titulares: (a) Ministério da Ciência e
Tecnologia, (b) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento,
(c) Ministério da Saúde, (d) Ministério do Meio Ambiente, (e) Ministério do
Desenvolvimento Agrário, (f) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior, ( g) Ministério da Defesa, (h) Secretaria Especial de
Aquicultura e Pesca da Presidência da República e (i) Ministério das Relações
Exteriores; (iii) um especialista em defesa do consumidor, indicado pelo Ministro
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da Justiça; (iv) um especialista na área de saúde, indicado pelo Ministro da Saúde;
(v) um especialista em meio ambiente, indicado pelo Ministro do Meio Ambiente;
(vi) um especialista em biotecnologia, indicado pelo Ministro da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento; (vii) um especialista em agricultura familiar, indicado
pelo Ministro do Desenvolvimento Agrário; e (viii) u m especialista em saúde do
trabalhador, indicado pelo Ministro do T rabalho e Emprego. A CTNBio, ao
menos formalmente, contempla uma grande variedade de interesses e perspectivas
relativas aos OGMs, garantindo-lhes representatividade.
A nova Lei de Biossegurança também cria o Sistema de Informação de
Biossegurança (SIB), que oferece informações completas sobre os produtos e
projetos relacionados à biotecnologia e biossegurança no país, o que caminha
na direção de oferecer maior transparência aos processos de apro vação. Mas a
atuação da CTNBio não se esgota na aprovação ou rejeição do OGM.
Juntamente com outros órgãos fiscalizadores (Ministérios relacionados, por
exemplo), deve controlar e monitorar todas as etapas do processo, desde a
pesquisa até a liberação comercial e o eventual consumo humano de
transgênicos, avaliando não somente a empresa interessada, mas também o
produto a ser desenvolvido ou já comercializado.
Um dado interessante: o parágrafo único do artigo 10 da Lei de
Biossegurança enuncia categoricamente:
CAPÍTULO III
Da Comissão Técni ca Nacional de Biossegurança CTNBio
Art. 10. Omissis.
Parágrafo único. A CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e
o progr esso técnico e ci entífico nas áreas de bi ossegurança,
biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua
capacitação para a proteção da saúde hu mana, dos animais e das
plantas e do meio a mbiente.
Do ponto de vista procedimental, primeiro, a pesquisa com OGM só
pode começar após o registro da empresa na CTNBio para obtenção do
Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB). Para tanto, a empresa
interessada, dentre outros requisitos, precisa apresentar idoneidade financeira,
criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio), descrever a finalidade
da atividade a ser desenvolvi da, bem como classificar o produto, relacionar os
organismos que serão manipulados. Na sequência, precisa obter perante os
respectivos órgãos fiscalizadores autorização para desenvolvimento da pesquisa
com organismos geneticamente modificados. A partir disso, inici am-se os
procedimentos para obtenção, junto ao MAPA, do registro e liberação para
desenvolver atividades de pesquisa em áreas confinadas (laboratórios e estufas).
Concluída a pesquisa em área confinada, os resultados devem ser avaliados pela
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CTNBio, que emite parecer técnico prévio conclusivo sobre a liberação
planejada do OGM no meio ambiente. Liberada a pesquisa em campo pela
CTNBio, as atividades de plantio serão iniciadas com a obtenção da Autorização
Temporária de Experimento de Campo (ATEC) do MAPA e da Licença de
Operação para Área de Pesquisa (LOAP) do MMA, que já avaliam os riscos e o
impacto da liberação do produto transgênico no meio ambiente (AMÂNCIO et
al., 2009, p. 79-108). A aprovação final do OGM pressupõe, portanto, em linhas
gerais, o percurso pelas seg uintes etapas: Comissão Interna de Biosseg urança
(CIBio), Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB), Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio), que delibera considerando dossiê
elaborada pela CIBio. Caso o OGM seja aprovado, ai nda deve atender aos
requisitos fixados por órgãos de registro e inspeção pertinent es (tais como
MAPA, IBAMA, ANVISA, MPA) para só então ser registrado para produção e
comercialização. O Conselho Nacional de Biossegurança (CNB) também pode
tomar decisão final sobre o OGM baseado em fatores socioeconômicos.
Para libera ção comercial dos OGMs é imprescindível possuir licenças
ambientais para as fases pré-comercial e comercial perante o MAPA. Pelo
menos nesse momento, o EIA/RIMA seriam essenciais para a ava liar o OGM e
para planejar a liberação de seu plantio com objetivo comercial no país, o que,
em tese, demandaria análise de macrozoneamento por espécie no território
brasileiro. De mais a mais, contud o, até hoje o CTNBio não costuma exigir o
EIA/RIMA para aprovar OGMs (MORICONI et al., 2014, p. 125).
Destaque-se que, a partir de 2006, o MAPA passou a fiscalizar mais
intensamente o plantio de OGMs no país. Nesse sentido, com objetivo de se
adequar às exigências da Nova Lei de Biossegurança, criou o Programa de
Fiscalização de Atividades com OGM (FISCORGEN), em conjunto com a
Coordenação Específica de Biossegurança de OGM na Secretaria de Defesa
Agropecuária (CBIO/DAS) e com outros órgãos. E mais: dada a correlação
bastante comum entre o uso de OGMs e o uso de agrotóxicos (ou defensivos
agrícolas), no caso de produtos com finalidade biopesticida também é
necessário obter autorizações específicas perante o MAPA e a ANVISA.
Entretanto, ainda existe grande controvérsia a respeito de se exigir ou
não o EIA/RIMA já durante o processo de aprovação do OGM no âmbito do
CTNBio. Discute-se se a ausência de tal requisito feriria o requisito
constitucional do estudo prévio de impacto ambiental para atividades
potencialmente causadoras de danos ao meio ambiente, assim como se isso
feriria, em última instância, o princípio da precaução, adotado pelo
ordenamento jurídico brasileiro (MORICONI et al., 2014, p. 120) .
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O mercado de OGMs no Brasil: dados empíricos do ambiente regulado
Segundo dados do Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações em
Agrobiotecnologia (ISAAA)
6
, o cultivo de OGM no mundo já alcançara em 2015
a marca de 181,5 milhões de hectares em 28 países. Nesse universo, o Brasil
ocupava a segunda posição, com 42,2 milhões de hectares plantados, ficando atrás
apenas dos Estados Unidos, que já contava com 73,1 milhões de hectares. Ocorre,
contudo, que as culturas geneticamente modificadas j á plantadas nos Estados
Unidos se mostra m bem mais diversificadas (soja, milho, algodão, canola,
abóbora, mamão papaia, alfafa, beterraba) do que as do Brasil, que cultiva
basicamente soja, milho e algodão transgênicos. A propósito, em idêntico
relatório sobre a produção de alimentos transgênicos no mundo, já atualizado para
ano de 2016, o ISAAA apontou o Brasil como o país com maior crescimento na
adoção de transgênicos do planeta (incremento de 11% em relação ao ano de 2015,
o que equivale à aproximadamente mais 4,5 milhões de hectares plantados com
OGM). O documento também trouxe as seguintes taxas de adoção: 96,5%, para a
soja geneticamente modificadas, 88,4%, para o milho transgênico e 78,3% para o
algodão transgênico.
Em Informativo de Biotecnologia (2015), a Consultoria Céleres
7
aponta
como a adoção d e transgênicos está d istribuída no território brasileiro consoante
ordem crescente de utilização nos Estados: Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do
Sul, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas, Bahia e outros. Registre-se, ademais,
ilustrativamente, as altas taxas de adoção da bio tecnologia para a cultura da soja
transgênica nos Estados: Maranhão (91,9 %), Piauí (94,4%), Bahia (91,6%),
Minas Gerais (95,1%), São Paulo (93,8%), Paraná (96%), Santa Catarina (96,4%),
Rio Grande do Sul (98,6%), Mato Grosso (95,8%), Mato Grosso do Sul (96,9%),
Goiás (95,4%) e Distrito Federal (96,5%).
Segundo dados da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
CTNBio (2017)
8
, o Brasil já aprovou para comercialização 75 (setenta e cinco)
plantas ge neticamente modificadas, sendo 13 (treze) espécies de soja, 44
(quarenta e quatro) de milho, 15 (quinze) de algodão, 1 (uma) de feij ão, 1 (uma)
de eucalipto e 1 (uma) de cana -de-açúcar. Em aproximadamente 95% (noventa e
cinco por cento) dos casos, os requerentes se restringiram às empresas Monsanto,
Basf, Bayer, Dow, D u Pont ou Syngenta, as chamadas gigantes do agronegócio.
Dados da Associação Brasileira de Sementes e Mudas (ABRASEM), demonstram
que as empresas do setor de sementes modificadas geneticamente faturaram mais
de U$ 26 bilhões no ano de 2011, sendo que a grande maioria das patentes são de
propriedade das seis grandes e mpresas transnacionais mencionadas no parágrafo
6
Disponível e m: . Acesso em: 09. dez. 2017 .
7
Disponível e m: . Acesso em: 09. Dez. 2017.
8
Disponível e m: < http://ctnbio.mcti.go v.br/>. Acesso em: 26. set. 2017
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anterior. Aliás, desde 2016, esse mercado já co ncentrado das multinacionais de
insumos para o agronegócio tem ficado cada vez mais concentrado. Primeiro com
o anúncio da fusão da Dow c om a Dupont, duas empresas americanas. Depois
com a compra da suíça Syngenta p ela ChemChina, estatal chinesa. E, por fim,
com a compra da americana Monsanto pela alemã Bayer
9
.
Essas empresas, também conhecidas com gigantes do agronegócio, em
grande medida não só controlam o mercado e as pesquisas de transgenia no
mundo, como ta mbém são p roprietárias de 59,8% de todas as sementes
transgênicas comercializadas, de 76,1% de todos os agroquímicos (agrotóxicos ou
defensivos agrícolas) vendidos e de 76% de todo o investimento do setor privado
nesta área
10
.
De fato, de maneira correlata, para além de ocupar o lugar de segundo
maior consumidor de OGM no mundo (ficando atrás apenas dos Estados Unidos),
desde 2008 o Brasil já é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta
11
.
Um último registro, igualmente relevante e não menos inquietante para a
compreensão do mercado de OGMs no Brasil enquanto objeto de regulação, é a
existência (nem sempre excepcional) dos chamados casos de “portas giratórias”:
casos de pessoas que saem das e mpresas de biotecnologia, passam a trabal har na
esfera pública elaborando normativos para a área inclusive e depois voltam a
trabalhar nas empresas desse setor
12
. Sem falar nos casos de suposta ausência de
debate cientí fico p ara efeito de aprovação ou rejeição de OGMs no âmbito do
próprio CTNBio, conforme destaca Paulo Brack, Professor do Instituto de
Biociência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e e x-
integrante do próprio CTNBio, ”parte da CTNBio é co mposta por membros q ue
são ligados a empresas de biotecnologia”, no que é acompanhado por Jean Ma rc
von der W eid, dirigente da organização Assessoria e Serviços a Projetos em
Agricultura Alternativa (AS-PTA), que, em entrevista à Repórter Brasil (2013),
afirmou:
não há no CTNBio nenhuma avali ação dos conflitos de interesses, e o governo
não se preocupa com isso. Se quiséssemos uma avaliação isenta, os cientistas
9
Gigantes do agronegó cio: o risco das fusões para a agroecol ogia. Brasil de Fato. 19 de
janeiro de 2017. Disponív el em: . Acesso
em: 09. Dez. 2 017.
10
Disponível e m: . Acesso em: 09. dez. 2017.
11
Disponível em:
consome-agrotoxicos-no- mundo.ghtml>. Acesso e m: 09. dez. 2017.
12
Folha de São Paulo.“ Ex-advogado de múlti trabalh ou no decreto”, 24 nov. 2005.
Disponível em: Ac esso
em: 09. Dez. 2 017
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membros não poderia m partici par de pes quisas de de senvolvimento de
transgênicos, pois são partes interess adas nas liberações
13
Consigne-se, enfim, por oportuno, alteração legislativa ao texto original da
Lei nº 11.105, de 25 de março de 2005 (Lei de Bio ssegurança), que, por meio da
Lei nº 11.460/2007, acrescentou o §8º-A ao artigo 11 da Lei de Biossegurança
para reduzir o quórum deliberativo da CTNBio de 2/3 (dois terço) para a maioria
absoluta dos seus membros, facilitando, assim, o processo de registro e aprovação
de OGMs no Brasil.
Perspectivas regulatórias funcionalment e orientadas à interação
sistêmica: pela construção de um direito reflexivo no contexto de um
Estado Regulador
Apresentadas considerações sobre a arquitetura jurídica brasileira
concebida para fins de regulação dos OGMs e sobre o mercado (aqui
compreendidos os principais atores econômicos e produtos geneticamente
modificados amplamente utilizados no Brasil), retoma-se a pergunta de pesquisa
lançada linhas atrás: após a edição da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança),
quais seriam as aberturas semânticas, funcionalmente orientadas à integração
social, disponíveis no sistema jurídico regulatório do uso agrícola de organismos
geneticamente modificados OGMs no Brasil?
Na trilha para apresentar uma resposta a tal indagação, abordar-se-á (1)
classificação das teorias regulatórias, (2) o conceito de Estado Regulador e direito
regulatório na perspectiva de integração funcional entre direito formal, direito
material (Jürgen Habermas) e direito reflexivo (Gunter Teubner) e, por fim, (3) a
interação entre princípios e regras para efeito de regulação.
As teorias sobre regulação podem ser divididas em três grandes
categorias: interesse público, interesse privado e institucionalistas. A primeira
(teorias do interesse público) consideram que o legislador e os agentes
reguladores buscam fins coletivos e o bem -estar social. A segunda (teorias do
interesse pri vado) não acreditam no conceito de “interesse público”, ao que
defendem que a regulação, de um modo g eral, atende grupos de interesses. A
terceira e última catego ria (teorias institucionalistas ) enfatizam a
interdependência entre Estado e particulares na persecução conjunta de
benefícios privados e públicos. As teorias regulatórias, contudo, mesclam
elementos descritivos e prescritivos, enfocando ora a razão do surgimento da
regulação, ora a explicação dos objetivos que ela deveria atingir (LOPES, 2018,
p. 168).
13
Thuswohl, Maurício. “Influência sobre CTNBio é trunfo das gigantes da transge nia”.
Repórter Br asil. Disponível em:
ctnbio-e-trunfo-das-gigantes-da-transg enia/>. Acesso em: 09. dez. 2017.
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São teorias do interesse público: (a) bem-estar econômico (busca corrigir
falhas de mercado, de modo a garantir a máxima eficiência do próprio
mercado); (b) abordagens substantivas do interesse público (propõe
justificativas para regulação, tais como justiça social, redistribui ção e
participação política, que vão além de simplesmente corrigir imperfeições do
mercado); (c) redistribuição (pretende distribuir prestações compensatórias em
favor de indivíduos em situação de fragilidade); (d) valores coletivos (atenderia
valores coletivos expressos em manifest ões de cidadania); (e) diversidade de
preferências; (f) integração dos hipossuficientes; (g) preferências endógenas
(busca inibir impulsos que, da ótica do Estado, seriam prejudiciais para o
indivíduo); (h) gerações futuras, animais e meio ambiente; (i) concepções
procedimentais (busca construir procedimentos que favoreçam o diálogo
social) (LOPES, 2018, p. 170-175).
São teorias do interesse privado: (a) captura (a regulação é controlada
pelos próprios agentes regulados); (b) regulação econômica (explica a regulação
como resp osta do Estado às demandas dos indivíduos, agentes racionais que
buscam maximizar seus próprios interesses privados) (LOPES, 2018, p. 175-
179).
São teorias institucionais: (a) regulação responsiva (para além da
dualidade entre interesses públicos e interesses privados, encara a regulação
como fenômeno complexo que deve integrar grupos de interesse público - GIP
habilitados a evitar a degeneração da relação entre reguladores e regulados,
podendo responsabilizá-los inclusive); (b) organização do espaço regulatório
(dentre outros objetivos para garantir um ambiente regulatório adequado,
destacam-se o controle das condições de entrada de novos competidores e a
qualidade dos produtos e serviços oferecidos) (LOPES, 2018, p. 179 -181).
Situe-se, aqui, para os propósitos deste trabalho, uma ab ordagem
institucional da regulação para o uso ag rícola de OGMs no Brasil. Isto porque,
como bem contextualiza Lopes (2018), sob o enfoque institucionalista, a
dinâmica regulatória está além do indivíduo maximizador de seu próprio bem-
estar, típico das teorias de interesses privados, assim como também está além
do foco de correção de simples imperfeições de mercado ou persecução de
interesses públicos específicos, típico de teorias de interesse público. Para as
teorias institucionais, os agentes econômicos regulados movimentam-se em
espaços regulatórios, segundo regras, procedimentos e outros condicionantes
sociais. Mais precisamente:
“A diferença entre atores privados e públicos acaba embaçada, pois o que se tem
são legisladores, agên cias reguladoras, empresas reguladas e c onsumidores
inseridos num ambiente complexo, em que cada um dos agentes desempenha
um papel institucion al ou sistemicamente moldado” (p. 180).
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A regulação é uma forma de intervenção do Estado na economia. O direito,
assim como seus respectivos paradigmas de Estado encontram-se e m crise. Do
Estado de Direito, orientado pela lógica de subsunção for mal de fatos a normas,
para o Estado de Bem-Estar Social, orientado pelo atingimento de finalidades
sociais decorrentes da moral política, até o Estado Democrático de Direito, carente
de densidade significa para efeito de alcançar aspirações sociais materializadas
em resultados práticos, concretos e justos. O direito, assim, precisa encontrar
caminhos que reorganizem e reorientem a interação sistêmica entre o sistema
econômico, o sistema político-burocrático e sistema social, permitindo que cada
um desses sistemas não só preserve sua própria autonomia e autorreferibilidade,
como também conserve aberturas interativas que favoreça m a (des/re)construção
de novos significados regulatórios.
Enquanto o Estado de Direito usa como paradigma o direito formal,
dando os contornos da autonomia da ação econômica e da ação social, Estado
de Bem-Estar Social usa o paradigma do direito material, orientando a
realização de finalidades sociais por meio do direito. O Estado Regulador, por
sua vez, usa o paradigma da reflexividade, como um modo de controle jurídico
da autorregulação social (TEUBNER, 1988, p. 302). Ocorre que premissas
condicionais típicas do Estado de Direito, assim como premissas finalísticas
típicas do Estado de Bem-Estar Social deixaram de ser suficientes diante das
normas procedimentais e organizacionais inseridas em sistemas com lógicas
internas próprias. Mesmo a apreensão de racio nalidades pelo direito pode
reduzir-lhe a um mero instrumento de outro sistema, desfigurando sua
racionalidade jurídica, o que, por si só, pode gerar um a crise de regulação
(LOPES, 2018, 110).
A propósito, Habermas (2002, p. 47) considera que crises de legitimação
do capitalismo organizado não são de fato resolvidas. apenas um
deslocamento de um sist ema para o outro, e o Estado intervencionista
intercepta crises econômicas primárias, absorvendo-as no sistema político, no
qual surgem novos fenômenos. Diante do problema da legitimação, sobretudo
em razão da grande quantidade de competências e tarefas atribuídas à
administração, torna-se inadequado conceber uma administração neutra, pelo
simples fato de estar submetida aos estritos limites legais. As questões práticas
comumente colocadas no âmbito administrativo invariavelmente envolvem
questões de moral política, no jogo de disputa por bens coletivos e na escolha
dentre objetivos concorrentes. (LOPES, 2018, p. 116).
Nesse sentido, o direito reflexivo tem um papel essencial de promover a
organização e de favorecer procedimen tos democráticos internos aos
subsistemas sociais. E a comunicação jurídica é capaz de transportar interações
simples para um nível mais abstrato de relações estruturalmente organizadas
(LOPES, 2018, p. 115). O direito reflexivo, desse modo, pode ser pensado como
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paradigma do Estado Regulador, compatibilizando -se com estruturas
intrassistêmicas de reflexão:
“de um lado, a reflexão dos subsistemas sociais pressupõe processos de
democratização e produzem estrut uras discursivas; de outro lado, a função
primária de democratização não é o aumento da participação, nem da
neutralização do poder, mas sim da reflexão intrassistêmica sobre a identidade
social”.
(TEUBNER, 1996, p. 31)
No Estado Regulador, tal como colocado até aqui, o direito opera não
somente como meio que confronta os sistemas econômico e político-
burocrático (sistemas altamente invasivos), mas também como instituição
destinada a frear os impulsos intervencionistas do pr óprio direito noutros
sistemas, desfigurando-lhes a autonomia e a diferenciação. Noutras palavras, o
direito funcionalmente orientando a significações que incrementem a
integração social, ou seja, o direito enquanto instituição deve evitar a
politização da economia, da mesma forma que não deve economicizar a
sociedade e consequentemente a política. Trata -se de assumir uma função de
integração social sistêmica, num contexto de extrema diferenciação funcional
(TEUBNER, 20 16, p. 80). Ao direito, portanto, como sistema regulad or
abrangente, cabem operações reflexivas numa atuação coordenadora que
preserve a integração social (LOPES, 2018, p. 113). Ao direito reflexivo, deve-
se reservar o papel de disponibilizar mecanismos organizacionais e
procedimentais para que os sistemas sociais possa m manter uma autonomia
coordenada. (LOPES, 2018, p. 115). Em arremate:
A configuração ref lexiva do direito leva a um tr ânsito entre direito formal,
direito material e direito r eflexivo. D iante da insufic iência da racionalida de
material e de resultados para legitimação do Estado, f az-se necessária uma
racionalidade discursiva, adensada por critérios nor mativos veiculados em
procedimentos de discussão e decisão, num espaço que permita a colaboração
da ci ência, da política e do espaço público, e m que estariam inseridos atores
como a ssociações, sindicat os e outra s entidades e pessoas da sociedade civil,
colocando-se como caracter ística marcante a reflexividade. O direito deixaria
de desempe nhar exclusivamente o papel de meio para os objetivos do si stema
político burocrático, colonizador do mundo da vida, passando a se conformar
como instituiçã o v eiculadora dessa racionalida de discursiva e reflexiv a
(LOPES, 2018, p. 117).
Nesse contexto, para além de assumir-se apenas como um sistema dentro
de um ambiente complexo, o direito deve, autolimitando-se e servindo-se dos
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conhecimentos das ciências de outros sistemas, dar conta dos imperativos de
integração social sistêmica. Desse modo, o direito do Estado Regulador
desenha-se na direção de que sistemas como o econômico e o político-
burocrático também possam ser articulados de forma reflexiva e coordenada
(LOPES, 2018, p. 118).
Ademais, as regras jurídicas, em su as aberturas cognitivas, absorvem
linguagem técnico-científica, aumentando seu grau de operatividade e de
comunicação com outros sistemas. Acontece que essas mesmas características
das regras podem levar à hipertrofia do direito, instrumentalizando -o. Cuida-
se de processo del etério que pode acometer o direito em razão de uma
predominância de significados linguísticos patrocinada pelos sistemas
econômico e/ou político-burocrático (LOPES, 2018, p. 309-310).
Diante de tal risco, impende ressaltar o caráter reflexivo e
metalinguístico dos princípios. Afinal, os princípios sedimentam padrões de
justiça, ao que favorecem discursos de moral política e argumentação. Afora
isso, dada sua proximidade com a li nguagem cotidiana, também impedem que
escolhas ou mudanças normativas se deem arbitrariamente (LOPES, 2018, p.
312). Afinal, a alteração do direito a partir de princípios gera convencimento
e, portanto, agregação social. Assim, no que toca à regulação sob o pon to de
observação dos princípios:
os princípios além de serem veículo de legitimação e consistência, constituem
âmbito privile giado para a construção de racionalidade s transversai s,
compatíveis com a diferenciação funcional e c om a proteção dos in divíduos
contra a sua instru mentalização pelos sistemas” (LO PES, 2018, p. 313)
Daí a importância dos princípios dotados de conteúdo de moral política e
indutores de agregação, de reflexividade, de uni versalidade, de argume ntação,
de coerê ncia, de pere nidade, de c omplementaridade, constit uindo uma
metalinguagem com elevado poder de legitimação e também com potencial para
constituir pontes transversai s entre o s diferentes sistemas. (...) Assim, no que
diz respeito à regulação, os princípios não só podem legitimar as r egras
produzidas administrativamente, como podem ser eixos de auto-ob servação e
filtragem re cíprocas entre os sistemas, facilitando tanto a inte gração sistêmica
como a integração social pelo entendimento mútuo.” (LOPES, 2018, p. 315)
Enfim, o conteúdo de moral política dos princípios confere maior
dinamicidade ao direito enquanto instituição do fen ômeno regulatório,
permitindo a criação de normas jurídicas adaptadas à sociedade complexa e
com um maior grau de leg itimidade pelo processo de arg umentação.
Entretanto, o direito deve se policiar para não se isolar em seu próprio sistema
de normas jurídicas (eventualmente até sendo instrumentalizado por outros
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sistemas), assim como deve se policiar para não se intrometer i ndevidamente
em sistemas econômicos ou político-administrativos que possuam lógica e
finalidades próprias, estrangulando possiblidade resolutivas mais eficazes e
justas desses. Deve, em síntese, favorecer a interação si stêmica, de sorte a
articular e coordenar comportamentos interacionais entre agentes reguladores,
agentes regulados e destinatários finais de produtos e serviços mediante
aberturas semânticas facilitadoras de entendimento mútuo con struído sobre
bases de participação e deliberação democrática.
Conclusão
O ambiente regulatório do uso de OGMs no Brasil está inserido numa
miríade de competências administrativas, submetendo-se a regras jurídicas cujo
conteúdo é informado e dominado por linguagem técnica especializada. Em razão
disso, faz-se necessário uma abordagem jurídica que, para além de valer-se de um
direito meramente formal (muitas vezes apenas instrumentalizado por outro
sistema) e para além de simplesmente material (finalisticamente pensado a partir
de referenciais políticos), perceba-se r eflexivamente, de modo a p reservar sua
autorreferibilidade, a articular os demais sistemas envolvidos e garantir uma
maior integração social no q ue toca à participação democrática e às expectativas
quanto à regulação em casos como esses.
A regulação é uma forma de intervenção do Estado na economia. O direito,
assim como seus respectivos paradigmas de Estado encontram-se e m crise. Do
Estado de Direito, orientado pela lógica de subsunção for mal de fatos a normas,
para o Estado de Bem-Estar Social, orientado pelo atingimento de finalidades
sociais decorrentes da moral política, até o Estado Democrático de Direito, carente
de densidade significa para efeito de alcançar aspirações sociais materializadas
em resultados práticos, concretos e justos. O direito, assim, precisa encontrar
caminhos que reorganizem e reorientem a interação sistêmica entre o sistema
econômico, o sistema político-burocrático e sistema social, permitindo que cada
um desses sistemas não só preserve sua própria autono mia e autorreferibilidade,
como também conserve aberturas interativas que favoreçam a (des/re)construção
de novos significados regulatórios.
Referências Bibliográficas
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Gunther. Dilemas of Law in the Welfare State. Berlim/Nova I orque:
Walter de Gruyter, 1988.
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Madri: Trota, 2001.
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MORICONI, Patrícia Rossi; TONIETT I, Paloma de Oliveira; MORENO, Luisa
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Paulo, v. 14, n. 3, 2014, p. 112-131.
LOPES, Othon de Azevedo. Fundamentos da regulação. Rio de Janeiro: Editora
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TEUBNER, Gunther. After legal instrumentalism: Strategic models of post -
regulatory law. In: Dilemmas of law in the welfare state. Berlin: Walter
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TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996.
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na
globalização. São Paulo: Saraiva, 2016.

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